OS ESTUDOS DIALETOLÓGICOS
E O SEU COMPROMISSO COM O ENSINO

Maria Emília Barcellos da Silva (UFRJ e ABF)

Abandonemos, pois, esse ensino inoperante de regras e exceções. Estudemos a língua. (Celso Cunha)

I. INTRODUÇÃO

Inicie-se esta reflexão sobre o lugar da variação dialetal no ensino de português pela retomada do sentido primeiro emprestado à Dialetologia:

DIALETOLOGIA > *4"8©K@:"4 (discorrer) > *4V8,iJ@l, cujas acepções são as seguintes:

Conversação, argumentação, discussão, debate.

Linguagem comum, cotidiana.

Maneira particular de se exprimir, principalmente de falar.

Língua particular.

Desse entendimento, estabeleceu-se a Dialetologia como uma ciência edificada a partir de complexa metodologia de trabalho, com vista à busca dos dados lingüísticos que precisassem, na sua verdadeira fonte e no caso em foco, o português do Brasil.

A pesquisa dialetológica propriamente dita é demarcada em tempos claramente distinguidos, aqui resumidos como antes, durante e depois: (a) a fase ”antes” é caracterizado pela disposição de encetar as tarefas e o planejamento concernentes a essa determinação – é nesse momento que se definem a quem se vai inquirir (informantes); onde se vai perguntar(localidades) e o que se quer saber (questionário); (b) a fase “durante” engloba o período dedicado ao trabalho de campo, quando se realizam as recolhas dos dados; a fase “depois” requer argúcia para que se bem analisem os dados levantados.

A seleção do informante ideal deve atender as características seguintes: ser um indivíduo que pouco tenha mudado de cidade, de idade madura, de inserção rural, do sexo masculino. Os pesquisadores arquitetaram um recurso mnemônico que sintetiza esses quesitos: NORM – N: normal; O: oral; R: rural (não-urbano) M: masculino.

II. OPERANDO CONCEITOS

Para fins de encadeamento desta explanação, é oportuno retomar os seguintes conceitos sobre os quais fundamentar-se-ão as reflexões que se passarão a expor: linguagem, língua, fala, dialeto

Concebe-se a linguagem como a faculdade que o homem tem de exprimir os seus estados mentais por meio da língua, um sistema de sinais acústico-orais, vocais, articulados, que funciona na intercomunicação de uma coletividade, resultado de um processo histórico evolutivo, tal como ocorre com as línguas históricas – o português, o francês, o espanhol, dentre outras. Toda língua histórica apresenta uma estrutura fônica, gramatical e léxica definida e distinta das demais, assim como cada língua histórica é o resultado da diversificação de uma língua anterior – no caso do português, a latina –, cuja organização estrutural foi modificada no tempo e no espaço.

O lingüista francês Henri Gobbard, em Aliénation linguistique (1979), estabelece uma tipologia de linguagem, a partir da qual ele arrola quatro tipos principais de linguagem: a vernacular – a adquirida e exercida no ambiente e limites familiares; a mítica – empregada para expressar as crenças; a referenciária – a linguagem da tradição e a veicular –, a aprendida e divulgada na e pela Escola, de âmbito nacional, que acabará, a seu tempo, por sufocar a vernacular, no afã de buscar uma forma expressiva mais abrangente.

Faz-se oportuno considerar que uma língua, concebida como sistema, é uma abstração e uma generalização consideráveis: sob a denominação de “língua”, vige uma gama de variações decorrente da diversificação da substância concretizada nos atos da fala dos seus usuários: nenhuma língua, pois, é unificada, uma vez que inexiste o que se poderia designar “monobloco lingüístico”.

Numa língua histórica, em geral, detectam-se três tipos fundamentais de diferenças internas: as diatópicas, as diastráticas e as diafásicas, que constituem subsistemas dotados de relativa homogeneidade interna, garantida pela soma dos traços lingüísticos coincidentes neles reconhecíveis.

Desses traços coincidentes, decorrem unidades ditas SINTÓPICAS (os dialetos, tais como o nordestino, o gaúcho), SINSTRÁTICAS (os estratos sociais, tipo linguagem culta, popular), SINFÁSICAS (o estilo de língua: formal, familiar, literário).

