A POÉTICA DE ALGUMA POESIA

Carlos Sepúlveda (UVA e ABF)

A Leodegário Azevedo Amarante porque sabe responder com o único argumento irrespondível: trabalho.

Todos estamos de acordo com que Carlos Drummond de Andrade é um dos mais expressivos poetas, senão um dos maiores, em Língua Portuguesa. Nenhum de nós, interessado em literatura, deixa de incluir o poeta de Itabira na genealogia que vem de Camões e chega a quatro nomes irrefutáveis na poesia brasileira do século XX: Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral de Mello Neto e Fernando Pessoa. Sob este aspecto, o nosso último século – pelo menos na poesia – foi assombrosamente profícuo.

No entanto, permanece a questão: por que Drummond é um poeta extraordinário? Ou melhor: o que significa uma poesia extraordinária? Quais os critérios usuais para definir um poeta como extraordinário?

Não são considerações triviais, muito menos são questões fáceis de serem compreendidas, porque, para serem aceitáveis sob um padrão racional, devemos ir além do gosto pessoal ou mesmo da impressão, do senso comum.

Afinal, tem sido este o esforço da crítica mais aparelhada que, desde os anos 1950, vem se esforçando por encontrar uma linguagem que seja, ao mesmo tempo, portadora de alguma cientificidade sem perder a capacidade de comunicar-se com um público mais amplo.

Comecemos, porém, com este crítico literário implacavelmente justo e incorruptível chamado tempo. Neste caso, o julgamento continua favorável a Drummond. Iniciando em 1930, com a publicação de seu primeiro livro, Alguma poesia, há exatos 72 anos, sua obra vem sendo lida e relida por, pelo menos, três gerações de leitores e igualmente interpretada pelos críticos, e não tem senão sofrido, cada vez mais, consistentes e generosas avaliações além de inúmeras traduções para as principais línguas de cultura.

Com efeito, a fortuna crítica de Drummond de Andrade começa com nada mais nada menos do que Mário de Andrade, para quem é dedicado o livro, e que, em um dos capítulos de seu Aspectos da literatura brasileira, já o considerava um poeta notável. Na verdade, a fortuna crítica de Drummond só não supera a de Machado de Assis.

Diz dele Mário de Andrade:

A Análise de Alguma Poesia dá bem a medida psicológica do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drummond de Andrade pra melhor achar pelo livro o tímido que ele é. Pra ele se acomodar, carecia que não tivesse nem a sensibilidade nem a inteligência que possui. Então dava um desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem saber o que são, cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os felizes! Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo é, ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo.

(MARIO DE ANDRADE In: Aspectos da Literatura Brasileira, p. 33.)

Existe mesmo uma incômoda unanimidade em torno da obra do poeta mineiro que, até o presente momento, ao completar seu primeiro centenário de nascimento, não apresenta o mais leve indício de fissura ou contestação, muito ao contrário.

É uma das raríssimas unanimidades no mundo das letras, mundo tão sensível a idiossincrasias e preferências nem sempre edificantes.

No entanto, permanece a incômoda observação: o que exatamente faz de Drummond este poeta incomparável? Ou, na nomenclatura de Harold Bloom, um poeta forte?

Não me disponho, é claro, a responder esta indagação na amplitude que mereceria. Faltam-me engenho, arte e tempo, já que se trata de uma apresentação preliminar. Pretendo, na brevidade desta conferência, trazer para os prezados ouvintes e confrades da Academia, alguma reflexão sobre a obra de Drummond, buscando compreender, em linhas gerais, a magnitude de sua poesia, detendo-me, especialmente, em seu primeiro livro.

Comecemos, pois, pelo princípio. Afinal, em que consiste esta atividade inofensiva, perfeitamente inútil e dispensável chamada poesia? Para que serve? Por que existe? Ou por que resiste em meio à cultura da barbárie tão difundida entre nós?

