A
POESIA
BARROCA DE GREGÓRIO DE
MATOS
José
Pereira da Silva (UERJ e ABF)
Como
não sou
um
literato
nem tenho dedicado
grande
parte de
minha
vida aos
estudos
literários, partirei do
excelente
trabalho de Domício Proença
Filho,
Estilos de
Época na
Literatura,
para
desenvolver o
tema
que
me coube neste
Seminário.
Pode-se
afirmar
que o
estilo
barroco se configurou
nos
moldes da Contra-Reforma e dos
Concílios de Trento (século
XVI), tentando “conciliar a
novidade
renascentista
com a
tradição
religiosa
que
vinha da
Idade
Média” (PROENÇA
FILHO, 1973: 139),
pois foram
principalmente
esses
dois
acontecimentos – continua –,
que marcaram os
princípios ideológicos do
homem daquele
tempo, impondo-lhe “traços
relevantes
em
pensamento,
concepções
sociais e
políticas,
arte e,
naturalmente,
religião.” (p. 140).
Reformatado, o
pensamento
cristão
medieval reaparece no
Barroco: o
equilíbrio do
homem
medieval se transforma
em
conflito
permanente, representado
em
jogo de
oposições e
contrastes.
“E de
imediato se depreende
que o
Homem
barroco se
debate num
conflito
oriundo deste
duelo
entre
espírito
cristão e
espírito
secular,
que
leva a
contrições
como esta atribuída a Gregório de
Matos”, continua Domício, exemplificando
com o
soneto
abaixo:
Pequei,
Senhor,
mas
não
porque hei
pecado
Da
vossa
piedade
me
despido,:
Porque
quanto
mais tenho
delinqüido,
Vos tenho a
perdoar
mais
empenhado.
Se
basta a
vos
irar
tanto
um
pecado,
A abrandar-vos
sobeja
um
só
gemido:
Que a
mesma
culpa
que
vos há
ofendido,
Vos tem
para o
perdão
lisonjeado.
Se uma
ovelha perdida
e
já cobrada
Glória
tal e
prazer
tão
repentino
Vos deu,
como afirmais
na
Sacra
História:
Eu sou,
Senhor,
ovelha
desgarrada;
Cobrai-me; e
não queirais,
Pastor
Divino,
Perder na
vossa
ovelha a
vossa
glória.
(TOPA,
1999: II, 37)
Na
medida do
possível, mostraremos
poemas de Gregório de
Matos
que tragam algumas das
seguintes
características do
Barroco relacionadas
por Domício Proença
Filho: 1 – O
culto do
contraste; 2 –
Oposição do
homem voltado
para o
céu ao
homem voltado
para a
terra; 3 –
Preferência (dentro do
espírito de
contrastes)
pelos
aspectos cruéis,
dolorosos,
sangrentos e
repugnantes; 4 –
Pessimismo; 5 – Humanização do
sobrenatural; 6 – Fusionismo; 7 –
Intensidade; 8 –
Acumulação de
elementos; 9 –
Impulso
pessoal; 10 –
Niilismo
temático; 11 –
Tendência
para a
descrição e 12 –
Culto da
solidão.
1 – O
culto
do
contraste
Segundo Ronaldes de Melo e Souza,
em “As
máscaras de Gregório de Mattos” (SOUZA, 2000: 15),
através do
fingimento, o
poeta está
sempre
em
contraste,
inclusive
consigo
mesmo e
com os
princípios
que defende:
Gregório de Mattos se
comporta
como
persona ficta,
ostentando várias
máscaras,
fingindo diversas
vozes,
representando,
enfim, a
proliferação
indefinida de
um
ser
que
não cessa de
ser
outro. A
heterogeneidade
radical do
poeta se
manifesta nas
múltiplas
vozes (religiosa,
erótica,
lírica,
jocosa,
satírica,
encomiástica),
que presidem à
gênese e ao
desenvolvimento
de
sua
obra
essencialmente
dialógica e
polifônica. Argumenta-se
que o
conceito
operatório do
barroco,
que é a
dobra (le pli,
Deleuze), constitui o
fundamento
histórico-cultural da
obra
gregoriana,
que
poeticamente se desdobra
em
fuga
incessante e
metamorfose
contínua.
