A PROBLEMÁTICA DO
PÓS-MODERNISMO
NA LITERATURA BRASILEIRA
(Uma introdução ao debate)
Italo Moriconi (UERJ)
Comecemos pela poesia e nela nos concentremos, como guia para a reflexão estético-histórica. E comecemos também pela demarcação de um período: os anos 80 e 90 do século passado. Do ponto de vista cultural mais amplo, o fim do século XX é pós-canônico, pós-vanguardista, pós-modernista. Na poesia brasileira, é marginal e pós-marginal, pós-moderno e pós-modernista. Vemos logo que o debate intelectual no período pautou-se por rótulos em “pós”, prefixo ubíquo. O fim do século foi para lá de depois. E esse vivenciar-se como póstero de si próprio engendrou uma terminologia, muitas vezes polêmica, outras intrincada. Um exemplo: as expressões “pós-moderno” e “pós-modernista” não são rigorosamente sinônimas, embora estritamente relacionadas. Pós-moderno diz respeito ao contexto cultural globalizado pop-midiático. Já pós-modernismo é termo de periodização artística e literária. É o que vem depois do modernismo. Entre pós-modernismo e modernismo, as relações são complexas, de continuidade e descontinuidade, permanência e desloca-mento. O modernismo é uma totalidade histórica. O pós-modernismo, um conjunto aberto de traços heterogêneos.
DIALÉTICA DO MODERNISMO
Entendo por modernismo uma
constelação cultural cuja presença dominante na cena brasileira estende-se por
espectro temporal bem amplo, abrangendo três fases: o primeiro modernismo dos
anos 20, marcado emblematicamente pela Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade,
pela Semana de Arte Moderna de 22 e pela adesão in-contrastável de Manuel
Bandeira ao novo modo, no fundamental Libertinagem; em seguida o modernismo dos
anos 30, em que toda uma geração entra em cena e consolida a nova linguagem
(Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília, Vinícius de Moraes, entre
muitos outros); finalmente, o modernismo canônico de meados dos anos 40 até fins
dos 60, momento de nosso alto modernismo (high modernism, como diz a crítica
anglo-saxônica).
Observa-se que o modernismo desdobrou historicamente uma dialética que levou do
impulso à dessacralização a um processo de progressiva ressublimação da
linguagem artística. Nos anos 20, o modernismo emergente era inconoclasta e
vanguardista, parodístico e realista. Ao longo do processo de ressublimação
estética (a poesia como expressão elevada e modelar), as obras modernistas
tornaram-se clássicos no cânone literário da língua brasileira. Tal dialética
his-tórica inerente ao modernismo não é exclusividade brasileira. Pode-se mesmo
considerá-la uma lei geral do modernismo na literatura universal. Onde houve
modernismo, ocorreu essa dialética. A conquista do sublime literário pela
poética modernista corresponde à sua progressiva pedagogização, oficialização,
daí porque se usa a palavra cânone e a expressão modernismo canônico.
Existe portanto um conflito, uma tensão, entre dessacraliza-ção e
ressacralização, dessublimação e ressublimação, tendências vanguardistas versus
tendências classicizantes, polarização intrínseca ao conceito estético-histórico
de modernismo, correspondente à dua-lidade entre a dimensão extra ou anti
institucional e a dimensão insti-tucional da arte. Por ser inerente ao conceito
de modernismo, tal ten-são é estrutural, tem uma dimensão sincrônica. O melhor
exemplo dessa sincronicidade está na poesia de Baudelaire, com seu perma-nente
movimento entre o “baixo” e o “elevado”, o baixo (ou vulgar) sempre enunciado
contra o pano de fundo de uma nostalgia ou de uma aspiração ao sublime. A poesia
do francês Baudelaire é assim um emblema de modernidade clássica, representando
figurativamen-te o que ocorre historicamente, diacronicamente, em cada poesia
modernista nacional integrada ao sistema literário universal no sécu-lo XX.