Cumpre observar que cada unidade sintópica (dialeto de uma região) pode conter diferenças diastráticas (socioculturais) e diferenças diafásicas (de estilo); cada unidade diastrática pode conter diferenças diatópicas e diafásicas; cada unidade sinstrática (na linguagem familiar) apresentará diferenças diatópicas e diastráticas.

Logo falantes de uma mesma língua, mas de regiões distintas, apresentam características lingüísticas e expressivas diversificadas e, se pertencerem a uma mesma região, ainda assim não falarão obrigatoriamente da mesma maneira, tendo em vista os diferentes estratos sociais de que participam e as circunstâncias diversas em que se trava a comunicação.

III. ISOGLOSSAS E DIALETOS

Para a consecução dos objetivos desta exposição, importa fixar o conceito de isoglossa, de sorte a facilitar o entendimento de dialeto. Assim sendo, opera-se com a definição de isoglossa, uma linha virtual que demarca o limite (também virtual) de formas e expressões lingüísticas.

As isoglossas delineiam contrastes e apontam semelhanças lingüísticas socioculturais (isoglossa diastrática) ou, ainda, configuram diferenças de estilo (isoglossa diafásica). Empregos como os que a seguir se apresentam servem para demarcar isoglossas, tal como se demonstra, como resultado da observação de ocorrências em fala corrente e distensa:

a) anta, significando “esperto” (para uma geração faixa etária mais alta, no Rio Grande do Sul) e “tolo” (para os cariocas em geral);

bergamota, mexerica tangerina, para designar certa fruta cítrica, respectivamente no Rio Grande do Sul, Nordeste em geral, Rio de Janeiro;

a gente vs. nós, como forma inovadora de auto-designação de sujeito;

tchê, cara, ô meu, com tratamento informal para com um interlocutor no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente;

fateco, casquinha, côdea, para designar a camada externa do pão, segundo se colheu no discurso informa de paraenses, cariocas, sendo côdea restrito a faixa etária mais elevada, desta vez substituindo a isoglossa de regional para etária;

passar mal, significando, no RS, “grave problema de saúde”, e “mal-estar, sem grande conseqüências ou importância” no RJ;

dar nela/nele por dar a ela/a ele, tal como foi recolhido em Nova Friburgo, município do Rio de Janeiro.

vigir por viger, o alface por a alface, pespectiva por perspectiva, beneficiência por beneficência, com emprego disseminado por grupos escolarizados, de diferentes níveis e faixas etárias;

pobrema por problema, poliça por polícia, seje por seja, esteje por esteja,de uso freqüente em grupos de baixa escolaridade.

Em todos os casos, há que se observar ser o maior ou menor uso do vocábulo que há de torná-lo mais ou mais ou menos repudiado. Também há que se considerar a fonte de divulgação do termo: no caso de “imexível”, por exemplo, o termo foi repudiado, não por sua formação – estava dentro dos cânones –, mas pelo seu usuário ter sido um político que, à epoca, estava em desprestígio popular.

A natureza dos fatos lingüisticos analisados ou por analisar sugere o tipo de isoglossa a ser estabelecida; assim sendo, serão traçadas isoléxica, isofônicas, isomorfas ou isoglossa sintática, de acordo com centro de interesse, seja ele, respectivamente, lexical, fonético, morfológico ou sintático.

Lexical – isoléxica aponta semelhança designativa de grande parte do falar baiano, excluindo o Sul.

Fônica – isofônica (ainda com base no falar baiano, selecionaram-se 3 respostas para “o que é estrela cadente”: zelação (+ freqüente), velação, exalação, esta com apenas 3 ocorrências); já no Paraná, a “área do leite quente” delimita a isofonia de determinadas produções que contemplam a produção do /e/ final átono.

Morfológica – isomorfa (cantemo, falemo, busquemo, em que a VT se concretiza [e], alternando com [a] de cantamos, falamos, buscamos) – essas isoglossas exemplificam diferenças socioculturais.

Sintática – estruturas proclíticas em vez de enclíticas: me dê um cigarro (preferencial no Brasil) / dê-me um cigarro (preferencial em Portugal).