Assim,
quase
que antecipando Fernando
Pessoa na
criação de
heterônimos [a
terminologia
talvez
não seja a
mais adequada], afirmando
que “o
poeta se despersonaliza
para
personificar
outros
eus”, Ronaldes de Melo e Souza acrescenta, na
página
seguinte:
Adriano Espínola levanta a
hipótese de
que o
licenciado
Rabello e o
frei Lourenço
Ribeiro
são
máscaras
biográficas de Gregório de Mattos.
....................................................................................................
Nestas duas
criações
alonímicas, uma
que o exalta e
outra
que o verbera,
o
riso
de Gregório de Mattos atinge a culminância de uma bufoneria
transcendental.
Perfeito
fingidor, o
poeta finge,
não
somente a
sua
obra,
mas
também a
sua
vida
pessoal, de
persona convicta. E finge
tão
completamente,
que
chega a
fingir duas
máscaras
simétricas e opostas: uma adjuvante e
outra
oponente. Esta
mascarada
biográfica representa dramaticamente a polaridade
barroca do
sublime e do
grotesco.
Não apresentaremos
exemplo da
obra de Gregório de
Matos neste
ponto
porque o
primeiro
soneto transcrito é
suficiente
para
ilustrar os referidos
contrastes.
2 –
Oposição
do
homem
voltado
para o
céu
ao
homem
voltado
para a
terra
Tratando de
seu
comportamento
religioso,
bem
explícito nas
peças de
acusação e de
defesa encontradas no
processo inquisitorial
que sofrera, pode-se
concluir
que
Provavelmente a
causa dessas
visões
antagônicas reside na
própria
figura do
escritor, na
ambigüidade,
em
termos de
comportamento
e
crenças
religiosas,
entre a
pessoa
empírica e a
persona
poética. Se a
primeira é
capaz de
falar “muitas
coisas
escandalosas”,
como
quer o
acusador,
ou de
ser
um “louco
jocoso”,
como o
considera
seu
defensor, a
segunda se
mostra
capaz de
fingir uma
devoção
extrema, de
um “legítimo
e
inteiro
cristão
velho”.
O
ponto de
união
entre
esses
extremos se
encontra no
temperamento
burlesco,
farsante,
ora
manifesto,
ora
latente, no
tratamento
literário
dado aos
temas
religiosos,
como
expressão
mesma do
comportamento
ambíguo da
pessoa
empírica
jocosa e da
persona
poética
devota do
autor.
Daí o
conflito
permanente do
poeta cindindo
entre a
consciência do
pecado e a
necessidade da
salvação,
entre o
desejo da
transgressão e
a solicitação do
perdão,
entre
certezas
divinas e
dúvidas
terrenas,...
Eis
um
soneto
que
bem
retrata
este
aspecto da
obra
gregoriana:
Ofendi-vos,
meu
Deus, é
bem
verdade,
É
verdade,
Senhor,
que hei
delinqüido,
Delinqüido
vos tenho e
ofendido,
Ofendido
vos tem
minha
maldade.
Maldade
que encaminha
à
vaidade,
Vaidade
que
todo
me há vencido.
Vencido quero ver-me e arrependido,
Arrependido a
tanta
enormidade.
Arrependido estou de
coração,
De
coração
vos busco,
dai-me os
braços,
Abraços
que
me rendem
vossa
luz.
Luz
que
claro
me
mostra a
salvação,
A salvação pertendo
em
tais
abraços,
Misericórdia,
amor, Jesus,
Jesus.