E assim também o nosso modernismo, que vê completada sua dialética na fase canônica do alto modenismo, configurando-se enquanto totalidade, enquanto objeto bem determinado. Sim, porque por sua vez é inerente ao conceito de alto modernismo a noção de que corresponde ao momento histórico de “completude”, de “fecha-mento” da estética modernista. Noção que remete à lógica derridiana do suplemento, sempre trazida à baila pelo crítico brasileiro e mestre de todos nós em matéria de pós-modernidade, Silviano Santiago. Há um momento em que o modernismo já não pode mais ser completa-do, de modo que a repetição de traços modernistas (prefixo pós como continuação) passa a dar-se num espaço fora, propício a deslocamentos (prefixo pós como descontinuidade). Nesse sentido, a obra de João Cabral desde O engenheiro até A Educação pela pedra pode ser lida como representando ao mesmo tempo o apogeu e o encerramento (o “fechamento” num sentido de lógica estética) da estética modernista. E por isso, na literatura brasileira, a década de 70 já pode ser considerada pós-modernista, pois o campo em que nela se produz tem por horizonte o modernismo não mais enquanto projeto ainda em curso (como defende o filósofo alemão Habermas), mas enquanto totalidade bem determinada.
ARQUEOLOGIA DO DEBATE
Porém, somente na década de 80
tomou corpo entre nós o de-bate em torno de “pós-moderno” e “pós-modernismo”,
como reflexo de uma onda internacional. Por seu turno, o debate internacional
so-bre “pós-modernidade” foi motivado pela publicação de livros de impacto sobre
o assunto nas áreas de arquitetura e da filosofia. Destaque-se o livro La
Condition Post-Moderne, de Jean-François Lyo-tard, publicado em 1979, que no
entanto não era uma obra de filosofia, e sim um relatório encomendado pelo
governo do Canadá sobre como devia organizar-se a produção do saber científico
no presente e no futuro imediato, tendo em vista o acúmulo de transformações na
cultura e no capital que caracterizara a evolução social ao longo do século XX.
O livro de Lyotard permanece rigorosamente atual. O debate internacionalizado e
referente a todas as áreas da estética e das ciências humanas ampliava um tema
que já vinha sendo discutido por alguns críticos literários norte-americanos, em
conjugação com a discussão sociológica sobre sociedade pós-industrial –
mencionem-se aqui os nomes de Leslie Fiedler e do escritor John Barth, assim
como a revista acadêmica de vanguarda boundary 2.
No debate universitário brasileiro, o tema do pós-moderno foi introduzido na USP
pelo número 7 do periódico Arte em Revista (1983), em que nomes conceituados
como Otília Arantes (Filosofia) e João Adolfo Hansen (Literatura) apresentaram o
projeto de resgate da precedência latino-americana, através da releitura de
textos dos anos 60 em que o crítico Mário Pedrosa se utilizara do termo
“pós-moderno” para definir o processo criativo do artista brasileiro Hélio
Oiticica. A revista publicava também, no mesmo número, traduções de trechos de
alguns dos protagonistas do debate pós-moderno no cenário internacional à época:
o filósofo alemão Jürgen Habermas, o filósofo francês Jean-François Lyotard,
assim como o teórico alemão Peter Bürger, autor de Teoria da Vanguarda, um dos
mais influentes textos acadêmicos sobre o assunto, publicado em 1974 e até hoje
não traduzido no Brasil. Em 1985, a revista Novos Estudos Cebrap pu-blicou a
primeira tradução brasileira de um texto do crítico literário marxista americano
Fredric Jameson sobre “pós-modernismo e lógi-ca cultural do consumo”. Graças ao
prestígio de Jameson e da revista inglesa New Left Review entre os cientistas
sociais marxistas e pós-marxistas brasileiros, o tema da pós-modernidade passou
a ser cada vez mais abordado no universo da sociologia uspiana. Esse tema também
se espraiou depois, já nos anos 90, na bibliografia brasileira da área de
Educação.
