Cerromaior e o Neo-Realismo PortuguÊs

José Carlos Barcellos (UERJ/UFF)

O romance Cerromaior (1943), de Manuel da Fonseca, é um texto-chave para uma adequada compreensão e avaliação do processo de criação e desenvolvimento da literatura neo-realista em Portugal. De fato, nele se podem ver equacionadas com clareza - e de maneira bastante original - as principais questões éticas e estéticas com as quais se defrontou o Neo-Realismo português, tanto em seu momento inicial, nos anos 40, quanto em seus ulteriores desdobramentos, ao longo das décadas seguintes.

No entanto, por uma dessas circunstâncias curiosas da historiografia e da crítica literárias, Cerromaior não teve uma fortuna crítica tão extensa quanto a de outros romances neo-realistas, como Gaibéus (1940), de Alves Redol, Uma abelha na chuva (1953), de Carlos de Oliveira, O trigo e o joio (1954), de Fernando Namora, ou mesmo Seara de vento (1958), do próprio Manuel da Fonseca. Talvez isso se deva à aparente simplicidade de sua estrutura narrativa e de sua temática ou mesmo às polêmicas e incompreensões suscitadas quando de sua publicação, uma vez que esse primeiro romance de Manuel da Fonseca contrasta em mais de um aspecto com algumas obras anteriores tidas como "modelos" do romance neo-realista, notadamente o já citado Gaibéus (1940), de Redol, e Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes. Conforme testemunha o próprio autor em prefácio à 5ª edição, de 1982, abalou-o profundamente à época o fato de alguns companheiros de militância terem considerado seu livro "reacionário"...

Na verdade, Cerromaior é uma obra bastante sutil, que requer uma leitura atenta e sensível para que se perceba quão profundamente estão sendo abordadas determinadas questões fundamentais da estética neo-realista. Para podermos avaliar convenientemente o alcance da contribuição desse romance ao debate político e literário português dos anos 40, convém fazer um rápido apanhado do contexto local e europeu em que ele foi escrito e publicado.

Como se sabe, o fim do séc. XIX pode ser marcado, em termos históricos e culturais pela I Guerra Mundial (1914-1918). No plano dos valores e dos ideais, semelhante catástrofe assinala, na tragicidade da utilização bélica de aviões e veículos motorizados, o colapso da sociedade burguesa oitocentista e de sua crença ingênua no progresso, na técnica, na ciência e no aperfeiçoamento paulatino das instituições laicas e democráticas, com vistas a uma sociedade mais justa e igualitária.

Significativamente, os anos 10 e 20 conhecem uma grande efervescência cultural, em que diversas correntes estéticas e filosóficas - às vezes, muito diferentes entre si - têm como denominador comum precisamente a rejeição da sociedade burguesa e de seu sistema de valores, tais como o essencialismo no plano ontológico, o racionalismo no plano epistemológico, a respeitabilidade no plano ético ou a integridade e unidade do sujeito no plano psicológico. Daí o caráter iconoclasta da arte e da literatura européias das primeiras décadas do séc. XX. Num mundo em escombros, em se tudo parecia vacilar e os valores mais sólidos mostravam-se tão inconsistentes quanto o multissecular domínio dos Habsburgo sobre a Áustria ou dos Romanov sobre a Rússia, as vanguardas artísticas vão-se dedicar à produção de obras extremamente refinadas e difíceis, em que a ruptura com a visão de mundo burguesa é o eixo dominante. Nesse contexto, o fazer artístico aparece freqüentemente como única atividade dotada de sentido e pela qual vale a pena viver. Em Portugal, a geração de Orpheu e, acima de tudo, o gênio de Fernando Pessoa marcam o exemplarmente esse momento.