Essas isoglossas são diatópicas, horizontais, quando apresentam distinções espaciais e diastráticas; verticais, quando apresentam distinções sociais, verticais; são isófonas isomórficas, sintáticas ou isoléxicas pela natureza dos dados analisados.

Partindo-se do entendimento do que seja isoglossa, define-se dialeto como feixe de isoglossas, ou seja, um conjunto de isoglossas somadas que, por conseqüência, portam relativa homogeneidade dentro da comunidade lingüística em confronto com outra(s). Dessa relativa homogeneidade demonstrada pelo conjunto de isoglossas, emerge o entendimento de que inexistem limites rígidos entre as línguas, uma vez que toda língua histórica é um conjunto de dialetos. Considere-se, ademais, que a experiência linguageira do falante o acompanha para onde quer que ele se desloque; portanto não é de espantar por demais que se inculquem sotaques e expressões havidos como típicos de uma região em outros espaços, com outras marcas lingüísticas. Os caminhos e os descaminhos das gentes respondem por encontrar-se, por exemplo, a vibrante múltipla retroflexa – havida como característica do interior paulista – empregada largamente no norte-fluminense, levada certamente na bagagem cultura de algum migrante que por lá fez modelo, levando a se cogitar que o dito retroflexo seja mais uma marca diastrática do que diatópica. Daí a necessidade de se ter o controle da naturalidade e dos movimentos do informante para preservar a recolha dessas invasões e equívocos que acabarão por distorcer a informação

IV. LÍNGUA vs. DIALETO

diferença de status histórico

Ensina Coseriu (1982: 11-12) que

Um dialeto, sem deixar de ser intrinsecamente uma língua, se considera subordinado a outra língua, de ordem superior. Ou, dizendo-se de outra maneira: o termo dialeto, enquanto oposto à língua, designa uma língua menor incluída em uma língua maior, que é, justamente, uma língua histórica (ou idioma). Uma língua histórica – salvo casos especiais – não é um modo de falar único, mas uma família histórica de modos de falar afins e interdependentes, e os dialetos são membros dessa família ou constituem famílias menores dentro de uma família maior.

Daí, ao se aceitar que há variedades diatópicas, diastráticas e diafásicas, pode-se bem concluir que dialeto não é só pertinente a variações regionais, havendo também dialetos sociais e, por analogia, dialetos estilísticos.

Interessa observar que alguns lingüistas, entre eles Coseriu, preferem atribuir o termo dialeto apenas a variações diatópicas; segundo eles, dentro da sua relativa homogeneidade, resultante de uma soma de isoglossas, estão os dialetos que

são subsistemas organizados do ponto de vista fônico, morfossintático e lexical, enquanto as variações diastráticas (de níveis) e diafásicas (de estilo) são subsistemas incompletos, formas parcialmente divergentes de um mesmo dialeto;

muitos dialetos geográficos podem, no curso da história, transformar-se em novas línguas autônomas, ou seja, novas línguas históricas, enquanto os níveis estráticos e de estilo não têm essa possibilidade.

Para fins de organização de tarefas, tem-se por desejável que os fatos recolhidos de diferenças horizontais, regionais, estariam afeitos à Dialetologia, enquanto os verticais, sociais, seriam do interesse da Sociolingüística. Dizendo doutra forma: a Dialetologia tem por centro de interesse o estudo das unidades sintópicas e, sobretudo, as diversidades diatópicas, enquanto à Sociolingüística caberia o estudo das unidades sinstráticas e diastráticas, ficando com a estilística as unidades sinfásicas e a diversidade diafásica.

No entanto esses campos de atuação não são consensuais entre os estudiosos. Por exemplo, Lope Banche (1978: 42) contraria as equações

¨ dialetologia = lingüística diatópica;

¨ sociolingüística = lingüística diastrática.

Segundo ele,

(...) Se a Dialetologia tem como finalidade geral o estudo das falas, deverá tratar tanto das suas variedades regionais como das sociais, tanto do eixo horizontal quanto do vertical.

(...) O fato de a Dialetologia ter dedicado o melhor do seu esforço para o estudo de falas regionais, especialmente rurais, não pode ser interpretado como um fato definidor, mas uma circunstância transitória.