No Rio de Janeiro, o Professor
Domício Proença Filho e o Escritor Jair Ferreira dos Santos publicaram em 85 e
86, respectiva-mente, pequenos opúsculos de divulgação sobre o pós-modernismo,
hoje esgotados, nas coleções Princípios da Ed. Ática o primeiro, e Primeiros
Passos, da Brasiliense, no segundo caso. Mencione-se também o manual
Moderno/Pós-moderno, do professor de Comuni-cação de São Paulo, que tem tido
sucessivas reedições (ed. Iluminu-ras). Finalmente, no ano 1987, o tema foi
abordado de maneira densa e sistemática nos cursos de pós-graduação de
intelectuais do porte de Eduardo Portella e Heloísa Buarque de Holanda, na UFRJ,
e Silviano Santiago, na época lecionando na PUC. Foi nesse momento que eu mesmo
travei meu primeiro contato com o tema, ao fazer meu Dou-torado, onde defendi
tese sobre o assunto. Silviano e Heloísa foram os introdutores das abordagens de
Lyotard, Jameson, e também do autor alemão Andreas Huyssen, em todas as áreas de
letras e comu-nicação da Universidade brasileira que não eram satélites da USP.
Silviano publicara em 1982 o romance-diário Em Liberdade, hoje considerado pela
crítica universitária, tanto a brasileira quanto a brasilianista, marco
inaugural da prosa pós-modernista brasileira. Se há um contexto pós-modernista
nos anos 70 e se há elementos pós-modernistas em textos de prosa ficcional
brasileira publicados antes dos 80, não há dúvida que no Em Liberdade
encontramos um con-junto muito mais claro do que seria uma proposta
pós-modernista. Antes disso, vejo com bom exemplo de prosa pós-modernista o
livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Silviano também escreveu diversos
ensaios críticos sobre o assunto, como “O narrador pós-moderno’, incluído no
livro As Malhas da Letras, de 1987. Vale a-crescentar que ele participara de
oficinas literárias com John Barth quando ainda lecionava nos Estados Unidos, de
modo que estava a-companhando o debate desde seu nascedouro.
O NÓ DA QUESTÃO
De meus anos finais de formação (naquele tempo, doutorado ainda era final de formação), marcados pelo estudo do pós-modernismo na PUC-RJ com Silviano Santiago, retive a idéia, para mim fundamental, originada da abordagem de Fredric Jameson, de que o pós-modernismo como categoria de periodização estético-histórica, deve ser contrastado num primeiro momento com o alto modernismo em sentido estrito e não com o modernismo em sentido lato. Claro que esta foi uma ênfase de leitura pessoal. Em minha tese detive-me numa dimensão mais lyotardiana, voltada para a discussão de pressupostos básicos, em torno da idéia de uma condição pós-moderna da constituição do saber. Só depois é que passaram a me interessar questões práticas de periodização estético-histórica, que tento fazer da maneira menos dogmática possível, já que categorias estético-históricas são basicamente recursos retóricos numa guerra de discursos.
É portanto a partir da definição de Fredric Jameson que con-cebo o pós-modernismo como conjunto de traços estilísticos e cultu-rais que vem depois do alto modernismo, manifestando um esgota-mento, crise ou superação de aspectos importantes da modernidade estética como um todo, na complexidade de sua dialética histórica. Metodologicamente falando, para um trabalho crítico-histórico, trata-se de analisar as relações de continuidade e descontinuidade entre os mais representativos produtos poéticos e ficcionais das gerações 70 e 90 e o cânone moderno. Na avaliação das continuidades e descontinuidades, saber distinguir a pulsão alto-modernista da pulsão van-guardista. Lembrando sempre que em história da arte o prefixo “pós” indica usualmente período ainda dominado por certa estética totalizadora que no entanto começa a sofrer o assédio de estéticas contrá-rias, derivadas e desviantes em relação ao léxico dominante. Creio que é assim que se pode ler “pós-romantismo”.
A poesia marginal dos 70 retoma o modernismo heróico dos anos 20 como uma reação iconoclástica ao caráter escolar, disciplinarizado, do modernismo canônico. Alguns nomes-que-vão-ficando do momento 70: Ana Cristina Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Chico Alvim, Sebastião Uchoa Leite, Adelia Prado, Torquato Neto, Ar-mando Freitas Filho, Waly Salomão, Chacal, Leila Micolis, Roberto Piva, Hilda Hilst, Afonso Henriques Neto, Carlos Saldanha, Angela Melim, Geraldo Carneiro, Leonardo Fróes, Roberto Schwarz, Silvia-no Santiago, entre outros e outras.