Ora, essa postura esteticista, não-compromissada e, até mesmo, anti-humanista das vanguardas será rapidamente superada, ao longo dos anos 20, em função da magnitude dos problemas políticos, sociais e econômicos do primeiro pós-guerra. A vitória da Revolução Russa (1917), a criação da União Soviética (1922), a ascensão ao poder de Mussolini (1922), Salazar (1928) e Hitler (1933), a quebra da Bolsa de Nova York (1929) e a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), entre outros fatores, dão ao final da década de 20 e aos anos 30 o caráter de um momento de tomada de posições firmes e de separação de campos, em vista do intenso embate ideológico que então se travava e que haveria de conduzir à II Guerra Mundial. Foi uma época de profunda descrença nos valores burgueses e nas democracias representativas como instrumentos adequados à solução dos urgentes problemas socioeconômicos e políticos que se colocavam, tais como inflação generalizada, infra-estrutura deficiente, desemprego em massa e governabilidade sob constante ameaça.

Em termos artísticos e literários o que se observa é um decidido recuo das conquistas formais e da liberdade ideológica características dos anos 10 e 20, em prol de obras mais acessíveis ao grande público, com maior poder de comunicação, e mais claramente comprometidas com os novos projetos de substituição da ordem burguesa e de seu (caduco) sistema de valores. Esses aspectos marcam claramente boa parte da produção artística e literária dos anos 30, 40 e 50.

No campo da literatura, e do romance em particular, apresentam-se duas grandes correntes nitidamente diferenciadas, não obstante convergirem na rejeição peremptória ao mundo burguês: de um lado, temos um grupo de escritores muito marcados pelo contacto com o cristianismo e com a psicanálise; de outro, um grupo em geral muito influenciado pelo marxismo e pela militância em partidos políticos ou outras associações de esquerda. Estamos pensando em autores como Julien Green, Graham Greene, Evelyn Waugh, Georges Bernanos, José Régio ou Lúcio Cardoso, em contraste com Máximo Górki, John Steinbeck, Carlo Levi, Graciliano Ramos, Amando Fontes, Alves Redol ou José Cardoso Pires, por exemplo.

A diferença básica entre essas duas grandes tendências do romance e da novelística em geral, no período que vai dos anos 30 aos anos 50, decorre fundamentalmente de duas antropologias opostas e irredutíveis entre si: por um lado, temos um enfoque que privilegia o homem enquanto indivíduo e que o considera como um ser habitado por um mistério transcendente, no qual bem e mal se misturam de forma profundamente desconcertante; por outro, uma visão que sublinha o caráter coletivo do ser humano e a pertinência de uma abordagem materialista - que se quer científica - dos problemas que lhe dizem respeito. Ambas as posturas apresentam-se anti-burguesas e engajadas no processo de construção de uma nova ordem social, política e econômica. Diferem radicalmente, porém, nos caminhos que trilham: para uns, é preciso que o homem desça com coragem aos abismos que traz dentro de si e procure conhecer em profundidade seu próprio mistério; para outros, o fundamental é conhecer cientificamente os mecanismos socioeconômicos que determinam o conjunto da vida humana para poder submeter a ordem vigente a uma transformação radical e metódica. Essa contraposição de antropologias determinou, como era de se esperar, dois perfis acentuadamente distintos na produção romanesca. Poderíamos falar, então, em termos genéricos, numa corrente espiritualista em oposição a uma corrente materialista. Esta última ficou conhecida, em muitos contextos, como realismo socialista ou, mais vagamente, como Neo-Realismo, ao passo que a primeira carece de uma denominação consagrada. Em Portugal, é comumente chamada de presencismo, por causa da revista Presença, cuja publicação se iniciou em 1927.