A existência da poesia tem a ver com uma relação profunda que cada um de nós tem com o mundo a nossa volta, posto que, na condição de humanos, somos uma espécie capaz de pensar seu próprio estar-no-mundo. Somos dotados de vontade de saber, indagamos pelas origens e fins do que chamamos vida ou existência. E somos a única espécie a adivinhar sua própria morte, a percebê-la como evento inevitável de nosso lançar-se para o mundo.

É perfeitamente compreensível que estas qualidades não sejam praticadas por todos os homens. Grande parte da humanidade passa pela vida sem sequer saber que existe uma dimensão com tal nível de delicadeza, embora todos sejamos capazes de pressenti-la. Pouco importa: Rimbaud costumava dizer que por delicadeza perdeu sua vida; a poesia é uma dessas pequenas gentilezas que temos o dever de cultivar e que muitas vezes nos custam a vida.

Alguns dentre nós, por artimanhas não se sabe de quem, podemos desenvolver uma espécie de vocação ou de mania: o trabalho da linguagem, que nos comove até a obsessão.

Um dos filósofos que mais se preocupou com esta questão – o alemão Martin Heidegger – escreveu certa vez que a linguagem não é nossa como um instrumento, nós é que somos dela, como seus protegidos ou seus expatriados, que entra em ressonância com Fernando Pessoa, para quem a pátria é a língua portuguesa.

De algum modo, ele estava nos mostrando que tudo o que somos, enquanto seres atirados neste mundo, só pode ser compreendido a partir da linguagem, do trabalho insano de buscar para nós um sentido. Nascemos para fazer sentido, para produzir e compreender o sentido oculto das coisas que se concentra na linguagem.

O Poeta é aquele irremediavelmente movido por esta terrível obsessão. Tudo o que ele pretende é ampliar os limites da linguagem, porque sabe, como esclarecia Wittgenstein, que os limites do mundo são os limites da linguagem. Ou ainda, como pronunciaria Roland Barthes j’ai une maladie, je vois le langage. (Eu sofro de uma doença, eu vejo a linguagem).

O que quer o poeta é algo preliminarmente impossível, porque, ao mergulhar nesta avassaladora obsessão, em busca do sentido mais puro para as palavras da tribo, como disse Mallarmé, o que ele encontra é o mistério do silêncio, do não-dito. Esta interrogante fatal a que todos nós nos submetemos por simplesmente sermos humanos.

E daí explode esta desesperadora contradição: o máximo de sentido se concentra no máximo de silêncio, mas, para fazer falar o silêncio e aprisioná-lo na estrita convenção da língua, necessitamos de linguagem. O poema absolutamente perfeito é o improvável poema feito de silêncios, expresso talvez na folha branca, e só resta ao poeta o trabalho diuturno da lutar com as palavras, mal rompe a manhã.

Nesse sentido, todo poema é um retumbante fracasso.

A poesia – do grego poiesis – é o trabalho da transfiguração, da fabricação, da invenção, da transformação. A poesia é o exercício da possibilidade de encontrar nas palavras os sentidos não explícitos, os silêncios, o mais secreto silêncio nas profundezas do que surpreende o poeta, porque a linguagem, dirá Eduardo Portella, não é coisa que se diga, mas a força com que se diz.

Fazer silêncio é dizer, já, posto que o restar silencioso é a palavra radicalizada, o logos, do poeta.

Supor o que dirá/ tua boca velada/ é ouvi-lo já, anunciava Fernando Pessoa.

Um velho mito grego associa o arco, instrumento de guerra, e a lira, instrumento da paz. O arco, porque arremessa a seta contra o peito do inimigo e o imobiliza; a lira, porque arremessa o epos, a palavra poética, que, como a seta, imobiliza o ouvinte e o submete. A seta jamais esquece o arco de que foi flecha (João Cabral), assim a lira: jamais esquece a possibilidade do encantamento.

Mas então, o que fez Drummond e que o tornou poeta maior em nossa língua?

Já prenuncio uma certa indecisão no que diz respeito à concepção de maior e melhor, num mundo mergulhado no multiculturalismo e relativismos. Não pretendo entrar neste debate, já basta o Iraque. Prefiro admitir que possa existir, sim, uma certa hierarquia, senão de gostos, ao menos de valores.

