ANÁLISE
DE
UM
POEMA
DA
MODERNA
LITERATURA
ANGOLANA
Leodegário A. de Azevedo
Filho (UERJ,UFRJ,ABF)
Dedico o
texto
a Alberto da
Costa
e Silva e a Ildásio Tavares,
meus
amigos.
Salvato
Trigo, no
livro
Luandino Vieira, o logoteta (Porto, Brasília
Editora, 1981)
escreve, na p. 72:
Não restam
dúvidas,
portanto, de
que,
em
Angola,
especialmente na
região
etnolingüística do Kimbundu,
onde ficam
Luanda e
Dondo, o
bilingüismo
era diluído
pelo
aparecimento
dum
discurso
mestiçado e de
tessitura
não
forçada,
forjada a
partir de cadências mútuas
lexicais, fonológicas e sintáticas.
No Brasil,
diversamente
do
quadro
acima
descrito,
nunca houve o
predomínio de
qualquer
espécie de “discurso
mestiçado”, havendo
apenas
empréstimo de
adstrato,
sobretudo
durante o
período de
bilingüismo
das
entradas e
bandeiras do
século XVII.
Queremos
dizer: as
palavras de
origem
indígena
passavam
por
um
processo de
adaptação
fono-morfológica
para
entrar no
léxico do
português do Brasil,
eliminando-se a
língua dos
índios
em
proveito da
língua dos
colonizadores,
que
afinal
definitivamente
se implantou na América a
partir do
século XVIII.
Em África, o
bilingüismo
persistiu e persiste
até
hoje,
diluíndo-se num “discurso
mestiçado”,
como
acima indicou
o
autor citado.
A
propósito,
em 1948,
observa-se
que os
jovens da
geração de
“Vamos
descobrir
Angola!”, ao
que pensamos,
não chegaram a
pregar
nenhum
movimento de
regresso
cego e
radical às
origens
primitivas da negritude,
como se
isso fosse
possível,
eliminando-se
assim
todo o
longo
processo cultural e
multissecular
da colonização. O
que
certamente
pregaram, e
com
certa
sabedoria, foi
o
regresso ao
mundo da
angolanidade,
em
termos
puramente
culturais. Nesse
sentido,
Salvato
Trigo,
em
livro
acima citado,
lembra
que o
poema “Sô
Santo”, de
Viriato da
Cruz, “pode
ser
justamente
visto
como o
modelo
textual e
discursivo da
moderna
literatura angolana,
anunciada
pela
geração de
‘Vamos
descobrir
Angola’” (op.
cit. p. 77). No
poema
claramente se
exprime uma
forma
própria de
mestiçagem cultural,
criando-se
assim uma
língua
literária
também
mista. Vejamos
o
poema,
bem exemplificativo desse
discurso
literário
mestiçado:
Sô
Santo
Lá vai o sô
Santo...
Bengala na mão
Grande corrente de ouro, que sai da lapela
Ao bolso... que não tem um tostão.
Quando sô
Santo
passa
Gente e mais gente vem à janela
— “Bom dia, padrinho...”
— “Olá...”
— “Beça,
cumpadre...”
— “Como está?...”
— “Bom-om di-ia sô Santo!...”
— “Olá, Povo!...”
Mas
por
que é saudado
em
coro?
Porque tem muitos afilhados?
Porque tem corrente de ouro
A enfeitar sua pobreza?...
Não
me responde, avó Naxa?
— “Sô
Santo teve
riqueza...
dono de musseques
e mais musseques...
Padrinho de moleques e mais moleques...
Macho de amantes e mais amantes,
Beça-nganas
bonitas
Que cantam pelas rebitas:
“Muari-ngana
Santo
dim-dom
ual’o banda ó calaçala
dim-dom
chaluto
mu muzumbo
dim-dom
Sô
Santo...