(TOPA,
1999: II, 39)
3 –
Preferência
(dentro
do
espírito
de
contrastes)
pelos
aspectos
cruéis,
dolorosos,
sangrentos
e
repugnantes
Mesmo
um
poema
sacro adquire
tonalidade
satírica ao
ser introduzido
pela
didascália
“Ao
braço do
menino Jesus
da
Sé
quando
desapareceu do
corpo”. O
texto
tipicamente
gregoriano tem
de
ser lido
como
intertexto e metatexto. (SOUZA, 2000: 17)
Eis o
soneto
que escreveu “A
Cristo
Senhor
Nosso crucificado, estando o
Poeta na
última
hora da
sua
vida”:
Meu
Deus,
que
estais
pendente
em
um
madeiro,
Em
cuja
Lei
protesto
de
viver,
Em
cuja
Santa
Lei
hei de
morrer,
Animoso,
constante,
firme
e
inteiro.
Neste
lance,
por
ser
o
derradeiro,
Pois
vejo a
minha
vida
anoitecer,
É,
meu
Jesus, a
hora de se
ver
A
brandura
de
um
Pai,
manso
cordeiro.
Mui
grande
é
vosso
amor
e
meu
delito;
Porém pode
ter
fim
todo
o
pecar,
E
não
o
vosso
amor,
que
é
infinito.
Essa
razão
me
obriga a
confiar
Que
por
mais
que
pequei neste
conflito,
Espero
em
vosso
amor
de
me
salvar.
(TOPA,
1999: II, 41)
4 –
Pessimismo
–
Esse
pessimismo nasce “do
conflito
entre o
eu e o
mundo”, levando o
poeta ao “bifrontismo do
homem,
santo e
pecador”,
conforme
ensina Domício Proença
Filho, op. cit., p. 141.
Eis o
que escreve o
poeta “aos
Missionários,
em
ocasião
que corriam a
Via
Sacra”,
quando o
arcebispo da Bahia dava exorbitantes
direções à
Missão,
juntamente
com o
exercício da
Via
Sacra:
Via de prefeição é a
Sacra
Via,
Via do
Céu,
caminho da
verdade;
Mas
ir ao
Céu
com
tal
publicidade
Mais
que à
virtude o
boto à
hipocrisia.
O
ódio é d’alma
infame
companhia,
A
paz deixou-a
Deus à
Cristandade;
Mas
arrastar
por
força uma
vontade,
Em
vez de
caridade é
tirania.
O
dar
pregões no
púlpito é
indecência:
[“]Qué de
fulano?[“] e [“]Venha
aqui
sicrano![“],
Porque
pecado e
pecador se
veja;
É
próprio de
um
porteiro d’audiência;
E se nisto
mal digo
ou
mal
me
engano,
Eu
me sumeto à
Santa
Madre
Igreja.
(TOPA,
1999: II, 361)
5 –
Humanização do
sobrenatural
O
fato
mesmo de terem sido colocados
em
primeiro
lugar os
poemas
sacros, no
códice organizado
pelo
licenciado Rabello, dá-lhe
um
pragmatismo
imediato,
para
salvar a
obra, apresentando
seu
autor
como
um
poeta
religioso,
isto é,
com a
máscara sacral. (Cf. ESPÍNOLA, 2000: 112)
Um
exemplo desta
metamorfose,
entre
muitos encontráveis na
arte
poética de Gregório de
Matos, pode
ser o
soneto
abaixo,
pois “No
sermão
que pregou na
Madre de
Deus
Dom João
Franco de
Oliveira, pondera o
Poeta a
fragilidade
humana”:
Na
oração
que desaterra...........................
aterra,
Quer
Deus
que a
quem está o
cuidado.......
dado
Pregue
que a
vida é
emprestado...............
estado,
Mistérios
mil
que
desenterra....................
enterra.
Quem
não cuida de
si
que é
terra..............
erra,
Que o
alto
Rei
por
afamado.....................
amado
E
quem
lhe assiste ao
desvelado...............
lado
Da
morte ao
ar
não
desaferra.................. aferra.
Quem do
mundo a
mortal
loucura............
cura,
À
vontade de
Deus
sagrada......................
agrada
Firmar-lhe a
vida
em
atadura...................
dura.
