o
mito
do
amor
na
literatura
medieval
portuguesa
Nadiá Paulo
Ferreira
(UERJ e
Corpo
Freudiano do
Rio de
Janeiro)
Trovadorismo
No
século XII, a
França
não
apresentava uma
unidade
lingüística: a
língua d’oil
no
norte e a
língua d’oc no
sul. Na
região
occitânica,
território
em
que se falava
o d’oc, floresce uma
poesia,
associada ao
canto,
que tem
como
tema o
que se
convencionou
chamar de
amor
cortês.
Do
final do
século XII
até a
segunda
metade do
século XIV,
em Portugal e
na Galícia, surge uma
poesia
em
galego-português
que retoma o
tema do
amor, a
partir de
vários
gêneros.
A
famosa
Cantiga da
Guarvaia, de autoria de
Paio
Soares de
Taveirós, é considerada
por Carolina
de Michaëlis o
texto
inaugural do
trovadorismo
galego-português.
Leodegário A. de Azevedo
Filho,
com
base
nos
estudos de
textos
não
literários de
Luís Filipe Lindley Cintra e do
padre Avelino
de Jesus
Costa,
que se
fundamentam
em
argumentos
codicológicos e
paleográficos,
discorda de Carolina de Michaëlis:
Paio
Soares de
Taveirós viveu na
primeira
metade do
século XIII e
o
autor
mais
antigo
que se tem
notícia é João
Soares de
Paiva,
que teria
nascido
em 1141,
portanto,
dois
anos
após a
batalha de
Ourique.
Nessa
época,
fazer
poesia
era
sinônimo de
saber
trovar.
Segundo
Rodrigues
Lapa, a
palavra
trovar vem do
latim
tropare (fazer
tropos) e
não do
verbo
latino
turbare (empregado
na
pesca
com o
sentido de
turvar a
água).
Para
ele, trobar
é a
forma
arcaica do
verbo
trovar,
que vem do
grego trópos —
figura
retórica
que indica
desvio do
sentido —,
cuja
variante do
latim
tardio é
contropare,
que significa
fazer
tropo.
Assim
teríamos: tropare > trobare >
trovar.
Cancioneiros
e a
tradição
manuscrita
Os
textos
manuscritos
que reúnem o
corpus poético
dos
trovadores
galego-portugueses se encontram
em códices
apógrafos. Os
principais e
mais
conhecidos
desses códices
são os
seguintes
manuscritos:
A =
Cancioneiro
da
Ajuda,
copiado
em Portugal
em
fins do
século XIII
ou
princípios do
século XIV,
encontra-se na
biblioteca da
Ajuda,
em Lisboa. A
maioria das
cantigas
são de
amor.
V =
Cancioneiro
da
Vaticana,
copiado na Itália
em
fins do
século XV
ou
princípios do
século XVI.
Encontram-se
cantigas de
todos os
gêneros.
B =
Cancioneiro
da
Biblioteca
Nacional,
antigo
Colocci-Brancuti, copiado na Itália
em
fins do
século XV
ou
princípios do
século XVI,
encontra-se,
desde 1924, na
Biblioteca
Nacional de
Lisboa. Há
composições de
todos os
gêneros.
Pergaminho
Vindel:
com as 7
cantigas de
amigo de
Martin Codax,
entre
outros
textos.
As
Cantigas
de
Santa
Maria: constituída
por 4 códices
do
século XIII
sob o
nome de Afonso
X, é
quase
certo
que todas as
cantigas
não sejam da
autoria do
rei.
Entretanto,
não há
dúvida de
que Afonso X
coordenou
pessoalmente a
compilação
destas
cantigas.
Tavola Colocciana:
uma
lista
com
nomes dos
poetas dos
Cancioneiros,
organizada
pelo
humanista
Angelo Colocci.
Amor-cortês e amor-paixão
Nas
Cantigas de
Amor, o
sujeito do
discurso é
um
homem e o
tema é o
amor
impossível.
Em
galego-português,
o sofrimento causado
pela
não
correspondência
amorosa é
chamado de
coita e
o
objeto
amado — a
Dama — é
nomeado
pela
palavra
Senhor.
A
maioria dos
medievalistas concorda
que essas
cantigas
retomam o
lirismo
occitânico, sofrendo
influências
diretas da
poesia
provençal.
Nas
Cantigas de
Amigo,
em
vez de
um
amor
impossível,
temos o
testemunho de
mulheres
apaixonadas. O
poeta —
trovador,
jogral
ou
menestrel
—,
se coloca do
lado das
mulheres,
falando
como se fosse
uma delas.
Em
galego-português,
amigo é
sinônimo de
namorado,
amado. No
que diz
respeito à
origem dessas
cantigas,
vamos encontras
três
versões
diferentes:
1- a
poesia
galego-portuguesa
em
seu
conjunto é uma
continuidade do trovadorismo occitânico, tendo
como
principal
influência a
escola
provençal;
2- as
cantigas de
amigo
são
um
fenômeno
autóctone da
cultura
galego-portuguesa;
3- a
poesia
galego-portuguesa se inscreve na
tradição
trovadoresca
medieval, apresentando
algumas
características
específicas,
já
que
não se pode
deixar de
levar
em
consideração
que a
corte de Afonso X, o
Sábio (avô
de D. Dinis),
era
um
importante
centro
cultural, freqüentado
por
vários
poetas
occitânicos.