Banquetes p’ra gentes desconhecidas
Noivado da filha durando semanas
Kitoto
e batuque prò povo cá fora
Champanha, ‘ngaieta
tocando lá dentro...
Garganta cansando:
“Coma e arrebenta
e o
que
sobrar vai no
mar...
“Hum-hum
Mas deixa...
Quando o sô Santo morrer,
Vamos chamar um kimbanda
Para ‘Ngombo
nos
dizer
Se a sua grande desgraça
Foi desamparo de Sandu
Ou se é já própria da Raça...”
Lá vai...
descendo a calçada,
A mesma calçada que outrora subia,
Cigarro apagado,
Bengala na mão...
... Se ele é o símbolo da Raça
ou
vingança de Sandu...
(Poemas, 1961)
O
texto do
poeta angolano Viriato da
Cruz (Angola,
1928 – Pequim 1973) exemplifica
bem o
aqui
denominado
discurso
mestiçado,
como
produto de
um
contexto
também de
mestiçagem cultural, de
que,
aliás, sô
Santo é uma
figura
simbólica.
Como se
vê, o
poema
não está
propriamente empenhado
em
regressar às primitivas
origens da
negritude, eliminando as
influências da
colonização. O
seu
empenho
consiste
em
regressar ao
próprio
mundo cultural
africano,
para resgatá-lo
em
sua
forma
histórica.
Houve
tempo
em
que as
personagens,
como sô
Santo, tiveram
um
papel
importante e
definido na
sociedade angolana, sendo
mesmo
respeitadas
pela
população. A
este
propósito, observa Salvato
Trigo, na p.
80 do
livro
acima
referido,
que o
poeta, “sibilinamente”,
terminou o
poema “com
uma
disjunção
altamente
significativa.”
E cita os
versos:
... Se ele é o símbolo da Raça
ou vingança de Sandu...
E prossegue Salvato
Trigo, na
mesma
página 80: “A
distinção
contida nestes
dois
versos
constitui
como
que uma
chamada de
atenção aos
angolanos, a
fim de
que
eles meditem
no
que aconteceu
com sô
Santo.”
Ou seja: o
leitor terá
que
optar
por uma
entre duas
alternativas.
A
primeira é a
de
ascensão
social,
simbolizada no
poema
por
expressões
como “grande
corrente de
ouro”, “dono
de musseques e
mais musseques”,
“banquetes
p’ra
gentes
desconhecidas”, “noivado
da
filha durando
semanas”, “champanha”,
etc. E a
segunda de
decadência
visível,
com a
figura de sô
Santo a
descer a
calçada,
que
outrora
subia
com
charuto na
boca,
mas
agora desce
com
cigarro
apagado e
sem
um
tostão no
bolso...
Mas
quais seriam
os
motivos
que levaram sô
Santo a uma
situação de
ruína?
Para a
resposta,
após a
morte de sô
Santo, o
povo chamará
um kimbanda (médico,
adivinho,
curandeiro,
exorcista,
mago
ou
profeta)
para
dizer se a
desgraça do
velho (outrora
figura
importante e
poderosa)
adveio
por “desamparo
de Sandu /
Ou se é
já
própria da
Raça...”
Portanto, o
povo vai
buscar na
própria
cultura a
resposta
para a
indagação
feita
ou
para as
causas
responsáveis
pela
ruína de sô
Santo.
Tal
atitude,
como é
evidente,
indica o
caminho a
seguir na
busca de
soluções para
os problemas angolanos – sejam
individuais
ou
nacionais –
dentro da
própria
cultura
histórica do
mundo
africano.
E
por
que Sandu,
como
espírito
protetor do
povo, se teria
vingado de sô
Santo?
A
resposta está
claríssima no
poema:
porque sô
Santo, ao
adotar
hábitos
estranhos e
até
incompatíveis
com a
sua origem e
com a
sua
formação
cultural, deixando-se
assimilar pelos
hábitos e
costumes
estrangeiros,
ou seja,
portugueses, acabou atraindo a
ira
ou
vingança dos
deuses,
que se viram
preteridos
por
ele,
como
traidor de
sua
gente.