Além da discordância sobre as especificidades dos estudos dialetológicos e sociolingüísticos depreensível das citações dos dois mestres, elas também deixam clara a existência de uma dialetologia rural e uma dialetologia urbana. São exemplos de dialetologia rural os atlas lingüisticos e as monografias regionais; de dialetologia urbana, estudos de normas, como se tem no Projeto de Estudo da Norma Lingüística Culta (Projeto NURC), que estuda a modalidade oral de universitários em cinco cidades brasileiras (Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Porto Alegre) e que confronta a variedade culta das cinco capitais, considerando algumas variáveis extralingüísticas como sexo, idade e tipo de registro.

Considere-se o seguinte quadro resumitivo:

Dialectologia vs Sociolingüística

Estrutura-se no séc. XIX.

Surge na década de 60.

Centra o seu interesse pela dialetologia regional.

Centra seu interesse na variação luz das causas sociais.

Identifica-se com a lingüística diatópica, horizontal.

Identifica-se com a lingüística diastrática vertical.

Fruto de trabalhos de cunho especialmente dialetológico, os atlas podem apresentar metodologias semelhantes para a sua consecução, como é o caso do Atlas Prévio dos Falares Baianos e do Atlas Lingüistico de Sergipe, que contam com informantes de sexo e idade diferentes, controlam a atividade profissional, grau de escolaridade – que varia de analfabeto a alfabetizado –, da mobilidade do informante, da sua composição familiar (naturalidade dos pais e do cônjuge). Essas variáveis, desde a década de 60, importam tanto para Dialetologia quanto para a Sociolingüística. Segundo Silva-Corvalán (1988: 8),

A dialetologia é disciplina de larga tradição, com metodologia bem estabelecida e uma rica e valiosa literatura. É indiscutível que a dialetologia trouxe valiosa contribuição à sociolingüística e à lingüística em geral.

V. Dialetologia vs Geografia lingüística

A GL é um método utilizado pela Dialetologia, e a sua grande importância se revela claramente para a consecução de atlas lingüísticos, os quais já constituem, no Brasil, um rico acervo. Estão publicados o Atlas Prévio dos Falares Baianos, Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais, o Atlas Lingüístico da Paraíba, o Atlas Lingüístico de Sergipe, o Atlas Lingüístico da Paraná; encontram-se em andamento os de São Paulo, o da Região Sul e tem-se notícias da elaboração do Atlas do Acre.

Sobre a importância dos atlas lingüísticos, manifestou-se Nelson Rossi, o grande pioneiro desse fazer:

Hoje não precisa de mais do que bom senso e isenção para compreender que eles (os atlas) permanecem como uma das maiores conquistas da Lingüistica do século XX, mas padecem, como qualquer outro instrumento de trabalho resultante de qualquer outro método, das suas limitações. Dizem muito, dizem mais do que seria possível dizer por outro processo conhecido, valem pelo que permitem dizer a partir deles com segurança e objetividade, mas não dizem tudo. Permitem ver muito em extensão, mas com o sacrifício da profundidade e do pormenor, embora como inventário preliminar constituam o ponto de partida mais seguro para o aprofundamento dos estudos mais exaustivos de áreas menores(...) com dados (...) colhidos ao vivo, que freqüentemente contrariam todos os pressupostos apriorísticos. (Nelson Rossi, 1967: 93)

Na mesma linha, declarou Manuel Alvar (1958: 85):

O grande interesse do atlas está na grande massa de materiais que oferece agrupados; penso sobretudo nas múltiplas surpresas que oferece. (...) As descobertas feitas por um atlas são como brechas numa muralha: através das fendas será possível penetrar no ignorado(...).

Os atlas lingüísticos constituem, juntamente com as monografias regionais, autênticas fotografias de dados; o grande óbice a sua feitura culmina com a dificuldade de sua publicação, para não falar dos custos e sacrifícios para sua recolha e constituição de bancos informativos.

Tanto os atlas quanto as monografias permitem conhecer mais amplamente a diversidade lingüística brasileira, diversidade que sem anular a unidade, reitera a verdadeira dimensão do idioma nacional.