As
Cantigas de
Amor e de
Amigo colocam
em
cena
dois
gêneros
líricos e duas
modalidades de
amor. Nas
cantigas de
amor, o
amante se
situa
como
homem,
colocando-se a
serviço de uma
Dama,
que, ao
mesmo
tempo
em
que o aceita
como
vassalo,
recusa-se a dar-lhe o
seu
amor. Nas
cantigas de
amigo, o
amante se
inscreve no
lugar das
mulheres e o
objeto
amado é
quem tem as
insígnias
fálicas. As
cantigas
de Pero Meogo,
em
que a
imagem dos
cervos
simboliza a
virilidade
masculina (Cf.
AZEVEDO
FILHO, 1974),
ilustram as
características
básicas desse
gênero,
onde algumas
personagens
domésticas participam dos
conflitos da
donzela,
quando
ela recebe
um
bilhete do
namorado,
convidando-a
para
um
encontro.
Sempre
que a
figura
materna
aparece nessas
cantigas é
para
alertar a
filha dos
perigos da
paixão, e, às
vezes, essas
donzelas
burlam a
vigilância
materna
para
atender ao chamado dos
seus
amados.
Nas
Cantigas de
Amor,
a
privação do
objeto amado tem
como efeito a
inibição do
sexual.
Nas
Cantigas de
Amigo,
a
inclusão do
sexual está
diretamente ligada a
uma
cena reincidente,
onde a
donzela apaixonada
se
entrega ao
seu amado,
engendrando uma
versão que implica
na
conjunção entre amor e
gozo e
na
colocação do
amor como agente infrator de
um código moral,
como é
o
caso da
poesia de
Martin Codax.
O
preconceito fez
com que alguns estudiosos do
trovadorismo
galego-português,
tais como D.
Carolina de Michäelis de Vasconcelos, Aubrey Bell, Joaquim Nunes,
Costa Pimpão e
Rodrigues
Lapa —
só para citar alguns —
identificassem uma
certa “candura”
nas
cantigas de
amigo.
Ou seja:
eles ignoraram
a
presença de
um erotismo,
onde o
amor contracena
com o
gozo sexual para engendrar a
promessa de
Felicidade.
Já as
leituras das
cantigas de
amigo,
feitas por Leodegário
A. de Azevedo
Filho (As
Cantigas de
Pero Meogo
e O
Poema Musical
de Codax
como Narrativa),
por Celso Cunha (Amor e
Ideologia na
Lírica Trovadoresca)
e
por Romam
Jakobson (A
textura Poética de
Martim Codax),
entre outros,
contribuíram
para desmistificar o
caráter angelical que até então era atribuído
a essas
cantigas.
Na
tentativa de
encontrar uma
origem
para o
amor
cortês, várias
teses foram
propostas
para a
origem da
poesia
em
langue d'oc.
A
tese
arábica,
que
não é
propriamente
criação do
romantismo,
porque
já
tinha sido
formulada, no
século XVI,
pelo italiano G. Barbieri,
sustenta-se na
superioridade da
cultura
muçulmana
em
relação à
cristã e na
facilidade de
comunicação
entre as duas
culturas pelas
cruzadas. O
amor
cortês do
lirismo
occitânico teria sido derivado das
poesias da
corte
muçulmana,
já
que essas
poesias
exaltavam a
mulher e o
sofrimento
amoroso. A
grande
contestação a
essa
tese,
entre outras,
é de
que o
lirismo
trovadoresco
das
canções
muçulmanas
era
geralmente
dirigido a uma
escrava e
nunca a uma
senhora
casada,
como é o
caso das
cantigas
provençais.
Na
segunda
metade do
século XIX,
com o
desenvolvimento
dos
estudos de
filologia
românica,
aparece a
tese
folclórica,
que se
sustenta na
permanência da
tradição
popular
greco-latina,
principalmente,
as
festas de
Maio,
onde o
amor e a
primavera eram
celebrados.
No
primeiro
quartel do
século XX,
surge a
tese
médio-latinista,
que irá
identificar as
origens dessa
poesia na
tradição
erótica
médio-latinista,
tanto no
seu
aspecto
popular,
quanto
goliardesco.
Nesse
mesmo
período,
outra
justificativa
vem sustentada
pela
tese
litúrgica,
que acredita
que as raízes
desse
lirismo se
encontram na
poesia
latino-eclesiástica,
que
não
só oferecia
um
texto
mais
ou
menos
compreensível
mas
também uma
melodia, o
que facilitava
a
memorização.
Denis de Rougemont,
em
seu
livro
O
amor
e o
ocidente,
insistindo nessa
questão da
origem, retoma
alguns
pressupostos da
tese
arábica e se
descarta das outras, acrescentando,
entre outras
influências, a
heresia cátara.
Para
esse
autor, a
influência cátara aparece
no
amor
cortês
através do
ascetismo, da
louvação à
morte e das
virtudes
corteses de
humildade,
lealdade,
respeito e
fidelidade.