Ou seja: sô
Santo teria
sido assimilado, de
forma alienante,
pela
cultura
estrangeira do colonizador, transformando-se
assim num
símbolo
negativo
ou num
herói
trágico-cômico,
para
jamais
ser esquecido pela
memória do
povo.
Como se fosse
um
europeu, sô
Santo
só tirou
proveito
para
si
próprio da
terra
africana,
não
apenas como “dono
de musseques” (quarteirão
de
barracos
habitados
por
negros na
periferia da
cidade),
mas
também
prostituindo a
mulher
africana, ao
se
tornar
macho de
amantes e
mais amantes,
/ Beça-nganas (sentido
de moças solteiras
que
ainda pediam a
bênção aos
mais
velhos)
bonitas.
Mais
ainda:
assimilando
hábitos
europeus dos
colonizadores, sô
Santo
organizou “banquetes p’ra
gentes
desconhecidas”; discriminou os
seus
autênticos
irmãos
étnicos, a
quem enganou
orgulhosamente,
pois deu “ao
povo
cá
fora kitoto (variedade
de
cerveja
feita de milho) e
batuque”,
enquanto “lá
dentro” bebia
champanha
com os
seus
convidados
especiais
ou
gente
estrangeira.
Portanto, a
alienação é
que destruiu
sô
Santo,
não havendo
assim
qualquer
motivo
para se
pensar seja
ele “o
símbolo da
Raça”
que,
por
fatalidade,
estaria destinada
sempre a “descer
a calçada”.
Como se
vê,
historicamente, o
poema recria
uma
época sócio-cultural,
misturando
níveis de
língua num
discurso
bivalente
que,
segundo
Salvato
Trigo,
em
livro
já
aqui citado,
“acompanha os
dois
momentos –
poético e
histórico –
em
que o
texto se
resolve.”
Eis os
dois
momentos
Primeiro:
Muari-ngana Santo
dim-dom
ual’ o banda ó calaçala
dim-dom
chaluto mu muzumbo
dim-dom
Segundo:
Lá vai...
descendo a calçada,
A mesma calçada que outrora subia,
Cigarro apagado
Bengala na mão...
Na
primeira
estrofe,
interpenetram-se
dois
sistemas
lingüísticos: o kimbundo e o
português,
africanizando-se as palavras da
língua
portuguesa
por
adaptações
fono-morfológicas. Veja-se:
calçada
(= calaçala) e
charuto
(= chaluto).
Como se
verifica,
aqui
não
são as
palavras
africanas
que se
incorporam ao
léxico do
português
por
adaptações
fono-morfológicas. Ao
contrário: as
palavras
portuguesas é
que se amoldam
fono-morfologicamente à
língua
africana.
Com efeito, a
passagem de “calçada”
a “calaçala” se explica
por epêntese
da
vogal /a/ e
por
assimilação
regressiva do
/d/ ao /l/,
já
que a
estrutura
vocabular do kimbundo (sempre
cvcv..., consoante +
vogal...)
rejeita a
combinação ccv,
existente
em calçada.
Quanto às
correspondências
isotópicas existentes no
poema,
ainda na
primeira
estrofe, temos
a
figura de sô
Santo
subindo a
calçada
(= ual’ o
banda ó
calaçala); e, na
segunda,
tem-se: descendo a
calçada.
Na
primeira
estrofe, sô
Santo aparece
de chaluto
mu
muzumbo (=
charuto
nos
lábios
ou na
boca),
como
símbolo de
prosperidade;
mas, na
segunda,
vemo-lo de
cigarro
apagado,
como
índice da
decadência
ou ruína. Na
verdade, há
aqui
pares
opositivos
que indicam,
alternadamente,
fartura e
miséria.