VI. DO TRABALHO DIALETAL

O trabalho dialetal exige sejam cumpridas fases diferenciadas e interagentes, tal como se lista a seguir:

preparação da pesquisa

execução dos inquéritos

exegese e análise do material recolhido

divulgação dos resultados

Preparação da pesquisa – consta fundamentalmente da definição do campo lingüístico a ser investigado e da escolha da área em que se pretende detectar tal ou qual ocorrência.

Definida a área, estabelece-se o suporte de conhecimentos que servirão ao trabalho. A seleção da área é feita com base em suporte histórico, geográfico e social que justifique a escolha realizada, reiterando-se a natureza interdisciplinar deste fazer.

Escolhem-se as localidades, precisa-se o perfil dos informantes e o método de investigação teoricamente pertinente à pesquisa.

O conhecimento então e partir daí auferido permite identificar o grau de antigüidade das localidades, a natureza e a história do seu povoamento, os processos de mudança por que passou – ou está passando – a região, o maior ou menor grau de isolamento da área. Esses cuidados com o espaço geográfico em causa permitirão o necessário traçado da história da região, da sua geografia, da economia e da sociologia, sem que se descure dos estudos lingüísticos já existentes sobre a área.

A localidade, reitera-se, será definida, especialmente, por sua inserção geográfica e histórica, interferências de que tem sido objeto no curso das convivências sociais, tipo de povoamento, situação econômica atual e pregressa, relação com outras áreas, situação demográfica. No entanto a delimitação da área de interesse poderá fundamentar-se no conhecimento prévio de que, em tal espaço, ocorre um dado fenômeno lingüístico, cuja análise se quer priorizar ou pôr em destaque.

O informante deve portar um perfil muito bem delineado para favorecer o controle das variáveis. Deve-se saber onde e quando nasceu o entrevistado, quem são seus pais, cônjuge, grau de escolaridade, domicílio, profissão, períodos em que se afastou da localidade, número e idade de filhos.

A seleção de informantes depende do objetivo da investigação. O Projeto do Atlas dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (Projeto APERJ), por exemplo, elencou apenas informantes do sexo masculino, por ser o homem – e não a mulher – o elemento predominante na atividade pesqueira. Nessa pesquisa, a mulher foi a informante etnográfica pelo que representa como memória das coisas e dos fatos que se sucederam, mudaram, melhor dizendo: foram mudados, e sequer hoje são mais mencionados.

Ainda com referência ao informante, há que se manterem controladas as características do aparelho fonador, as interferências externas e, antes do mais, serem vencidas as resistências à gravação dos inquéritos, tarefa nem sempre fácil de realizar.

Devem-se catalogar os informantes, resumindo seus dados numa “Ficha de Identificação do Informante”, que será devidamente arquivada para possíveis consultas.

O método da investigação dialetal, em campo, aponta para duas diferentes técnicas de trabalho: por correspondência e in loco.

Os inquéritos por correspondência gozam de certo desprestígio e não devem ser priorizados se se considerar (a) fragilidade do controle das respostas e esclarecimento das questões propostas; (b) dificuldade em interpretar os dados coletados; (c) simplificação de informação fonética; (d) dificuldade em serem dirimidas as dúvidas decorrentes do enunciado da pergunta e da própria resposta; (e) necessária presença esclarecedora e formação dialetológicas do inquiridor quando da aplicação dos dados.

Os inquéritos in loco são os mais recomendáveis: nele, ocorre o desejável “mergulho na comunidade”, que transforma o pesquisador em parte da paisagem, desfazendo as possíveis e prováveis inibições do informante, ameaçado pela presença do estranho que lhe pergunta coisas da sua vida e profissão, normalmente sendo confundidos com “fiscais do Governo”, opinião que os torna indesejáveis para a vida da comunidade. Nesse tipo de recolha, os dados são anotados imediatamente pelo inquiridor além de gravados em fita magnetofônica, para posterior análise, procedimentos que hão de garantir a qualidade da informação.

Numa ou noutra prática, a recolha se realiza por meio de um questionário ou através de um registro livre das respostas ou da conversa; constitui-se numa espécie de roteiro, que há de obedecer a uma seqüência lógica de assuntos previamente definida.