Em
primeiro
lugar,
não posso
concordar
com
esse
autor,
porque
isto implica
considerar
que o
amor
cortês é uma
concepção
mística e,
como
tal,
reflexo de uma
versão cristã,
que condenava
o
exercício da
sexualidade e
identificava
um
perigo
fantasmático de
caráter
fóbico nas
mulheres.
Em
segundo
lugar,
quando a
mulher vai ao
lugar de
Dama
para
ser decantada
em
versos,
em
momento
algum
esse
tratamento
corresponde à
conduta
social dos
homens
em
relação às
mulheres.
Trata-se de uma
ficção
tomada ao
pé da
letra.
Guilherme,
sétimo
Conde de
Poitiers e
nono
Duque da
Aquitânia (1071-1127), o
primeiro
trovador
provençal de
que se tem
notícia,
um dos
príncipes
mais
poderosos de
sua
época,
por
sua
linhagem (bisavô
de Ricardo
Coração de
Leão) e
pela
extensão de
suas
propriedades,
foi
um
conquistador,
que acabou
sendo
excomungado
duas
vezes
por
causa de
sua
ligação
com a
Viscondessa de Châtellerault,
ou,
mais
provavelmente,
por
causa de
suas
disputas
territoriais
com a
Igreja.
Todavia,
este
homem,
independente de
sua
conduta e do
seu
lugar
social,
quando
representava o
papel de
amante,
como
trovador,
jurava
fidelidade a
sua
Dama
em
nome de
um
amor
escrito. O
trovador
Bernart de Ventadorn (1150-1195?),
também,
ilustra
bem essa
defasagem de
tratamento
dado às
mulheres.
Como
homem do
seu
tempo,
apesar de se
saber
muito
pouco de
sua
biografia, foi
um
conquistador e
esteve envolvido
em
grandes
aventurosas amorosas. Conta-se
que foi
amante da
Viscondessa de Ventadorn,
esposa do
seu
senhor, o
visconde de
Ventadorn, e de Alienor de Aquitânia, na
época Duquesa da Normandia
e
depois
rainha da
Inglaterra.
É
importante
frisar a
dicotomia
entre o
lugar e o
tratamento
que é
dado à
mulher na
poesia e no
social. Na
Idade
Média, as
mulheres,
reduzidas à
função fálica,
só tinham
lugar no
social
como
mães. Uma das
soluções
encontradas
pelos
homens
em
relação às
mulheres foi
tapar as
suas
bocas. O
depoimento do
historiador Georges Duby,
sobre as
dificuldades
encontradas
por
ele
em
sua
pesquisa
sobre as
mulheres dessa
época, ilustra
bem
esse
fato:
Essa
Idade
Média é
resolutamente
masculina.
Pois
todos os
relatos
que chegam
até
mim e
me informam
vêm dos
homens,
convencidos da
superioridade do
seu
sexo.
Só
as
vozes
deles chegam
até
mim.
No
entanto,
eu os ouço
falar
antes de
tudo de
seu
desejo e,
conseqüentemente,
das
mulheres.
Eles têm
medo delas e,
para se tranqüilizarem,
eles as
desprezam (DUBY, 1989, p.10.).
Na
segunda
metade do
século XII,
período de florescimento
do
amor
cortês, no
sul da França, o
poder da
Igreja invadia
a
privacidade dos
homens,
criando
leis
que
regulamentavam as
relações
íntimas
entre os
casais. Os
padres
alertavam os
homens
para terem
muito
cuidado
com as
mulheres.
Elas poderiam
ser consideradas,
em
relação à
força
física,
mais frágeis
do
que os
homens,
mas,
em
relação ao
espírito,
deviam
ser temidas
porque usavam
a
sedução e a
mentira
como
armas
para
conduzir o
homem ao
pecado, à
destruição e à
morte.
Ninguém
melhor do
que a
mulher
para
aparecer
como uma das
faces
disfarçadas do
Demônio.
Em
um dos
episódios de
A
Demanda
do
Santo
Graal, Percival,
em
suas
andanças à
procura do
Santo
Cálice, está passando
pelo
mar,
quando
vê uma
tenda
muito
rica.
Depois de
atar o
seu
cavalo numa
árvore e
deixar encostado nela o
seu
escudo e
sua
espada, entra
na
tenda e
encontra,
dormindo
em
um
leito, a
donzela
mais
formosa
que
seus
olhos
até
então tinham
visto.
Enlouquecido de
paixão,
esquece-se do
compromisso
em
procurar o Graal e
declara
seu
amor, pedindo
a
donzela
em
casamento.
Eis
que, nesse
exato
momento, a
linda
donzela se
transforma na
figura
horripilante do
Demo, fazendo
com
que o
personagem se
dê
conta de
que estava
enfrentando
mais uma
prova de
fé.
Arrependido, Percival se ajoelha e pede
perdão a
Deus
por
ter
caído
em
tentação.