Veja-se:
subir a
calçada
/ descer a
calçada;
e
charuto
nos
lábios
ou
na
boca /
cigarro
apagado.
Com
isso, o
poeta parece
sugerir – tomando a
figura de sô
Santo
como
símbolo – a
própria
alteração sofrida
pela sociedade
angolana
em
face da
colonização portuguesa.
Eis o
que, a
propósito, escreve Salvato
Trigo:
Viriato da
Cruz
mostra-nos essa transformação numa
perspectiva
bidimensional,
isto é,
não
apenas ao
nível do
texto
onde o
subir a
calçada
ou a
ascensão
social dos
filhos do
país deu
lugar à
descida
da
calçada
ou à
perda de
importância
social e de
direitos de
cidadania,
mas
também ao
nível do
discurso, ao
nível da
expressão
lingüística: no
tempo
em
que sô
Santo podia “subir
a
calçada” o
povo “cantava
pelas rebitas” [rebitas é o
mesmo
que
baile
ou
festa]
numa
linguagem
onde o
kimbundu e o
português se casavam
sem
complexos, se
angolanizavam;
agora,
que
ele a desce, o
português normativo
impõe-se. Nesta transformação da
linguagem,
nesta
mudança do
discurso
crioulizado
para o
discurso
genuinamente
português, terá o
poeta
querido
marcar
todo
esse
período de
europeização
insensata
que
Angola
suportou a
partir do
nosso
século
até ao
fim do
domínio
colonial. A
introdução da
estrofe
em
expressão
lingüística, no
poema Sô
Santo,
significará o
desejo
por
parte de
Viriato da
Cruz de
evidenciar,
como o fez,
por
exemplo,
em Makézù,
que a
literatura angolana deverá
retomar
um
discurso
que pudesse
representar a
situação
cultural e sociológica de
Angola,
onde o “mundo
africano”
tinha
desenvolvido,
durante os
séculos XVI,
XVII, XVIII e
parte do XIX,
uma
linguagem
angolanizada, tradutora do
estado de
aculturação
que a
colonização
não dirigida
tinha
conseguido
estabelecer
em várias ‘ilhas’
do
território,
nomeadamente nas
zonas
litorâneas de urbanização,
conforme
vimos. (op. cit. p. 86).
Como é
sabido,
depois da
colonização “não-dirigida”, intensificou-se,
sobretudo no
início do
nosso
século, a
colonização
francamente
“dirigida
ou
sistemática”,
com
todo
um
processo de
assimilação cultural
ou de
aportuguesamento dos angolanos, nesse
processo incluindo-se: a
criação do
Liceu
Salvador
Correia,
em 1919,
entrando
em
vigor o
ensino
secundário
oficial; a
publicação de
jornais
defendendo o
sistema e a
superioridade cultural do
mundo
europeu; a
proibição,
por Norton de
Matos, do
ensino das
línguas
nativas de
Angola nas
Missões, a
não
ser
para
fins de
catequese; a
ocidentalização dos
veículos de
difusão
cultural,
como o
cinema e o
teatro; a
construção arquitetônica à
maneira
européia; e o
asfalto
como
índice de
riqueza das
cidades,
em
contraste
com a
miséria
dos musseques e das sanzalas,
tudo
isso
concorrendo
para a valorização
crescente da
colonização portuguesa
em
detrimento do
mundo
africano. Daí
se conclui
que o
poema de
Viriato da
Cruz,
implicitamente, contém uma
crítica
amarga aos
que forçaram a
transformação de uma
sociedade
africana numa
sociedade européia,
alienando as
pessoas
por
um
intenso
processo de
assimilação e pondo na
marginalidade
todos
aqueles
que se
opusessem a
isso. E
aqui, de
novo, recorremos à
exegese de
Salvato
Trigo: “sô
Santo evoca
essa transformação, ao
mesmo
tempo
em
que invoca o
mundo angolano
que a precedeu
e a
que a
geração do
“Vamos
descobrir
Angola!”
deseja
regressar
para, a
partir dele,
construir uma
literatura
capaz de
traduzir,
como dizia
Agostinho
Neto, “a
melodia
crepitante das
palmeiras /
lambidas
pelo
furor de uma
queimada.” (op.
cit. p. 86).