A presença do cânone era um dado que essa geração, inclinada a ideais e práticas contraculturais ou transgressivas, teve que enfrentar artisticamente. Os anos 70 em cultura começaram com a ressaca de 1968. Em 1969, o escritor americano John Barth nomeou o pós-modernismo de “literatura da exaustão”. Exaustão diante da magnificência auto-suficiente do cânone. Exaustão também diante dos experimentalismos vanguardistas, que começavam a não chocar mais ninguém que tivesse um mínimo de informação estética atualizada no contexto de um mundo ocidental globalizado em processo de profunda transformação na esfera dos valores morais e comportamentais.
O que acrescentar ao edifício da cultura nacional, numa época de contracultura no mundo e ditadura militar no país (e sua contra-partida, a experiência da guerrilha)? Quem precisava de mais poetas depois de Bandeira, Cecília, Drummond, Cabral? “Ele já não disse tudo, então?”, perguntava Ana Cristina César, referindo-se a Drummond. A poeta, expressão maior da geração 70, ecoava a sensação que, na geração anterior, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna chamara de sensação de “emparedamento”. “Minha geração de poetas é emparedada de um lado por Drummond e Cabral e de outro pelos concretos”, bradara Affonso Romano, verbalizando o nó da questão: o impasse criativo entre aqueles que não podiam fazer nada melhor que basicamente repetir o alto modernismo e aqueles outros (os concretistas) que resolveram partir para uma guerrilha de vanguarda cultural, em que a poesia era pesquisa poética e se fundia com as artes visuais e com a exploração de novas tecnologias. Mas houve também a entrada no cenário da cultura pop e da MPB como fontes principais de poesia nessa época, transcendendo e até colocando em pano de fundo a poesia estritamente literária, a “poesia de livro”, como a chamava Waly Salomão. Os grandes poetas brasileiros inspiradores de quem começava a escrever nos 70 eram Caetano e Chico e todos os demais divinos ícones de nosso panteão lírico-performático.
Quanto ao concretismo, colocara-se no cenário nacional dos anos 50 como um anti-modernismo, no momento mesmo do apogeu modernista. Ir contra os princípios da poética modernista canônica era reivindicando pelos concretistas como modernidade ainda mais moderna, mais cosmopolita. O concretismo operou uma intervenção que mixou o vanguardismo construtivista-serialista bem típico dos anos 50 a certo eruditismo alternativo, buscando impor Ezra Pound como referência fundamental na poesia brasileira. Com base em sua leitura de Pound, ao qual veio a acrescentar-se o Mallarmé dos “brancos da página”, o concretismo logrou criar uma pedagogia poética alternativa: um paideuma, para usar seu vocabulário da época. Um cânone, em suma.
Por causa disso, o pós-modernismo poético, no seu conceito especificamente brasileiro, significa não apenas “depois do alto mo-dernismo”, mas também um “depois da proposta concretista”. Em ambos os casos, esse “depois” vem combinando elementos de conti-nuidade e descontinuidade em relação a essas duas estéticas domi-nantes, o modernismo canônico e o vanguardismo concretista.
PERIODIZANDO DUAS FASES
Inicialmente, cabe ressaltar
que mesmo como categoria de periodização literária, “pós-modernismo” diz mais
respeito a contexto cultural e histórico, que propriamente a traços
estilísticos, embora uma estilística pós-moderna seja possível e na verdade
constitua boa parte do debate, em cada área artística específica. Do ponto de
vista da marcação cronológica do fim do século estético-literário, tenho
trabalhado com as datas referenciais de 1968 e de 1984 para assina-lar a
existência de duas fases no pós-modernismo brasileiro. Na distinção entre elas,
inspiro-me na maneira como Andreas Huyssen formulou a questão da periodização.
Para mim, historiograficamente falando, a marcação cronológica é mais importante
que a terminologia. Portanto, se por decreto se quisesse mudar o rótulo de
pós-modernismo para qualquer outro, isso não abalaria muito as minhas hipóteses
interpretativas. Considero porém importante periodizar o fim do século passado
em função de debates intelectuais substantivos. O debate sobre a pós-modernidade
sempre me pareceu e ainda me parece estratégico, embora de lá para cá outros
debates tenham vindo juntar-se a ele em pertinência, como os estudos culturais,
o debate sobre globalização, a questão do pós-colonial e do pensamento
diaspórico. Esses debates, internacionalizados nos anos 90, em geral representam
desdobramentos em relação ao debate sobre o pós-moderno. Nas áreas humanísticas,
a vida intelectual e universitária hoje transcorre em torno de debates e isso em
si é um traço pós-moderno. O debate é uma estrutura dinâmica de interlocução
pós-disciplinar, trans-disciplinar, hiper-politizada. A intensificação do
caráter político do saber humanístico é outro traço pós-moderno.