Os fabliaux,
em
contraponto ao
fin’amor
das
cantigas de
amor,
também
nos oferece
indicações
precisas da
concepção
que os
homens tinham
sobre as
mulheres nessa
época. Nesses fabliaux,
as
mulheres “têm
o
espírito
agudo”
(FABLIAUX, 1997: 46) e usam uma
série de ardis
para
seduzir os
homens e
para
enganar os
maridos,
fazendo-os de
bobos.
Enfim,
criaturas
demoníacas, perversas e devoradoras,
incapazes de
serem satisfeitas, eram as
imagens
que o
cristianismo
medieval construiu
sobre as
mulheres, o
que
sem
dúvida
isentava e justificava os
atos de
violência
contra
elas. As
leis dos
homens tinham,
nessa
época,
um
efeito
apaziguador, na
medida
em
que colocavam
no
lugar do
Outro
sexo o
signo da
maternidade. O
perigo
só rondava as
mulheres
solitárias,
ou seja,
aquelas
que
não estavam
sob o
domínio dos
homens.
Então, a
solução encontrada foi a
criação de
novos
espaços
para aprisioná-las: os
mosteiros, as
comunidades
beguinas e os bordéis.
Sob a
insígnia da
proteção, os
homens
encontravam
artifícios
para se prevenirem do
insondável
que
vela o
gozo
feminino.
Tratava-se,
então, de uma
estratégia
para
negar o
ser
sexuado dessas
mulheres,
cujo
gozo
suplementar
não
passa
pelo
corpo,
mas
sim
pela
fala. Uma
idade
dos
homens,
é
como o
historiador George Duby se refere a essa
época
em
um dos
seus
livros.
Mas, se nessa
época o
valor
social da
mulher
era
índice da
potência do
homem a
quem estava
subjugada,
desde o
nascimento
até a
morte,
este
valor se
transformava
radicalmente,
quando a
mulher,
sob a
pena do
poeta, transfigura-se
em a
Dama, à
qual
ele iria
dedicar
seu
amor
em
cantos,
que
são
verdadeiros
lamentos de
dor.
Lacan,
em 1972-73, no
Seminário
20:
mais,
ainda,
adverte
que a
tentativa de
desvendar a
origem
histórica do
amor
cortês
não deu
conta do
seu
fenômeno.
Mas
antes
mesmo de
afirmar
isto,
em 1959-60, no
Seminário
7: a
ética
da
Psicanálise,
ele
já se havia
descartado dessa
questão, ao
estabelecer uma
correspondência
entre o
amor
cortês e o
texto de
Ovídio, A
arte de
Amar. O
texto de
Ovídio é
um
verdadeiro
tratado
para
libertinos,
mas Lacan irá
encontrar nele uma
identificação
com o
amor
cortês
pela
via do
significante.
O
amor deve
ser regido
pela
arte
(Arte
regendus
amor)
e o
amor é uma
espécie de
serviço
militar (Militae
species
amor
est) —
são as
proposições de
Ovídio,
que foram
tomadas ao
pé da
letra
pelo
amor
cortês.
Só
que nele o
amante se
coloca a
serviço da
Dama
para
travar uma
batalha cujas
regras
já
estabelecidas colocam-no na
posição de
vencido,
antes
mesmo da
conquista.
Mas,
mesmo
assim, é
proibida a
desistência, e
o
amante
só tem
direito de
ingressar nessa
escola
poética se se
submeter às
regras
que determinam
a
maneira
como se deve
cortesmente
amar.
Tal
qual o
amor
grego, o
amor
cortês se
sustenta na
beleza do agalma e, ao
contrário
dele, exige
que o
amador
renuncie à
coisa
amada.
Em
torno do
objeto de
amor se
constrói uma
organização do
significante,
cujas
regras
conduzem à
inibição da
sexualidade e
à
representação
da
mulher
como
enigma
indecifrável.
Essa
representação
do
objeto
feminino faz
com
que Lacan
compare as
técnicas do
amor
cortês
com as
técnicas dos
pintores do
final do
século XVI e
do
início do
século
XVII.
Trata-se do
recurso da
anamorfose: a
revelação de
uma
imagem
enigmática,
que, à
primeira
vista,
não é
perceptível e
que aponta
para alguma
coisa da
ordem do
real. O
que há de
comum nessas
representações
é
um modus
operandi do
significante.
O
luto é a
condição
para
que o
homem ocupe o
lugar de
amante e possa
dirigir
sua
demanda à
Dama. O
sofrimento,
como
um
estado de
luto
permanente,
correspondendo ao
que se
convencionou
chamar,
nos
estudos
literários, de
morrer-de-amor, é o
afeto
dominante, na
cantiga “Como
morreu quen
nunca
bem” de
Pai
Soares de
Taveirós.
O
objeto
amado
só pode
comparecer na
estrutura da
privação,
porque se
trata de
um
amor
em
que as
relações
entre
sujeito e
objeto se
inscrevem na
falta. A
Dama é
para o
sujeito, na
posição de
amante, o
que
simbolizaria o
objeto
real do
seu
desejo. É
lógico
que essa
metaforização
só é
possível
pela
via do
imaginário,
já
que o
que
caracteriza a
estrutura do
desejo é a
falta do
objeto. É
por
lhe
ter sido
dado o
sentido de
um
objeto
precioso e,
como
tal,
privilegiado,
que a
Dama se
converte
em
símbolo da
própria
ausência do
objeto do
desejo.