Ó
voz
zelosa
que
dobrada.........................
brada,
Já sei
que a
flor da
formosura...................
usura
Será no
fim desta
jornada........................
nada.
(TOPA,
1999: II, 62)
6 –
Fusionismo
Assim
como no
soneto
que apresentaremos no
item 8,
onde há
fusão do
racional
com o
irracional, do
sacro
com o
satírico etc., podemos
ver a
fusão do
humano
com o
divino, do
terreno
com o
celestial etc. no
primeiro dos
poemas
sacros apresentado no
códice do
licenciado,
onde o
poeta recorre ao Eclesiastes, de
onde extrai o
versículo 3:20
para
construir
seu
primeiro
verso, persuadindo retoricamente o
leitor, conativa e
apelativamente. Vejamos:
Que és
terra,
homem, e
em
terra hás de tornar-te,
Te lembra
hoje
Deus
por
sua
Igreja;
De
pó
te faz
espelho
em
que se veja
A
vil
matéria de
que quis
formar-te.
Lembra-te
Deus
que és
pó
para humilhar-te,
E
como o
teu baixel
sempre
fraqueja
Nos
mares da
vaidade
onde
peleja,
Te põe à
vista a
terra
onde
salvar-te.
Alerta,
alerta,
pois
que o
vento
berra,
E se
assopra a
vaidade e
incha o
pano,
Na
proa a
terra tens, amaina e
ferra.
Todo o
lenho
mortal, baixel
humano,
Se
busca a
salvação, tome
hoje
terra,
Que a
terra de
hoje é
porto
soberano.
(TOPA,
1999: II, 64)
7 –
Intensidade
Essa
intensidade é traduzida,
segundo Afrânio Coutinho
em
sua
Introdução à
Literatura
Brasileira (COUTINHO, 1972: 107),
...num
sentimento de
grandiosidade
e
esplendor, de
magnificência e
pompa, de
majestade e
grandeza
heróica,
expressos na
tendência
superlativa e
hiperbólica, no
exagero do
epíteto.
Mas essa
tendência
encontra
seu
reverso no
pendor
para a
renúncia e a
nobreza de
alma,
responsável
pelo
equilíbrio
instável de
muitas
personagens
barrocas,
que vivem
entre a
virtude e a
fraqueza,
entre a
pureza e o
pecado,
entre o
rigorismo
moral
ou a
luta
árdua e a
queda e o
arrependimento.
Não há
mediocridade na
sua
alma,
porque
Deus está
presente, no
seu
coração e
espírito,
mesmo
quando
enleadas
pelo
pecado.
Aproveito
para
exemplificar
com
um
par de
sonetos
criados
nos
mesmos
versos
consoantes,
com o
que o
poeta,
sem
nomear os
interlocutores,
mostra
um
diálogo, uma
teatralidade
em
sua
lírica:
Quem perde
o
bem
que teve
possuído,
A
morte
não dilate
ao
sentimento,
Que esta
dor, esta
mágoa,
este
tormento,
Não pode
ter
tormento
parecido.
Quem perde
o
bem logrado, tem
perdido
O
discurso,
a
razão, o
entendimento;
Porque
caber
não pode
em
pensamento
A
esperança
de
ser restituído.
Quando
fosse a
esperança
alento à
vida,
‘té nas
faltas do
bem seria
engano
O
presumir
melhoras
desta
sorte.
Porque
onde
falta o
bem, é
homicida
A
memória,
que
atalha o
próprio
dano,
O
refúgio,
que priva
a
mesma
morte.
(TOPA,
1999: II, 83) |
O
bem
que
não chegou
ser possuído
Perdido
causa
tanto
sentimento
Que
faltando-lhe a
causa do
tormento,
Faz
ser
maior
tormento o
padecido.
Sentir o
bem logrado e
já perdido
Mágoa será
do
próprio
entendimento;
Porém o
bem
que perde
um
pensamento
Não o
deixa
outro
bem restituído.