1968 define o início de um primeiro momento pós-modernista, ainda contracultural, em que se combinam elementos de vanguardismo e pós-vanguardismo. Já o segundo momento, iniciado de maneira genérica nos anos 80, é plenamente pós-vanguardista, pós-contracultural, intelectualmente marcado pela superação acadêmica de diversos aspectos do estruturalismo e do marxismo e politicamente marcado pelo fim do poder soviético. A data de 68, se por um lado marca o ponto de chegada e de apogeu de toda uma cultura revolucionária e vanguardista típica do século passado, por outro reapresenta a virada para “outra coisa”, uma espécie de “terceira via” cultural, marcada pelo ceticismo pragmático em relação aos mitos políticos do século e dominada pelo fato de que a totalidade da experiência cultural e sensorial-comportamental se vê invadida ou redefi-nida pela cultura pop global-local. Se tomarmos o pop como um termo referente ao que o marxismo chamaria de superestrutura, deve-se enfatizar que a “estrutura” no caso é um capitalismo de consumo. O pop é aqui definido em função de uma certa estrutura técnica que define a circulação de cultura É a cultura que expressa essa estrutura técnica. A estrutura técnica é simultaneamente estrutura social, estrutura psicosocial.
OS ANOS 80
A data de 1984 pode servir como ponto de apoio para demarcar uma segunda fase do pós-modernismo literário brasileiro. Sempre levando em conta a relatividade dos raciocínios de periodização em cultura, pois características de um período se misturam com as de outro, além de que a história da evolução das formas num gênero não coincide ponto por ponto com a de outro. Pensar as relações entre modernismo heróico, alto modernismo e pós-modernismo pode tra-zer resultados de periodização diferentes caso estejamos nos referindo a poesia ou prosa, isso para não falar dos ajustes e ressalvas que precisam ser feitos quando comparamos entre si campos estéticos mais distantes ainda, como literatura, música, artes visuais, arquitetura, etc.
1984. Ano da campanha pelas eleições diretas, ano em que pela primeira vez na história de nosso país manifestou-se efetiva-mente cidadania majoritária e autônoma, no sentido clássico liberal da palavra. A partir daí, desencadeou-se a lenta e progressiva redemocratização do país, num processo que começou com a eleição de Tancredo Neves em 85, passou pela nova Constituição do país em 1988, pela derrubada de um presidente pelo próprio povo que o elegera (Collor, 1992) e consolidou-se finalmente ao longo dos sucessi-vos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique, até a eleição para um governo nacional de partido nascido já nesse novo Brasil pós-diretas. Deve ter sido a mais longa transição democrática dentre todas que se efetuaram no mundo na segunda metade do século passado. Das diretas em 84 à posse de Lula em 2003, foi uma transição que durou 19 anos.
No entanto, embora seja importante situar o contexto histórico-político local do pós-modernismo, cabe também voltar ao domínio estritamente estético, até porque a evolução das formas poéticas não pode ser entendida fora de uma cultura estética ela própria em constante transformação. No pós-modernismo, o estético circundante inclui necessariamente o pop.