Vou-me concentrar, para tratar resumidamente a questão, em seu primeiro livro, publicado exatamente em 1930, chamado, como foi dito, Alguma poesia.

Drummond estava vivendo, aos 28 anos, em Belo Horizonte, as influências do modernismo brasileiro, de recorte paulista, que pode ser resumido como uma tentativa – bem sucedida – de atualizar a arte brasileira em face dos grandes acontecimentos no mundo pós 1914, ano em que eclodiu a primeira guerra européia.

Tratava-se de romper com a tradição literária bem comportada, simbolizada, sobretudo, pelo verso parnasiano, rimado, rigidamente metrificado; romper com o academicismo ranzinza que via na literatura o sorriso da sociedade, ignorando a formidável diversidade social e cultural brasileiras e o potencial crítico da poesia.

Drummond, que se correspondia com Mario de Andrade, acabou por ser levado de roldão pela semana de 22, pelo espírito renovador do grupo paulista cuja influência se espalhou pelo país inteiro, chegando a Belo Horizonte quando o poeta contava apenas 20 anos de idade.

Publicados 200 exemplares da obra, por seu próprio financiamento, que ele distribuiu entre seus amigos intelectuais, este primeiro livro de Drummond inaugura, esplendidamente, a fase construtiva do modernismo, a geração de 1930, a mais bem sucedida de todas, bastam os nomes que nela se inscrevem: Bandeira, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, dentre tantos outros.

Abandonemos, porém, este esboço de história da literatura e voltemos à indagação inicial: o que fez de Drummond o grande poeta em que se tornou?

Sugiro que nos concentremos em seu primeiro livro.

Alguma poesia constitui-se de 49 poemas, a maior parte deles em verso-livre. O que significa, porém, o versolivrismo? Não é, de modo algum, ausência de métrica, mas a subordinação do tamanho do verso ao ritmo psicológico, liberando o poeta para adotar o ritmo que bem couber, consoante a pulsão criadora do momento, conforme o instantaneísmo e o desvairismo pregavam. Seu maior propagador é justamente Mario de Andrade, leitor e divulgador, entre nós, do pensamento estético mais avançado e, last but not least, das obras de Freud e seu inconsciente, o que deu no surrealismo.

O verso clássico, de métrica cerrada, obrigava o poeta a engessar o ritmo, tornando-se, segundo os modernistas, monótono, bem comportado, artificial, etc. Este mesmo verso clássico contra o qual Manuel Bandeira declara guerra total com o famoso Libertinagem em que escreve: abaixo o lirismo comedido/ quero o lirismo dos bêbados/ dos clowns de Shakespeare.

É claro que a polêmica prossegue se arrastando entre os poetas de hoje, de modo que uma discussão mais rigorosa do problema exigiria outra conferência. Por enquanto, aceitemos o fato de que o jovem inteligentíssimo e sensibilíssimo Drummond, plenamente convertido ao evangelho modernista, começa sua trajetória sem par na poesia brasileira.

Ao abrirmos o livro, encontramos, logo de início, o citadíssimo poema de sete faces. Aqui, sugiro uma hipótese de trabalho: na minha avaliação, este poema-síntese foi escrito depois da obra pronta, foi escrito por último, e serve de legenda ou roteiro de orientação para a leitura dos outros 48 textos.

Examinemos o poema, em sua integralidade:

POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus,

pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Observemos que as sete estrofes em que se divide o poema se referem a situações declaradamente existenciais, vividas objetiva e subjetivamente pelo poeta. Das sete estrofes-faces do poema, apenas a segunda e a quarta dispensam marcas explícitas da subjetividade, embora o verso a tarde talvez fosse azul permita, em razão do advérbio talvez, pressentir a presença de uma subjetividade, posto que a dubiedade faz parte do inventário do eu.