O questionário que se destina à investigação dialetal deve ser elaborado segundo o que se pretende atingir: se se busca um levantamento geral das características dialetais da região, o questionário deve ser amplo e abrangente, abordando as diferentes áreas semânticas que informam e recortam o universo biossocial do pesquisado. O questionário será organizado em seqüência de perguntas do tipo palavra-coisa, que levará à apreensão das características lexicais, sem esquecer questões do tipo “narração de fatos” que permitirão um discurso sem cortes por parte do informante. Podem ser usadas gravuras, desenhos ou fotos para serem reconhecidas ou descritas pelo entrevistado. Se a intenção é apurar fatos fonéticos e fonológicos, lexicais, morfossintáticos ou semânticos, o questionário deve ser orientado para esse fim.

Ex. retirado do ALS:

Perg. 527 – FÊMEA DO CAVALO

O que a gente bota para cruzar com o cavalo?

Perg. 580 – MOVIMENTO BRUSCO COM QUE O CAVALO PROJETA PARA CIMA OS QUARTOS TRASEIROS

O cavalo vai quieto, andando direitinho, e de repente faz vúpi [MÍMICA], levanta os quartos de trás, como se chama isso?

OBS. O inquiridor jamais pronuncia a palavra que quer ouvir para evitar a contaminação da sua fala na do informante.

A participação do inquiridor deve ser construída em todas as fases da pesquisa. Ele deve

participar da discussão conjunta do questionário que se vai aplicar, para que se homogeneíze o comportamento da equipe e reduzam as dúvidas que possam recair sobre as respostas obtidas;

realizar, ao fim da jornada de recolha, a audição de inquéritos diversos para tomar conhecimento dos problemas que podem ocorrer nessa atividade;

dominar um sistema de transcrição fonética, pois, em caso de dificuldades com a gravação, deve ser possível não perder o cerne da entrevista sempre custosa em tempo e recurso;

estar presente ao inquérito assegura o êxito da investigação.

ACESSO AOS INQUÉRITOS

São fatores dificultadores da aplicação dos inquéritos:

o acesso à localidade;

o contato com os informantes (convém a intermediação de alguém da comunidade); é desejável dar conhecimento ao informante do que se pretende e, após a gravação, permitir-lhe a audição de, pelo menos, parte do que foi gravado.

OBS. Deve-se providenciar cópias dos inquéritos gravados e só trabalhar com elas para evitar desgaste e perda do material original.

EXEGESE E ANÁLISE DOS DADOS

Não obstante todo o cuidado da recolha, as respostas não ficam imunes a dúvidas do inquiridor. Assim, cada resposta analisada é submetida à avaliação sobre como se situa no contexto da recolha e em relação à pergunta a que se refere.

Quanto ao material lingüístico, surgem questões do tipo: transcrever tudo o que foi dito ou só o que importar diretamente ao estudo? Que transcrição usar? a fonética, a grafemática, a ortográfica? mesclar todas elas? algumas? A experiência hoje aponta ser desejável transcrever tudo para que se tenha material suficiente para outras aventuras dialetológicas. Quanto à transcrição, também pela experiência colhida em trabalhos dessa natureza, sugere-se que ela seja grafemática, pois assegura maior flexibilidade para o registro das ocorrências, especialmente se a pesquisa é feita em segmentos culturalmente diferenciados.

DIVULGAÇÃO DOS RESULTADOS

A finalização de um trabalho dialetal é bastante peculiar; não raro a sua conclusão se converte em marco inicial para trabalhos de análise: um atlas lingüístico, por exemplo, ao ser editado, reúne as conclusões que os dados permitem elaborar; depois disso, começam as investigações e as cogitações da comunidade interessada no assunto.

Os trabalhos dialetológicos se inserem em dois grandes grupos: trabalhos de análise, com apresentação de trabalhos conclusivos, e trabalhos de descrição de realidades dialetais, que vão instrumentar análises e conclusões sobre a realidade em foco. Em qualquer um dos casos, o levantamento de cunho dialetológico é uma “fotografia” de um estado de língua, num dado momento, num certo espaço geográfico.

OS COMPROMISSOS COM O ENSINO

Em decorrência das novas e renovadas concepções do que se deva ensinar nas escolas, os primados dialetológicos cresceram de importância como estratégia de formação do alunado que freqüenta os bancos escolares, especialmente os de nível médio, muito embora o que se vá expor a seguir caiba em todos os níveis de escolaridade.