Se o
logro
satisfaz a
mesma
vida
E
depois de
logrado fica
engano
A
falta
que o
bem faz
em
qualquer
sorte:
Infalível
será
ser
homicida
O
bem
que
sem
ser
mal
motiva o
dano,
O
mal
que
sem
ser
bem apressa a
morte.
(TOPA,
1999: II, 85) |
Essa
técnica é utilizada noutros
diálogos
em
que as
personagens
são nomeadas,
como é o
caso dos
três
sonetos
amorosos “do
Poeta”,
compostos
nos
mesmos
consoantes e respondidos do
mesmo
modo
por “Floralva”,
conforme se pode
ler
em
TOPA (1999: II, 298-303).
8 –
Acumulação
de
elementos
São
bastante
numerosos os
poemas
em
que Gregório se utiliza estilisticamente deste
recurso da
acumulação de
elementos,
que se faz de diversas
maneiras.
Aproveitaremos a
oportunidade
para
exemplificar a
acumulação de
elementos (aqui,
como no
exemplo do
item 2)
com
mais
um
soneto
religioso
que se
torna uma
sátira,
dada o
contexto de
sua
produção
pela didascália (cf.
item 3).
O
todo
sem a
parte
não é
todo,
A
parte
sem o
todo
não é
parte,
Mas se a
parte o faz
todo, sendo
parte,
Não se diga
que é
parte, sendo
todo.
Em
todo o
Sacramento
está
Deus
todo
E
todo assiste
inteiro
em
qualquer
parte,
E
feito
em
partes
todo
em
toda a
parte,
Em
qualquer
parte
sempre fica
todo.
O
braço de Jesus
não seja
parte,
Pois
que
feito Jesus
em
partes
todo,
Assiste
cada
parte
em
sua
parte.
Não se sabendo
parte deste
todo,
Um
braço
que
lhe acharam,
sendo
parte,
Nos disse as
partes todas
deste
todo.
(TOPA,
1999: II, 47-8)
9 –
Impulso
pessoal
Nos
poemas
amorosos e
nos
eróticos,
naturalmente, o
impulso vem à
tona a
cada
passo, o
que é
mais
que
natural,
apesar de serem
fartos os
modelos de
todos
eles.
Por
isto, exemplificarei
com
um
poema
satírico e
autobiográfico (AMADO,
1992: I, 31):
E
pois cronista sou.
Se souberas
falar
também
falaras,
também
satirizaras, se souberas,
e se
foras
poeta, poetaras.
Cansado de
vos
pregar
cultíssimas
profecias,
quero das culteranias
hoje o
hábito
enforcar;
de
que serve
arrebentar,
por
quem de
mim
não tem
mágoa?
Verdades direi
como
água,
porque
todos
entendais
os
ladinos, e os
boçais
a
Musa
praguejadora.
Entendeis-me
agora?
Permiti,
minha
formosa,
que esta
prosa
envolta
em
verso
de
um
Poeta
tão
perverso
se consagre a
vosso
pé,
pois rendido à
fossa
fé
sou
já
Poeta converso.
Mas
amo
por
amar,
que é
liberdade.
10 –
Niilismo
temático
Um interessante
exemplo dessa
carência de
motivo
para a
produção
poética
ou
literária é o
soneto
escrito ao
Conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, pedindo
louvores ao
poeta,
que
não
lhe achou
préstimo
algum:
Um
soneto
começo
em
vosso
gabo,
Contemos esta
regra
por
primeira;
Já
lá
vão duas e
esta é a
terceira,
Já
este
quartetinho está no
cabo.
Na
quinta troce
agora a
porca o
rabo,
A
sexta vá
também desta
maneira;
Na
sétima entro
já
com grã
canseira,
E saio dos
quartetos
muito
brabo.
Agora
nos
tercetos
que direi?
Direi
que
vós,
Senhor, a
mim
me honrais,
Gabando-vos a
vós, e
eu fico
um
rei.
Nesta
vida
um
soneto
já ditei,
Se desta
agora
escapo,
nunca
mais;
Louvado seja
Deus,
que o acabei.