De todo modo, façamos um estudo dos indiciamentos de primeira pessoa:

PRIMEIRA ESTROFE

nasci/Carlos

SEGUNDA ESTROFE

talvez

TERCEIRA ESTROFE

meu/meus

QUARTA ESTROFE

****

QUINTA ESTROFE

meu/me/eu/eu

SEXTA ESTROFE

eu/me/meu

SÉTIMA ESTROFE

eu/essa/esse/a gente

Como se pode notar, Drummond usa e abusa da presença do Eu lírico, inclusivo nomeando-o (primeira estrofe = Carlos) e indicando-o (quarta estrofe = o homem), com alguma semelhança com os românticos, porém – e isto é importante – não permitindo que estas expressões subjetivas escapem a um rigoroso controle da emoção, por meio da ironia, do princípio corrosão/dissolução, das metáforas desconstrutoras e objetivações do próprio EU.

Confirmando esta leitura, o poeta nomeia, em uma antologia de seus próprios poemas, por ele mesmo selecionados, de eu todo retorcido a estas variações ciclotímicas da subjetividade.

Minha hipótese é que cada uma das sete faces do poema (as sete estrofes) se reduplicam, ampliadas e problematizadas, em cada um dos outros 48 textos. Assim, incluindo o primeiro texto, são 49 poemas, múltiplos das sete faces. Sustento que cada poema de Alguma poesia tem relação com uma ou mais estrofes do poema inicial, que por sua vez funciona como um arquitexto, isto é, um texto através do qual podem-se ler todos os outros.

Para avançar em minha hipótese, analisemos, em separado, cada uma das sete estrofes do poema de sete faces.

1. PRIMEIRA FACE: subjetividade do eu em si.

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Neste caso, temos o máximo de subjetividade, pela retórica confessional do poeta, no entanto diluída na desconstrução metafórica e ousada do anjo torto/ que vive na sombra e do gauche predestinado por este anjo iconoclasta e desautomatizado. Este ser-em-si, lido por Carlos, ele mesmo, como uma fatalidade, é que vai marcar sua persona poética um tanto cética em relação ao mundo e as coisas, reflexo, possivelmente, da má consciência e do mal-estar que nos tomou de assalto no século XX.

Vamos encontrar, por exemplo, no poema de ordem # 2, Infância, a ampliação desse eu-em-si prenunciado na segunda estrofe.

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

– Psiu...Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro...que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Este poema retoma um princípio da poética modernista de 1922, o coloquialismo associado ao cotidiano familiar do poeta, o que nos transmite uma sensação de doce intimidade, a familiaridade da família patriarcal mineira que o poeta recorda.

É curioso notar que, à semelhança de André Malreaux, para quem un viel homme est toujours Robinson – um velho é sempre Robinson – Drummond retoma imagens da infância para talvez explicitar a origem daquele gauche na vida.

2-SEGUNDA FACE: Subjetividade do eu-para-si: o eu social.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

De recorte surrealista, bem ao gosto da época, esta segunda face apela para a alogicidade e para as imagens caóticas do inconsciente, por isso subverte princípios da enunciação lógica. As casas que espiam homens numa tarde talvez azul podem ser a representação das estruturas externas ao sujeito que se fundam e se organizam na ordem social repressora.

Do ponto de vista formal, a métrica de oito sílabas, francamente desusada na poesia brasileira, contraria a tendência declaradamente modernista do verso livre, mas confirma a norma como padrão do que é o social, sobretudo em relação à interdição do desejo.

Pois esta tensão entre o desejo e sua interdição é que vai freqüentar com muita assiduidade a poética de Drummond e já antecipando aquela percepção trágico moderna do homem contemporâneo, obrigado a viver o paradoxo entre a vontade de poder de um Eu interior, exuberante e imperial, e as restrições cada vez mais contundentes do mundo exterior, da realidade.

3-TERCEIRA FACE: O eu-para-o-outro como desejo.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

A oposição olhos X coração, ver versus sentir, expressa a problemática do poeta quando jovem, em face da sensualidade ainda não percebida por ele como uma maneira de estar-no-mundo, pois se somos seres sociais, históricos, culturais somos também objeto de um desejo para o outro.

A fixação na imagem das pernas, que é recorrente no livro, surgindo mais de uma dezena de vezes, repete o tema do desejo, em que o dístico final, assinalado pela adversativa porém, marca a solução resignada e o império do ver sobre o sentir.