Articulado com a sociedade brasileira, o Ministério de Educação vem realizando um grande esforço para transformar o sistema educacional, melhorando a sua qualidade para fazer frente aos desafios impostos por uma realidade multifacetada, em constante mudança.

Foram veiculadas propostas de um currículo que contemplasse bem mais as competências básicas do que a informação compacta, comprometido com os diversos contextos que acolhem a vida dos alunos.

A consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudanças na produção de bens, serviços e conhecimentos em geral exigem que a Escola possibilite a integração do aluno na contemporaneidade, fortalecendo o seu sentimento de cidadania. O alvo é o conhecimento escolar contextualizado sem compartimentalização.

A educação escolar deve atentar para um triplo objetivo: econômico, científico e cultural e tem, necessariamente, de estruturar-se em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser.

Todos esses aprendizados exigem tanto o autoconhecimento, quanto o conhecimento do outro, com quem compõe, nem sempre conscientemente, a realidade circundante – e essa informação as recolhas dialetológicas propiciam com segurança, propriedade, fidelidade e pertinência. Ademais os estudos das diversidades lingüísticas e o seu conhecimento como penhor de língua viva são capazes de concorrer para uma convivência saudável das diferenças, tal como apontou João Ubaldo Ribeiro, no artigo “Se é por falta de adeus...” (Globo, 23 de maio de 1996), do qual, a seguir se apresenta um excerto:

... nunca cessou de espantar-me manifestação de preconceito e hostilidade sociocultural. Em vez de alegrar-se com a diversidade extraordinariamente rica e fecunda de um país que, nessa diversidade, é o mesmo de uma ponta a outra, em vez de aprender com ela e com ela engrandecer-se, há gente que perde tempo e adrenalina num besteirol arrogante e irracional, entre generalizações estúpidas e demonstrações de estreiteza de visão. O sotaque alheio irrita, a maneira de ser exaspera [...]. Articular palavras de forma diversa [...], chamar sinal de trânsito de farol [...}, nada disso faz ninguém necessariamente melhor ou pior, mas apenas diferente dos outros.

É imprescindível que se conheçam e re-conheçam os atores sociais, os seus papéis bem como o âmbito das suas ações para que se demarquem, com alguma precisão, os espaços de atuação na e da comunidade circundante – e o que mais se vai encontrar nesse processo será a variedade do que se concebe uno, homogêneo. Aceitar as diferenças pessoais como peculiaridades da humana condição – não como deficiência – é procedimento fundador da construção coletiva da sociedade, no caso, da sociedade brasileira.

CONCLUSÃO

Como foi exposto no início desta exposição, a Dialetologia prima pela recolha do patrimônio cultural e lingüístico de um povo, patrimônio esse que se dissemina pela brasilidade, a partir de diferentes nichos. O fazer dialetológico é fonte de legitimação de acordos e condutas sociais manifestos nos rituais humanos de convivência em que se expressam formas de sentir, de pensar, de agir – daí o compromisso decorrente do saber haurido dos fazeres dialetológicos, articulado em rede de diferenças e semelhanças de que a fala testemunha a organização de mundo e a própria identidade tanto no eixo temporal quanto no espacial.

Sem dúvida, foi a Dialetologia que, por primeiro, chamou a atenção para a variação lingüística, embora, de início, sem operar com as técnicas avaliativas hoje empregadas, especialmente oriundas e colhidas da Sociolingüística; permaneceu ela, por muito tempo, num patamar eminentemente descritivo: embora isso acontecesse, não se pode subestimar a sua contribuição para o conhecimento da variação diatópica, diastrática e diafásica tão fundamentalmente necessária para o sucesso das práticas didático-pedagógicas.

A recolha do material para a pesquisa dialetológica e a sua necessária divulgação nos redutos escolares e escolarizados contribuem para que cada brasileiro se saiba complementar de outro brasileiro, seu concidadão, com quem compartilha a nacionalidade, conhecimento que permite se cultue o mesmo solo pátrio, ainda que pleno de especificidades – e isso, reconhecidamente, se aprende na escola.

 

BIBLIOGRAFIA

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