Sem
dúvida alguma,
houve
muita
gente
“assimilada”, a
exemplo de Sô
Santo.
Mas
também crescia
enormemente a
massa
marginalizada,
que falava o
“pretoguês” (dialeto
crioulo),
ou
mistura de uma
língua
românica
com
línguas
nativas num
discurso
mestiçado
que adaptava o
sistema
lingüístico do
português ao
sistema das
línguas
africanas,
sempre
falado
nos musseques
e nas sanzalas,
espécie de
dialeto
crioulo,
montado na
lei do
menor
esforço e da
nostalgia. Daí
surgiu o
conceito de
decalque
como a
tendência
que tem o
aloglota
em
adaptar às
estruturas de
sua
língua
materna os
elementos
advindos da
língua
estrangeira.
Inversamente, na
língua
falada
pelos
“assimilados” e
também na
língua
literária, a
penetração de
elementos das
línguas
nativas
ou maternas na
estrutura da
língua
portuguesa, de
forma
perfeitamente
compreensível,
nunca deixou
de verificar-se. A
propósito disso, conclui
Salvato
Trigo: “a
diglossia,
que a
língua
portuguesa suporta
sem
grandes
conflitos, é o
preço
que
ela teve de
pagar,
enquanto
língua de
diáspora.” (op.
cit. p. 88). E, na
mesma
página,
acrescenta:
É essa adaptabilidade, essa
ductilidade
da
língua
portuguesa,
que se presta
a enxertias e nativizações, deixando-se
mestiçar
com
um
certo
à-vontade e
sempre
dentro dos
limites da
língua,
que dilui o
drama
lingüístico
que as outras
línguas de colonização provocaram.
No
texto
acima
transcrito, observa-se
que o
termo
diglossia foi
empregado de
modo
muito
pessoal. Na
verdade,
aqui
nos parece
que se deva
falar
em
bilingüismo,
ou seja, a
capacidade
que tem
um
indivíduo de
usar duas
línguas
distintas, no
caso a
angolana e a portuguesa,
como se ambas
fossem maternas, optando
por esta
ou
por aquela
em
função do
momento
social
em
que se
encontra.
Portanto,
tal
capacidade é
diferente da
que possa
ter
um
indivíduo de
falar e de
escrever uma
língua
estrangeira (diglotismo)
ou várias
línguas
estrangeiras,
em
casos de
poliglotismo. Seja
como for, a
interpenetração de
sistemas
lingüísticos,
tanto
nos
casos
naturais de
bilingüismo,
como
nos
casos de
diglossia
ou poliglossia,
gerando as
deformações
dos
discursos
mestiçados
ou
híbridos, no
fundo, o
que faz é
provocar
diferentes
formas de
dialectação. Se a
língua de
base for a
portuguesa,
para ficarmos no exemplo
angolano, os
termos da
língua
materna
serão tomados
de
empréstimo,
com
naturais
adaptações
fono-morfológicas.
Ou seja: há
um
processo de
aportuguesamento,
como ocorreu
no Brasil
com
palavras de
origem
indígena,
em
geral
referentes à
fauna e
flora, e
também
com
palavras de
origem
africana
ou
mesmo de
outra
procedência,
todas
elas se
incorporando ao
léxico do
português da América.
Mas se, ao
contrário, for
africana a
língua de
base, nela
penetrando,
por
empréstimo
lingüístico, os
termos da
língua
portuguesa, o
que se vai
ter é
um
processo de africanização
do
português.