Em toada de amor, poema de ordem # 6, o poeta repete o tema do humor, com um dístico final, de sabor quase folclórico, em métrica coincidentemente de oito sílabas, sugerindo alguma ousadia descritiva aberta à variada interpretação.

E o amor sempre nessa toada:

briga perdoa perdoa briga.

Não se deve xingar a vida,

a gente vive, depois esquece.

Só o amor volta para brigar,

para perdoar,

amor cachorro bandido trem.

Mas se não fosse ele, também

que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,

no teu pito está o infinito.

Desnecessário enfatizar o sabor coloquial desses versos. O que talvez mereça observação seja o dístico final, com evidente sentido desestruturador de um possível sentimentalismo romântico que pode, eventualmente, perpassar os versos e que a retórica modernista denega.

4-QUARTA FACE: Subjetividade de eu-para-o-outro como identidade social.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Visto pelo suposto olhar do outro, o poeta descreve sua própria imagem especular. De certo ela é perfeitamente coerente com a imagem inicial do gauche, do homem fechado em si mesmo, ensimesmado, sob a máscara do óculos e do bigode que, em seu conjunto, disfarçam a intimidade dele.

Esta auto-imagem, na verdade recolhida a partir de um suposto olhar exterior, confirma o traço melancólico do jovem poeta, da mineiridade desconfiada e prudente que caracteriza o estar consigo daquela gente de Minas, mesmo quando como outro ou o outro do outro.

No poema de ordem #19, intitulado política este eu objetivado, este eu-coisa, explode em força e vigor, frente ao poder libertário do suicídio. Curiosamente, o suicídio, ato radical nem sempre desesperado, voltará a ser tema de Drummond em outros poemas.

Vivia jogado em casa.

Os amigos o abandonaram

quando rompeu com o chefe político.

O jornal governista ridicularizava seus versos,

os versos que ele sabia bons.

Sentia-se diminuído na sua glória

enquanto crescia a dos rivais

que apoiavam a Câmara em exercício.

Entrou a tomar porres

Violentos, diários.

E a desleixar os versos

Se já não tinha discípulos

Se só os outros poetas eram imitados.

Uma ocasião em que não tinha dinheiro

para tomar o seu conhaque

saiu à toa pelas ruas escuras.

Parou na ponte sobre o rio moroso,

o rio que lá embaixo pouco se importava com ele

e no entanto o chamava

para misteriosos carnavais.

E teve vontade de se atirar

(só vontade).

Depois voltou para casa

livre, sem correntes

muito livre, infinitamente

livre livre livre que nem uma besta

que nem uma coisa.

Trata-se, como se pode entender, de uma narrativa em que o poeta, sempre gauche, na verdade encontra no seu desespero a liberdade que lhe faltara.

5-QUINTA FACE; A subjetividade do Eu-metafísico.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

A religiosidade desempenhará uma função importantíssima na obra de Drummond, sobretudo porque ele a vê, não como via consoladora, mas como expressão máxima de uma tensão moral entre o homem, ser precário e frágil, e a grandeza de um Deus incomunicável, impossível de ser compreendido pelo homem.

A interrogação expressa na estrofe tem, é claro, relação com as sete falas de Cristo no evento da crucificação. De novo, o número sete estruturando o poema.

O poema de ordem # 48, Romaria atribui à imagem de Jesus crucificado, barrocamente, a possibilidade de estar sonhando com outra humanidade, em razão da fragilidade moral do homem moderno. Com ousadia temática, Drummond parece fazer de Jesus, ele também, um grande gauche. Talvez ele o fosse mesmo.

Os romeiros sobem a ladeira

cheia de espinhos, cheia de pedras,

sobem a ladeira que leva a Deus

e vão deixando culpas no caminho.

Os sinos tocam, chamam os romeiros:

vinde lavar os vossos pecados.

Já estamos puros, sino, obrigados,

mas trazemos flores, prendas e rezas.

No alto do morro chega a procissão.