(TOPA,
1999: II, 358
11 –
Tendência
para a
descrição
As didascálias,
caracterizando
um
discurso mascarado do
poeta, fazem uma
ligação
direta
entre a
obra
literária e a
sua
biografia, assinada
pelo
licenciado. E “como é
que o
licenciado podia
saber
tudo
acerca do
poeta e das
circunstâncias
que motivaram a
elaboração de
seus
poemas?” –
pergunta Ronaldes (SOUZA, 2000: 16-17), propondo
imediatamente: “A
resposta a esta
pergunta é
que o
biógrafo consegue
saber
tudo
acerca do
poeta e
seu
ofício,
porque o
licenciado Rabello e Gregório de Mattos
são uma
mesma
pessoa,
que se representa dramaticamente desdobrada no
biógrafo e no biografado.”
Ou seja, aquelas “legendas”
que têm tantas
variantes,
conforme se pode
ver na
tese de Francisco
Topa (1999), constituem o
elemento descritivo
por
excelência na
comédia
em
que se constitui a
obra
poética de Gregório de
Matos, considerada deste
ponto de
vista,
levado “até a
inverossimilhança” (PROENÇA
FILHO, 1973: 142).
12 –
Culto
da
solidão
Segundo Domício (p. 142), “o
poeta,
mais
que
outros, é
um
raro,
que
cria o
seu
mundo
particular e nele se isola”.
Gregório criou
um
par
opositivo de
máscaras,
típico das
artes
literária e
dramática de
seu
tempo,
para
revelar
sua criadora
faceta biográfica: a “de
tom encomiástico, assinada
pelo
licenciado, e a de
tom
satírico, encetada
pelo
frei Lourenço
Ribeiro.” (ESPÍNOLA, 2000: 30).
É
por
isto
que,
depois de
analisar
profundamente o
conteúdo crítico-literário da
obra citada de Adriano Espínola,
com
seus
bem fundamentados
argumentos, Ronaldes pôde
concluir,
com
segurança
em
relação a Gregório de
Matos e
Guerra:
Os fingimentos de
sua novíssima
comédia
tropical o
credenciam
como
um dos
maiores
poetas
barrocos da
literatura mundial.
Além do
ludismo
polêmico do
texto, do
intertexto e do metatexto, o
poeta revela o
que há de
mais
profundo na
cultura
barroca, e
que é a
interminável
demanda de uma
identidade
perpetuamente mobilizada no
ritmo de
transe da
alteridade e
do emascaramento.
Como
Pessoa, e
por
mais
que se
desdobre
em
vários
eus, Gregório
de Mattos permanece
sempre o
anônimo de
si
mesmo. Ao
rasurar o
eu
próprio
para
fingir os
outros
eus, o
poeta converte
todo o
seu
texto num
verdadeiro
palimpsesto.
..................................................................................................
O
enigma de
Gregório de Mattos
não é
simplesmente
filológico,
mas
radicalmente
ontológico.
(SOUZA, 2000: 17)
13 –
CONCLUSÃO
À
guisa de
conclusão,
trago à
baila
novamente o
primeiro dos
atuais
sócios
honorários da
Academia
Brasileira de
Filologia (SPINA, 1995: 79-80):
Incontestavelmente Gregório de
Matos possuía
absoluto
domínio da
técnica
versificatória: manejava
todos os
gêneros
poéticos e
com
original
maestria.
Parodiava os
sonetos
clássicos,
prevalecia-se dos
paralelismos,
das
antíteses,
dos calemburgos
de
poesias
alheias
que
tanta
fama alcançaram,
para
elaborar os
seus.
Isto
também
não desmerece
o
talento de
Gregório,
porquanto
essas
adaptações
poéticas,
justamente
com
poesias
que granjearam
larga
popularidade,
não constituem
uma
artimanha
que implique
desonestidade,
mas uma
faceta
por
onde fulge o
espírito
brincalhão e
satírico do
poeta
baiano.