Além disso, há
os dialetos
crioulos,
que se formam
no
seio de
populações
analfabetas e
que resultam
de
interpenetração
de
sistemas
lingüísticos
diferentes,
com
deformações
recíprocas de
formas de
expressão, e redução flexional numa
situação
nunca
inteiramente
estável, de
tal
forma
que se tornam,
muitas
vezes,
ininteligíveis
para os
falantes de
uma
mesma
região.
Em
síntese,
dentro de
qualquer
sistema
lingüístico,
há
sempre duas
forças: uma
agregadora e
outra
desagregadora. A
primeira
responde
pela unidade e
permanência da
língua,
enquanto a
segunda
responde
por
sua
desintegração.
Quando a
primeira
força, a
agregadora, se sobrepõe à
segunda,
que é a
desagregadora, o
sistema
permanece o
mesmo
em
sua
unidade.
Quando as duas
forças se
equivalem, o
sistema
permanece numa
situação de
equilíbrio
dinâmico.
Mas, se a
força
desagregadora se sobrepõe à
força
agregadora, é
claro
que o
sistema se
desarticulará, fragmentando-se a
língua. No
caso do
português de
Angola,
como no
caso do
português das
demais
nações
africanas
que integram o
mundo
lusófono,
parece de
alta
conveniência manter –
ou envidar
esforços nesse
sentido –
sempre
em
situações de
equilíbrio as duas
forças
acima
indicadas.
Com
efeito, a
flexibilidade e plasticidade da
língua
portuguesa, amoldando-se à
necessidade de
expressão de
povos
etnolingüisticamente
distintos,
graças à
ductilidade
com
que se
deixa
usar, atingem
limites
que seriam
insuportáveis
por outras
línguas, de
tal
forma
que as
literaturas
africanas dificilmente poderiam
ser expressas
em
qualquer
outra
língua de
colonização,
sem
graves
prejuízos.
Como o
texto
aqui
nos
mostra, o
povo
colonizado apoderou-se da
língua
portuguesa
para dominá-la e
até
africanizá-la, na
construção de uma língua
literária
independente de Portugal.
Em outras
palavras,
fundamentalmente, a langue parece a
mesma,
mas
já é
outra a
dinâmica da
parole. No
caso, o
que vai
importar é a construção de
uma estética
literária
africana,
perfeitamente
capaz de
exprimir, numa
língua de
cultura
ou de
civilização
escrita, no
caso a
portuguesa, o
sentimento
profundo do
povo,
diante da
grandeza e da
precariedade
da
própria
condição
humana.
Em
suma, convém
distinguir,
claramente,
africanização de aportuguesamento. Os
empréstimos
lingüísticos
de
línguas
africanas
que se ajustam
à
morfologia
portuguesa
nada têm a
ver
com o
fenômeno de
africanização, e
sim
com o
fenômeno de
aportuguesamento, enriquecendo-se o
vocabulário do
português do Brasil. Ao
contrário,
quando
línguas
africanas recebem
empréstimos
lingüísticos
do
português, a
exemplo do
que se
vê na
primeira
parte do
poema
em
causa (calaçala
por
calçada),
aí,
sim, temos o
fenômeno de
africanização,
próprio de
discursos
mestiçados
ou de
dialetos
crioulos.
Em
tudo
isso, o
importante
não é
ter muitas
línguas
ágrafas,
mas
dispor, ao
lado delas, de
uma
língua de
civilização
escrita, no
caso a
portuguesa,
que é a
sexta
língua
materna
mais
falada no
mundo,
ocupando o
imenso
espaço
etnolingüístico da lusofonia,
com
cerca de
duzentos
milhões de
falantes. E o
novo
milênio exige
o
fortalecimento
dos
grandes
blocos
lingüísticos,
entre
eles
incluindo-se a
língua
portuguesa,
já
agora
com a
presença de Timor
Leste, ao
lado das
cinco
nações
africanas de
língua
oficial
portuguesa, e ao
lado do Brasil
e de Portugal.