Um leproso de opa empunha o estandarte.

As coxas das romeiras brincam no vento.

Os homens cantam, cantam sem parar.

No adro da igreja há pinga, café,

Imagens, fenômenos, baralhos, cigarros

e um sol imenso que lambuza de ouro

o pó das feridas e o pó das muletas.

Meu bom Jesus que tudo podeis,

Humildemente te peço uma graça.

Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,

Do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,

muito dinheiro para eu comprar

aquilo que é caro mas é gostoso

e na minha terra ninguém não pissui.

Jesus meu Deus pregado na cruz,

me dá coragem pra eu matar

um que me amola de dia e de noite

e diz gracinhas a minha mulher.

Jesus Jesus piedade de mim.

Ladrão eu sou mas não sou ruim não.

Por que me perseguem não posso dizer.

Não quero ser preso, Jesus é meu santo.

Os romeiros pedem com os olhos,

pedem com a boca, pedem com as mãos.

Jesus já cansado de tanto pedido

dorme sonhando com outra humanidade.

São claros os dois blocos deste poema: no primeiro, de fundo descritivo, o poeta se resume a desenhar a romaria; no segundo, a partir principalmente da sexta estrofe, ouvimos várias falas dos romeiros que pedem solução para seus conflitos cotidianos, ignorando a face propriamente sagrada da imagem. Todos os versos estão metrificados em nove sílabas, raramente usual em nossa língua e que lhe confere uma pronúncia claudicante e obstacularizada, e que Drummond se utiliza em vários outros momentos.

Frente a esta desilusão, Jesus desiste desta humanidade e é visto por ele como um homem que, na cruz, dorme, sonhando outra humanidade.

6- SEXTA FACE: A poesia como consolação: a poesia sobre poesia.

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo

mais vasto é meu coração.

Das sete estrofes que compõem as sete faces de Drummond, esta é a mais elaborada, do ponto de vista do estilo.

Composta ritmicamente por dois pares de versos de sete sílabas, os versos 1 e 2, 3 e 4, entremeou-as com um espantoso verso de 14 sílabas (7 + 7) do seguinte modo:

1-2-3-4-5-6-7

1-2-3-4-5-6-7

1-2-3-4-5-6-7-8-9-10-11-12-13-14

1-2-3-4-5-6-7

1-2-3-4-5-6-7

Todos rimados do seguinte modo:

Mundo/Raimundo/mundo

Solução/ coração.

Certamente, o esquema rímico é paupérrimo, mas, considerando o efeito obtido pelas aliterações em /m/ e em /u/, que traduzem a imagem acústica do desencanto, pela baixa tonalidade musical dos versos, Drummond obtém esplêndido resultado formal, revelando sua excepcional qualidade poética.

É, sem dúvida, a confissão da impotência da poesia em face da dureza do mundo, frente à crueldade do jogo da vida em sua crua realidade, que o poeta, sempre o gauche, não consegue compreender ou aceitar.

No poema de ordem #15, no meio do caminho, ele retoma a técnica da composição acima descrita, uma vez que a pedra que teimosamente se repete no meio do caminho(ressonando o famoso verso de Dante Nel mezzo del camin) é a própria inconveniência da poesia que já não tem lugar garantido no mundo moderno.

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

Este poema, um escândalo para a época (1928) é de uma singeleza exemplar.

Consideremos o sintagma no meio do caminho como [A], e o sintagma tinha uma pedra como [B]. Assim o poema se organiza:

[A][B]

[B][A]

[B]

[A][B]

(...)

(...)

(...) [A]

[B]

[B][A]

[A][B]

Reparem que Drummond se diverte trocando os versos de lugar, como se rolasse uma pedra no meio de algum caminho, e, com isto, introduzindo um caráter lúdico, muito comum no período barroco, mas que a tradição conservadora havia desprezado.

Desnecessário dizer que a pedra é a própria poesia, uma fatalidade inamovível como uma pedra no meio do caminho.