Justamente
por
isto,
amar tem
como
condição
renunciar
não ao
amor
mas ao
objeto
amado.
Da
estrutura da
privação
passa-se à
frustração. É
na
posição de
objeto
real
que a
Dama é
investida de
onipotência, podendo, a
partir daí,
submeter o
amante aos
seus
caprichos. O
amante,
por se
encontrar
inteiramente à
deriva do
desejo
que está no
Outro — na
Dama —,
só pode se
colocar
como
servo
fiel e
humilde
que suplica
ser
amado.
A
Dama, cindida
em
objeto
real
com
valor de
potência e
objeto
simbólico
com
valor de
dom, se
torna a
fonte de
todos os
dissabores.
Ou seja,
como
objeto de
potência é
divinizada e,
justamente
por
isto,
só pode
ser
amada no
regime de
abstinência
sexual, de
devoção
servil e de
idolatria;
como
objeto
simbólico se
torna
signo da
recusa do
amor
como
dom. É nesse
sentido
que o
amor
cortês se
inscreve no
regime da
frustração.
O
ciclo
que se repete
é
sempre o
mesmo.
Alguns
medievalistas, ao constatarem
esse
processo de
repetição,
consideram-no
falta de
criatividade,
porque
não se deram
conta do
que,
verdadeiramente, se
trata nessa
concepção do
amor.
O morrer-de-amor dos
trovadores
não
corresponde
nem ao
desejo de
morte da
tragédia
helênica e
nem ao
masoquismo
moral
romântico. O sofrimento é
efeito de uma
relação
amorosa
simbolizada
que
visa à
não
satisfação. A
Dama é
colocada no
lugar de
objeto
amado
para
que
outra
coisa,
que está
para
além das
mulheres, seja
desejada.
As
regras
corteses tornam o
amor
impossível
para
que uma
prática de
escrita se
transforme
em
metáfora do
amor. O
real
como
impossível
não é
recalcado,
simplesmente
se desloca
para
que
amar se torne
sinônimo de
renúncia e a
insistência
em
continuar amando se
transforme
em
mestria de
um
cantar
com a
função de
sublimação.
Ao
contrário do
romantismo, o
que comparece
no
lugar de
um
ideal é o
próprio
amor e
não o
objeto. Na
literatura romântica, o
objeto
feminino é
investido de uma
imagem
que
substancializa a
figura da
mulher
angelical
ou da
mulher
satânica. As
cantigas de
amor
dessubstancializam o
objeto
feminino,
transformando-o numa
função
simbólica. A
Dama,
como portadora
do agalma, é captada
por
um
olhar,
sem
que haja
qualquer
particularidade
que a
singularize,
quer do
ponto de
vista do
amante,
quer do
ponto de
vista de
um
estilo de
época. A
leitura das
cantigas de
amor provoca,
inclusive, a
sensação no
leitor de
que todas
elas poderiam
ter sido
escritas
para uma
mesma
mulher. A
Dama é
dessubjetivada
para
ser colocada aos
olhos do
amador
como,
inteiramente,
arbitrária e
onipotente.
Justamente
por
isto,
Ela
não mede as
exigências
que impõe
àquele
que está ao
seu
serviço.
No
amor
cortês,
como no
amor
grego, os
lugares
para
amar estão
bem demarcados: o de
amante (erastes)
e o de
amado (erômenos).
Quem ocupa o
lugar
discursivo do
amante tem
abatido
sobre
si os
efeitos
que o
real provoca
no simbólico, e,
justamente
por
isto, se
coloca no
lugar de
sujeito do
desejo. Neste
lugar, o
trovador se
oferece ao
serviço de uma
mulher.
Aquela,
que aceitou
ser escolhida
poderia,
então,
representar
para o
sujeito o
que
ele supõe
que
lhe
falta?
Não. O
amor
cortês é
justamente
aquele
que traz a
desarmonia do
par
amante-amado, explicitando
que o
que
falta ao
amante
não é o
que o
amado tem.
Não é
isto
que Lacan
situa
quando diz
que
amar é
dar o
que
não se tem?
Este
paradoxo,
que
vige no
regime do
amor, é o
que
sustenta o
amor
cortês. É
neste
sentido
que se deve
ler a afirmação de Lacan,
quando diz
que o
amor
cortês é o
único
que
expressa o
verdadeiro
amor. Se o
desejo do
homem é o
desejo do
Outro, o
trovador
deseja o
amor da
Dama
porque
Ela
deseja
ser
amada
por
ele. Se o
desejo se
sustenta
em uma
falta
radical, a
súplica do
trovador,
dirigida à
Dama, revela a
constatação
deceptiva
que faz
parte da
estrutura de
toda
demanda:
não é
isto, é
outra
coisa... Esta
Outra
Coisa é a
Dama
que está
ali
para
ser
amada e
não
para
obliterar o
que
falta ao
amante. A
Dama,
como
simulacro do
objeto do
desejo,
só pode
ser demandada
pelo
trovador a
partir da
privação e da
frustração.