O Neo-Realismo, portanto, é uma corrente literária que se define fundamentalmente pela proposta de desnudamento dos mecanismo socioeconômicos que regem a vida humana - e supostamente explicariam todos os seus dramas e conflitos - e pelo incitamento a uma transformação radical da ordem burguesa através da ação revolucionária. Por outras palavras, a estética literária neo-realista se define em termos semânticos e pragmáticos, mas não em termos sintáticos. Ou seja, não há um estilo neo-realista propriamente dito: cada autor pôde efetivamente experimentar diferentes técnicas narrativas, registros lingüísticos e recursos literários em função da consecução dos objetivos semânticos e pragmáticos do Neo-Realismo comuns a todos eles. É o que se observa de forma inequívoca quando se comparam obras como Gaibéus (1940), de Alves Redol, Cerromaior (1943), de Manuel da Fonseca, Vagão J (1946), de Vergílio Ferreira, ou Jogos de azar (1946), de Cardoso Pires, por exemplo.

Na verdade, essa grande liberdade na busca de técnicas narrativas e de recursos estilísticos adequados à veiculação da visão de mundo neo-realista e de sua mensagem revolucionária é fruto de um problema básico enfrentado por aqueles autores: como utilizar o romance burguês, enquanto forma literária consagrada cuja aptidão a se comunicar com o grande público e a transmitir valores não podia ser negada, para veicular uma mensagem radicalmente anti-burguesa? Para tanto, que modificações técnicas e estruturais ele deveria sofrer? Aí está a raiz da grande diversidade de estilos que se observa entre os autores neo-realistas e, no caso de Cerromaior, a origem última de alguns equívocos que cercaram a recepção do romance.

Se o Neo-Realismo, como vimos, é um movimento internacional, que percorre, às vezes com nomes diferentes, várias literaturas ocidentais, sua introdução em Portugal ganhou maior relevo social e cultural devido à ditadura salazarista e sua equívoca neutralidade durante a II Guerra Mundial. De fato, o Neo-Realismo português começa em 1940, quando o grande conflito já se iniciara. Por outro lado, Portugal era um país quase exclusivamente agrário, muito atrasado em termos socieconômicos, com uma indústria incipiente e sem um movimento operário expressivo. A conjugação desses dois fatores dá ao Neo-Realismo português uma fisionomia muito própria.

Em primeiro lugar, há uma absoluta predominância do contexto agrário sobre o urbano, a ponto de nos primórdios do movimento se falar equivocadamente em regionalismo. Ainda em função do secular atraso econômico e social do país, surge o problema da verossimilhança na construção de personagens conscientes e engajados politicamente, uma vez que, ao contrário do que ocorria em outros países, os trabalhadores portugueses em sua quase totalidade permaneciam alheios às formas de organização e às lutas da classe operária. Além disso, diante da patente impossibilidade de derrubada do regime por pressão interna, o apoio que os intelectuais neo-realistas e a esquerda em geral davam aos aliados na luta contra o nazifascismo, levava-os a acreditar que a derrota do Eixo implicaria necessariamente a queda de Franco e de Salazar. Naquele momento, não se imaginava a capacidade de rearticulação política de que dariam mostra no pós-guerra os dois ditadores dos dois países da Península Ibérica.

Ora, se tomarmos o conjunto da produção neo-realista portuguesa dos anos 40 - o chamado primeiro momento do Neo-Realismo -, veremos que em geral se trata de histórias em que avulta a denúncia da alienação dos trabalhadores e da perversidade dos mecanismos de opressão da classe dominante e em que, no fundo de situações aparentemente sem saída, brilha - mais em termos simbólicos que concretos - alguma esperança de um mundo vindouro em que reinem a justiça, a paz e fraternidade. Basta lembrarmo-nos do companheirismo das crianças de Gaibéus, do espaço igualitário da casa em Casa da malta (1945), de Fernando Namora, ou do sonho de Zé Cardo em Aldeia Nova (1942), de Manuel da Fonseca.

Nesse contexto, qual a especificidade da intervenção de Manuel da Fonseca através de Cerromaior?