7-SÉTIMA FACE: A subjetividade dissolvida- o princípio corrosão.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Uma das técnicas mais usuais de Drummond é não permitir a plena expressão da subjetividade sentimental, interrompendo esta possibilidade tipicamente romântica por meio do humor e do chiste.

É este princípio-corrosão que gera o famoso poema-piada, geralmente um texto curto, incisivo, abertamente coloquial, que, utilizando-se de um fato cotidiano e, de certo modo, apoético, estabelece um vínculo crítico com a realidade.

O poema de ordem # 37, cota zero, pode exemplificar este princípio

COTA ZERO

Stop.

A vida parou

Ou foi o automóvel?

Não se pode deixar de perceber o terrível dilema exposto no texto: a vida ou a máquina? E não é este, ainda, um dilema contemporâneo?

Num trabalho de maior fôlego, é possível verificar a distribuição dos 49 poemas do primeiro livro de Drummond, tendo em vista o primeiro poema.

Apresento aqui um esboço preliminar de distribuição, de modo que o primeiro número refere-se à ordem de apresentação do poema no texto e o último algarismo, sempre de 1 a 7, a seguir, refere-se a uma das sete estrofes do poema de sete faces:

16-21-33-46-56-63-72-84-96-107-111-125-132-147-156-162-176-183-194-202-214-222-233-246-257-262-272-287-296-302-312-322-336-343-357-361-377-383-394-403-417-421-434-447-452-462-476-485-495.

À guisa de algum juízo conclusivo, e para finalizar, deve ficar evidente que a genialidade do poeta não é um ato gratuito, fruto de uma inspiração divina ou coisa parecida. Na verdade, a poesia, como toda realização no campo da estética, custa o suor da alma.

É possível que os deuses nos dêem o primeiro verso e que ele surja epifanicamente, mas nós temos de fazer os outros versos e, muitas vezes, como sugeria Paul Valéry, corrigir o primeiro.

A atividade do poeta não é isenta de muito esforço, de estudo, de dedicação. Ninguém é poeta porque decidiu sê-lo. O poema exige de nós, além de um certo encantamento com a magia do mundo, um trabalho diuturno de corrigir, cortar, aparar, aprimorar, sempre em busca do que Fleubert denominou le mot juste.

Carlos Drummond de Andrade, já em seu livro de estréia, mostrava ao que veio. Prenunciava-se ali, como já dissera Mário de Andrade, um artista completo. Se vacilava aqui e ali, em algum verso solto ou gratuito, por outro lado o conjunto da obra é excepcional, como espero ter demonstrado, e que indicava um poeta pronto para vôos mais altos.

E foi o que, rigorosamente, aconteceu.

Drummond publicou, em vida, mais de 30 livros e deixou 5 ou 6 inéditos. Sua vida pessoal, de burocrata exemplar, foi perfeitamente desinteressante. Tive a felicidade de vê-lo, algumas vezes, passando pela avenida Graça Aranha, no Rio, apressado e curvo, em direção a algum ponto de ônibus. Outras vezes, descemos juntos algum elevador no Palácio da Cultura, onde trabalhávamos. Nunca tive coragem de dirigir-lhe a palavra, por timidez ou reverência, talvez ambos. Bastava-me a dedicatória de próprio punho que me escreveu em um de seus livros e que guardo como uma relíquia.

Quem o visse passar, anônimo, quase invisível, agarrado a uma velha pasta de couro que portava contra o peito, provavelmente não adivinhasse o mundo espetacular e grandioso que carregava consigo em sua imaginação espantosa.

Sabemos hoje, por imperdoável indiscrição, do vulcão de paixões que nele se continha e que descreveu em versos memoráveis: na curva perigosa dos cinqüenta/ derrapei neste amor.

Mas a um poeta tudo se perdoa. Bendita paixão que se desdobrou em versos magistrais que toda relação verdadeiramente radical é impura.

Resta-nos, a nós, os que amamos a literatura, e em especial a poesia, reverenciá-lo por seus versos que são a glória que enleva e consola.

Drummond é parte inseparável de nosso patrimônio artístico e cultural, fonte inesgotável de nossa brasilidade.

Muito obrigado.