Justamente
por
isto, o
que é colocado
neste
lugar é
um
objeto
enlouquecedor, é
um
parceiro
desumano.
A
Dama tem
então a
mesma
função
que o
espelho
como a
borda de
um
furo:
estabelecer
um
limite
que aponta
para o
que
não se pode
transpor. Algumas
particularidades
do
amor
cortês
ilustram esta
função do
espelho:
1-
um
amor
que nasce da
construção
significante e
que se
apresenta dessimétrico
com o
papel
social
que a
mulher exercia
nesta
época,
amar
cortesmente
significa
saber
trovar;
2- todas as
regras de
cortesia se
organizam
em
torno da
inacessibilidade
do
objeto;
3- As
forças
maledicentes
(os lausengiers) e a
manutenção do
segredo
através do
uso do senhal
produzem uma
série de
equivocações.
As
técnicas do
amor
cortês
como
erotismo
são
técnicas de
retenção, de
suspensão e de
amor
interruptus. Freud, no
texto
Três
Ensaios
para uma
Teoria
Sexual,
1905, afirma
que
tudo o
que dificulta
ou prolonga a
finalidade do
ato
sexual
favorece as
tendências de
permanecer
nos
prazeres
preliminares,
convertendo-os
em
novos
fins
sexuais.
Lacan,
em O
seminário
7: a
ética
da
psicanálise,
afirma
que essas
técnicas
preliminares
correspondem aos
estágios
que o
trovador tem
que
passar
para
que a
Dama
aceite
ser homenageada
por
ele,
possibilitando
assim
que
ele receba o
grau de
amador.
Esses
estágios
são:
1-
Aspirante (Fenhedor)
— o
que se consome
em
suspiros;
2-
Suplicante
(Precador) — o
que ousa
pedir;
3-
Amador (Drut).
Cumpridos
esses
estágios, se o
amador for
aceito
como
vassalo, a
Dama aceitará
seu
amor,
sua
devoção e
sua
fidelidade. No
ritual
provençal,
quando a
Dama aceitava
a
corte do
trovador,
oferecia-lhe
um
anel de
ouro e ordenava
que se
levantasse e
lhe beijasse a
fronte. Daí
em
diante os
amantes
estavam unidos pelas
leis da
cortesia:
inibição do
sexual,
vassalagem e
consagração do
objeto
amado.
Se
esses
estágios forem
comparados
com os
prazeres
preliminares,
eles terão a
mesma
função
que exercem no
circuito
pulsional,
que é a
retenção do
gozo
para o
prolongamento
desses
prazeres. Essa
retenção do
gozo,
para Freud, converte-se
em
perversão
ou
em
sublimação. O
amor
cortês
não faz
outra
coisa
senão
eternizar
um
amor cujas
regras de
cortesia
impõem
barreiras ao
amor
como
exigência do
próprio
amor. O
amor
cortês
apresenta,
assim, uma
forma de
amar
que coloca
em
cena
um
jogo e
suas
regras.
Naquele
tempo os
trovadores
sabiam
jogar e,
justamente
por
isto, sabiam
amar. E
não existe
coisa
que
mais explicite
uma
invenção
significante
do
que o
jogo.
Lacan
chama
atenção
para o
paradoxo
desses
prazeres
preliminares.
Se
por
um
lado sustentam
o
prazer,
por
outro
são
experimentados
como
desprazer, na
medida
em
que aumentam o
estado de
tensão. É a
partir dessa
contradição
que os
prazeres
preliminares
são
valorizados no
ato
sexual. No
amor
cortês
esses
prazeres se
atualizam na
medida
em
que a
Dama se
torna
inacessível e
seu
corpo
interditado. É no
interior dessa
interdição
que o
sexual se
converte,
através da
sublimação,
numa
arte
erótica,
onde o
impossível de
um
amor tem
como
função
velar o
impossível da
relação
sexual.
Diz Lacan: O
amor
cortês “é uma
maneira
inteiramente
refinada de
suprir a
ausência de
relação
sexual,
fingindo
que somos
nós
que
lhe
pomos
obstáculo. É
verdadeiramente a
coisa
mais
formidável
que
jamais se
tentou” (LACAN, 1982, p. 94.).
O
amor
cortês
inviabiliza de
saída o
acesso ao
objeto
para
depois
lhe
outorgar
um
valor
sublime. O
agalma do
objeto se
transforma
em
aura,
para
que
ele possa
como
metáfora
vir no
lugar do
objeto
que
não há. O
não-haver do
objeto é
substituído
pela
impossibilidade de tê-lo. É
importante
assinalar
que
não estou
dizendo
que a
Dama vem
ocupar a
função do
objeto
causa do
desejo,
aquele
que Lacan
escreve
com a
letra
a
minúscula. A
Dama,
como
metáfora, é a
representação
da
estrutura de
falta do
objeto do
desejo. É
nesse
sentido
que
ela se
apresenta
como
impossível,
deslocando-se
para o
lugar do
Outro
Absoluto. É a
partir desse
lugar
que
Ela é
divinizada, adquirindo
assim o
valor de
dom
como
Bem
Supremo. Os
estágios a
serem ultrapassados
para o
grau de
amador
correspondem aos
prazeres
preliminares,
porque têm
como
função
colocar a
Dama
como
signo do
Outro barrado
(
).