Expurgada a
sua
obra desse
joio muitas
vezes
mal
interpretado,
ainda fica
um
majestoso
monumento
literário.
Negar-lhe a
originalidade
que
sempre mereceu
é
negar a
verdade
histórica do
meio
em
que viveu.
Gregório,
pis, é uma
emersão dessa
corrupta e
provocante
sociedade colonial, e
menos
um
“fâmulo
e
projeção” de
Quevedo,
porque
um “temperamento
não s imita”,
e
sobretudo
satírico,
que se
caracteriza
pela
ausência
quase
absoluta de
formalismo, e
por
conseguinte
por
um
algo
cunho de
personalidade.
14 –
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, James (ed.). Gregório de
Matos:
obra
poética. 3ª ed.
Preparação e
notas de Emanuel Araújo.
Rio de
Janeiro: Record, 1992, 2 vol.
COUTINHO, Afrânio.
Introdução à
literatura no Brasil. 7ª ed.
Rio de
Janeiro: Distribuidora de
Livros
Escolares, [1972].
ESPÍNOLA, Adriano. As
artes de
enganar:
um
estudo das
máscaras
poéticas e biográficas de Gregorio de Mattos. [Rio
de
Janeiro]: Topbooks, [2000].
PROENÇA
FILHO, Domício.
Estilos de
época na
literatura (através
de
textos comentados). 4ª ed. rev. e ampl. [Rio
de
Janeiro;
São Paulo]:
Liceu, 1973.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. As
máscaras de Gregório de Mattos. In:
ESPÍNOLA, Adriano. As
artes de
enganar:
um
estudo das
máscaras
poéticas e biográficas de Gregorio de Mattos. [Rio
de
Janeiro]: Topbooks, [2000], p. 15-17.
SPINA,
Segismundo. A
poesia de Gregório de
Matos.
São Paulo: Edusp, 1995.
––––––. Gregório de
Matos. In: COUTINHO, Afrânio; COUTINHO,
Eduardo de Faria. (Dir.). A
literatura no Brasil. Vol. II,
Parte II:
Estilos de
época –
Era
barroca /
Era neoclássica. 3ª ed. rev. e ampl.
Rio de
Janeiro: José Olympio; Niterói: Eduff, 1986, p.
114-125.
TOPA, Francisco.
Edição
crítica da
obra
poética de Gregório de
Matos.
Porto:
Edição do
Autor, 1999, 2 vol. [Dois
tomos
em
cada
volume].
Não
vai transcrito
aqui
o
segundo
soneto
atribuído a Gregório de
Matos
por
Domício Proença
Filho
(p. 147)
para
exemplificar
o
espírito
barroco
em
poesia
porque
Francisco
Topa
demonstra
que
não
há
fundamentos
ecdóticos
suficientes
para
dar
segurança
a essa
atribuição,
podendo
ser
da
lavra
do Pe. Manuel da Nóbrega,
visto
que
foi publicado
como
tal
no
terceiro
tomo
da
Nova
Floresta,
em
1711.
Este
registro
vai
aqui
apenas
para
demonstrar
a
necessidade
de
um
estudo
de
crítica
textual
rigoroso
das
obras
dos
grandes
escritores
para
que
os historiadores,
teóricos
e
críticos
literários
tenham
certeza
de estarem citando
textos
realmente
pertencentes aos
autores
a
que
são
atribuídos.
Em
relação
ao
soneto
“A
vós
correndo vou,
braços
sagrados”,
somente
6 dos 19
testemunhos
cotejados
por
Francisco
Topa
o atribuem a Gregório de
Matos.
Ronaldes confirma
aqui
o
que
Adriano Espínola (2000: 324)
já
afirmara
sobre
Gregório na
conclusão
da
obra
citada: “Na
verdade,
por
sua
índole
farsante,
pode
ser
considerado o
pai
barroco
de Fernando
Pessoa”.
Breve
notícia,
escrita
no
começo
das
peças
teatrais
na Roma
antiga,
que
informava o
leitor
das
circunstâncias
da
representação.