O romance abre-se com a cena em que Adriano, o protagonista, é colocado na cadeia. Toda narrativa é construída num movimento de sucessivos flash-backs, numa seqüência meio desconexa de acontecimentos que culminarão com a prisão do personagem central. Trata-se, pois, de uma estrutura circular, em que a cena final não somente explica a cena inicial, mas ainda dá coerência à multiplicidade de episódios narrados. Nesse sentido, pode-se dizer que a narrativa é uma espécie de investigação das razões que levam Adriano à prisão. Esse movimento analéptico é conduzido por um narrador heterodiegético, que trabalha quase exclusivamente com a focalização interna. Ou seja, o narrador, ainda que potencialmente onisciente, limita sua narração às possibilidades da consciência e da memória de seu personagem Adriano.

Mas, quem é Adriano?

É um rapaz jovem, dezenove anos, filho de uma das famílias mais ricas de Cerromaior, vila que vem a ser a transposição literária de Santiago do Cacém, no Baixo Alentejo, terra natal de Manuel da Fonseca. Adriano, ainda que proveniente de um meio abastado, encontra-se numa situação atípica: por ser órfão e inexperiente em assuntos de negócios, viu-se espoliado de seus bens pelos próprios primos e, com isso, acabou deslocado na rígida estrutura social da vila, pois a rigor não faz parte nem do mundo dos trabalhadores nem do mundo dos proprietários. Exatamente em função dessa posição ambígua, Adriano viverá em termos pessoais e íntimos, como tédio, falta de sentido da vida, mal-estar etc. toda a situação opressiva do relacionamento entre as classes sociais. Por se permitir conviver, falar e estar junto aos trabalhadores, o percurso de Adriano será um progressivo mas inequívoco processo de conscientização, que o levará a perceber, ainda que de maneira um tanto confusa, o caráter social e político de seu próprio mal-estar e o fará superar uma perspectivação pessoal e ética muito limitada dos problemas sociais e caminhar na direção de um compromisso público e político, que vem a se concretizar na cena em que ele agride um guarda para dar fuga a um trabalhador preso que está sendo espancado. É em virtude desse gesto que ele próprio é feito prisioneiro.

Assim, na simplicidade do enredo desse romance e na aparente "alienação" de seu personagem central, que não é um trabalhador oprimido nem tampouco um intelectual ou um profissional liberal engajado politicamente, como se vê em outras obras neo-realistas, temos postas as grandes questões de fundo com as quais se debateu o Neo-Realismo português. O romance de Manuel da Fonseca mantém-se nos limites da verossimilhança em termos de conscientização dos personagens, tendo em vista a realidade social portuguesa e alentejana, em particular. Não obstante, é bastante claro na denúncia das estruturas opressivas e no incitamento à necessidade de superação de uma consciência ética de base cristã em prol de uma visão política materialista.

Por outro lado, ao abrir um espaço até então inusitado no âmbito da ficção neo-realista à problemática pessoal do personagem, sempre em relação com a estrutura social e econômica, Cerromaior como que antecipa algumas linhas-de-força que viriam a se manifestar em obras posteriores de alguns dos principais integrantes do movimento neo-realista, como Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Fernando Namora ou José Cardoso Pires. No entanto, interpretar essa evolução em termos de "afastamento" do Neo-Realismo parece-nos ser uma postura equivocada, que deita raízes numa visão acanhada e unilateral do movimento. Na verdade, o Neo-Realismo literário português já é, desde seus primórdios, bem mais complexo e diversificado do que habitualmente se pensa. Sua posterior evolução nada mais é do que a exploração fecunda e criativa das virtualidades que nele estavam contidas desde o princípio. Assim, podemos postular uma continuidade fundamental entre Cerromaior e obras como Aparição (1959), Uma abelha na chuva (1953), O homem disfarçado (1957) ou O delfim (1968), dos autores citados. Estudar em profundidade essas ressonâncias e convergências é uma tarefa que, uma vez realizada, alteraria substancialmente uma certa visão muito esquemática do Neo-Realismo, infelizmente bastante disseminada pela crítica e pela historiografia literárias.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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