A
Dama,
tal
qual o
Outro barrado(
),
não tem
face e
sempre se
apresenta
como
um
enigma
sem
decifração. A
Dama
não é a
representação
imagética das
mulheres e
sim a
representante d’
Mulher. Aquela
que,
como
significante
do Outro-Sexo, é
coberta
por
um
véu
que encobre
um
enigma
sem
decifração. A
indiferença da
Dama adquire
valor de
mistério
inviolável,
porque
Ela, a
Dama,
verdadeiramente,
não tem
nada
para
oferecer ao
amante.
O
amor
cortês
engendra uma
construção
ideal
sobre o
amor e o
inscreve no
regime da
estrutura da
falta do
objeto,
assinalando uma transformação
histórica de
eros.
Não se pode
negar
que essa
concepção de
amor inaugurou
uma
tradição
em
que
falar de
amor significa
falar do sofrimento de
quem
ama. O
sofrimento é a
via
pela
qual o
amor se tornou
um dos
temas
mais
reincidentes
da
literatura
ocidental.
Na
passagem do
amor
cortês
para o
amor
como
sentimento da
paixão,
produz-se uma
torção, a
partir do
momento
em
que o
morrer-de-amor
deixa de
ser
metáfora da
impossibilidade do
próprio
amor
para se
transformar
em
símbolo da
impotência do
homem
em
relação às
forças “invencíveis”
do
mundo. A
idealização objetal substituiu a
sublimação,
assim
como a
privação e a
frustração
cederam
lugar à
denegação do
impossível.
No
século XIX, o
objeto é
idealizado
como se fosse
a
aparição da
Coisa,
para
criar a
ilusão de
um
amor
primeiro,
único e
derradeiro...
E se
nada do
que é esperado
é encontrado, o
álibi dos
obstáculos
intransponíveis
vem
dissimular a
própria
impossibilidade,
que
passa a
ser denegada. A
mulher
pura e
angelical se
converte,
pela
via
imaginária,
em
signo do
objeto do
desejo.
Não importa se
é
pelos
laços do
matrimônio
ou
pela
via do
adultério,
pois o
que entra
em
cena é a
procura de
um
objeto
que viria
tomar o
lugar de
objeto do
desejo. Na
transformação do
amor
cortês
em
amor
paixão, nasce
o
mito da
castidade.
Não se
trata
mais de
abstinência
sexual do
amador,
mas de uma
exigência
moral
que se
abate
sobre as
mulheres.
Qualquer
semelhança
com o
romantismo e
com o
realismo
não
são meras
coincidências.
Na
literatura do
século XIX, o
homem,
fantasmaticamente dividido
entre as
mulheres
que podem
ser amadas e as
que podem
ser desejadas, tortura-se
entre
amar
ou
gozar. A
punição surge
então
sob duas
formas: o
inferno da
culpa
para os
homens e a
morte
para todas as
heroínas
que violam a
lei da
castidade.
Assim, o
impossível se
desloca do
amor
para os
obstáculos,
ora
pela
inviabilidade do
casamento,
ora
pelo
erro do
adultério
ou da
prostituição.
Os
heróis passam
de
amantes a
impotentes —
ou
como diria
Camilo
Castelo
Branco: de
felizes a
desgraçados —
e o morrer-de-amor,
como
representação
máxima da denegação do
impossível da
relação
sexual,
transforma-se no
fracasso de
um
sonho de
amor...
O
mito do
amor, na
literatura portuguesa,
encontrará as
suas
origens no
entrecruzamento
entre as
cantigas
galego-portuguesas de
amor e de
amigo. Nas
cantigas de
amigo, vamos
encontrar
um
amor
que justifica
os
desvios de
virtude das
donzelas
apaixonadas.
Mentir
por
amor,
dissimular
para a
mãe e se
entregar
como
prova de
amor
são os
comportamentos
descritos pelas
donzelas nas
Cantigas de
Amigo,
com
bem demonstra Leodegário
A. de Azevedo
Filho, no
seu
livro
As
Cantigas
de Pero Meogo. Nessas
cantigas,
não há
lugar
para o morrer-de-amor das
Cantigas de
Amor. Nestas
últimas, a
dor de
morrer-de-amor revela-se
para o
imaginário do
trovador
como
gozo,
que, ao
contrário das
cantigas de
amigo,
não se
inscreve
pela
via do
sexual.
Nas
cantigas de
amigo, o
trovador, ao
usar a
máscara de uma
donzela
apaixonada,
não
canta
mais
um
amor
impossível e
sim as
maravilhas do
amor.
São
depoimentos
líricos de "mulheres"
que
ora suspiram,
ora se
entregam ao
amado
como
prova de
amor. A
conversão do
amor
impossível
para o
amor
que se
sustenta na
Promessa de
Felicidade é a
primeira
grande
virada da
concepção
mítica do
amor na
literatura portuguesa.
Lá, nas
páginas das
cantigas de
amigo,
amor e
gozo
sexual se
deparam
com duas
faces de
um
sonho sonhado
sem os
escombros da
morte.
Esses
dois
gêneros
líricos
trovadorescos
encontram-se,
por
sua
vez,
com a
matéria
da bretanha,
que deu
origem às
novelas de
cavalarias.
Entende-se
por
novela de
cavalaria o
gênero
narrativo,
quer
em
verso,
quer
em
prosa,
que tem
como
característica
fundamental
apresentar uma
sucessão de
aventuras,
onde os
protagonistas
principais
são submetidos
a
provas,
que têm
como
função
inseri-los num
modelo
heróico,
já
que saem delas
sempre
com
êxito. Uma
história
com
princípio,
meio e
fim se encaixa
em
outra e
mais
outra, tendo
como
fio
condutor da
narrativa uma
trama
central.
Nessas
novelas de
cavalaria, vamos
encontrar o
entrecruzamento das
influências
cristã e céltica. O
predomínio da
influência cristã na
versão
portuguesa de A
Demanda
do
Santo
Graal é
muito
maior do
que
em Amadis
de Gaula. O
maravilhoso
dos
mitos célticos
(bruxas,
gigantes,
monstros etc),
em Amadis
de Gaula, é substituído,
em A
Demanda
do
Santo
Graal,
pelo
maravilhoso
cristão (vozes,
sinais,
aparições etc.
como
mensagens
vindas do
céu
em
Nome-de-Deus).
Num
primeiro
momento,
tanto
em uma
novela
quanto
em
outra, o
que está
em
jogo é a
renúncia ao
gozo
sexual. Nas
cantigas de
amor, é a
partir de
um sofrimento
sem
fim,
em
função da
inacessibilidade
do
objeto,
que se convoca
o
desejo de
morrer (morrer-de-amor),
encontrando-se
aí
um
gozo
onde o
sexo
não
conta. Na
Demanda,
temos
um
herói,
fruto do
pecado de
seus
pais,
virgem e o
mais
puro de
todos os
cavaleiros,
que se mantém
no
eterno
feminino,
em
nome de uma
verdade
que se
sustenta na
fé da
palavra
encarnada no
Outro,
cuja
face é
Deus-Pai-Todo-Poderoso.
Em
nome dessa
fé, o
herói aguarda
a
fruição de
um
gozo
não
sexual,
que o narrador
nos
conta
que foi
experimentado,
primeiro,
pela
contemplação
da
imagem do
Graal, e,
depois,
quando
sua
alma e o
santo
cálice sobem ao
céu
pela
mão de
Deus.
No Amadis, podemos
dividir a
narrativa
em
dois
momentos.
Primeiro, Oriana está
para Amadis,
assim
como a
Dama está
para o
trovador. Se,
nas
Cantigas de
Amor, a
Dama é
abordada
como
objeto
inacessível e
como
corpo
interditado,
aqui,
já se
estabelece uma
diferença
entre as
cantigas de
amor e esta
narrativa.
Não se
trata
mais de
um
amor
não
correspondido. Amadis e Oriana amam-se perdidamente.
Este
amor,
que é mantido
em
segredo,
porque
só as
personagens
coadjuvantes
com
função de
confidentes de
Amadis e de Oriana sabem dele, se
torna
impossível
em
função da
submissão do
herói ao
código da
cavalaria,
que poderíamos
sintetizar na
obrigação de
correr o
mundo
em
busca de
aventuras.
Assim, as
aventuras das
armas têm
como
função
reproduzir
incessantemente
os
obstáculos
inventados
pelo
amor
cortês
para
que
ele se torne
um
amor
verdadeiramente
impossível. Se
a
privação do
objeto
amado,
segundo as
regras
corteses, exige
fidelidade à
Dama, o
que implica
abster-se de todas as
mulheres, o
gozo se
inscreve,
justamente
aqui,
articulando-se
com o
brilho das
vitórias,
que se
reduplicam uma
após outras,
para serem oferecidas à
amada
como uma
forma de homenageá-la à
distância. A
cada
prova
glorificante,
o
futuro
profetizado
para Amadis
por Urganda se
confirma, escravizando o
herói a uma
imagem
tirânica.
Amadis, o
mais
belo e
mais
valente
entre
todos os
cavaleiros de
seu
tempo, irá
ter o
seu
destino revirado
por
iniciativa de
sua
amada, aquela
que
lhe oferece o
gozo
sexual
como
saída de
um
destino
terrível.
A
lei
que preside o
código
cortês do
amor é violada
para
que
tudo termine
em happy
end, o
que
faz
com
que esta
novela
inaugure na
narrativa o
que
já
era anunciado
nas
cantigas de
amigo,
ou seja, a
junção
entre
gozo e
amor
engenhando uma
Promessa Fálica de
Felicidade.
Nos
textos
inaugurais da
literatura portuguesa, o
mito do
amor se
associa ao sofrimento — exigindo a
renúncia às
mulheres, nas
Cantigas de
Amor e na
Demanda
do
Santo
Graal — e à
Promessa de
Felicidade,
nas
cantigas de
amigo e
em
O Amadis de Gaula.
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