Do ponto de vista da
sensibilidade poética entre os letrados, tanto profissionais (universitários)
quanto amadores (aqueles que amam), a década de 80 foi de acúmulo, de cultos
intensos e leituras intensas de poetas estrangeiros que até então não tinham
circulado muito no Brasil. Em matéria de cultos, a década de 80 elegeu como seus
grandes objetos de devoção as obras de Ana Cristina Cesar, Adelia Prado e Manoel
de Barros. Foi uma década de superação do cânone tradutório dos concretistas,
apesar de se ter mantido e ampli-ado a noção legada pelo concretismo da
importância da tradução de poetas estrangeiros de ponta para o desenvolvimento
da cultura poética em nosso país. A superação (incorporação/descarte) do
paideu-ma (paradigma) tradutório concretista se deu pela preferência por poetas
como, no campo anglo-saxônico, Elizabeth Bishop, John A-shbery e Sylvia Plath,
em detrimento de eleitos dos concretos como Ezra Pound e e.e.cummings. No campo
francês, subiu a cotação de Artaud, Prévert, Laforgue, Rimbaud, em detrimento de
Mallarmé. Houve também a volta ou permanência triunfante de Baudelaire como
referencial francês básico, reflexo provavelmente do enorme interesse da tribo
dos letrados brasileiros pela obra do crítico e filósofo judeu-alemão Walter
Benjamin. Pode-se dizer que o Borges poeta é hoje uma paixão presente no coração
de boa parte do publico leitor de poesia no Brasil. Rilke também foi bastante
revalorizado, a partir das traduções de Augusto de Campos.
A cena pop nos 80 apresentou uma renovação instigante. Foi uma década
nova-iorquina, com David Byrne, B-52’s, Philip Glass, Laurie Anderson, The Clash.
No Brasil, a MPB se transmudou em pop. Até o samba se popificou, com suas
levadas de empolgação, tipo Zeca Pagodinho. O acontecimento mais importante foi
o surgimento do Rock Brasil. Paralamas, Cazuza e Barão Vermelho, Titãs e Arnaldo
Antunes e Tony Belloto. Fenômeno que atingiu dimensões mega e substituiu de vez
as importações, pois o rock nacional passou a ser mais consumido que o rock
americano. Suas letras “fizeram a cabeça” de gerações inteiras, como antes a
alta poesia lírica dos Caetanos e Chicos. Assim como a geração ainda literária
nos anos 50 e 60 viu-se poeticamente espelhada nas obras dos modernistas,
principalmente Drummond, nos 60-70 tivemos gerações formadas pela poesia da MPB
e nos 80 e 90 o portador do fogo foi esse pop rock brasileiro.
Os anos 80 foram a década yuppie que enterrou os valores da contracultura e revalorizou o saber, agora empacotável como produto de consumo cultural, pedagógico. Da colaboração entre o universo pop e o registro erudito, emergiu um revigoramento da cultura canônica, dos grandes clássicos, do prazer de ler romances, das exposições de arte européia antiga ou moderna sob a forma de grandes espetáculos do saber em escala global. O começar diferente dos anos 80 deu-se mais na esfera das condições de produção e circulação do poema que na configuração de novas escritas, de novos universos ou estratégias de linguagem. De maneira análoga ao ocorrido nos demais campos da arte, tanto no plano nacional quanto internacional, foi um período marcado pela normalização pós-vanguardista dos circuitos. Entenda-se pela expressão o desprestígio das ideologias e práticas de tipo transgressivo, em favor de uma renovada e crescente preocupação com o caráter funcional e pedagógico das manifestações artísticas. O mercado, a universidade, os museus absorveram o experimentalismo como peça do sistema e capítulo esclarecido das narrativas sobre cultura.
POETAS DOS ANOS 90
Os anos 80 são importantes como o contexto que explica o surgimento de uma nova e brilhante geração de poetas nos anos 90. No arco que une e desune os anos 70 e 90, vemos uma trajetória que levou da contracultura à reação cultural. Com a saída de cena do socialismo real soviético, o neoconservadorismo e o neoliberalismo polarizaram o debate político. Em cultura, a onda neoconservadora, e o declínio relativo dos apelos transgressores, favoreceu a aproximação, até então inédita, entre instituições tradicionais do saber literário, e da poesia a elas ligada, e a instituição universitária. Temos assim uma reconfiguração do campo institucional cultural brasileiro. Dia-logam mais de perto a USP, as pós-vanguardas paulistas (viúvas do concretismo...), a Biblioteca Nacional, a Academia Brasileira de Letras. Poetas do Nordeste como César Leal, Marcus Acioly, Adriano Espínola, Ruy Espinheira Filho e muitos outros, encontraram espaço de divulgação na revista Poesia Sempre, publicada pela Biblioteca Nacional. Assim também poetas de estilo mais tradicional como Ivo Barroso, Ivan Junqueira, Marcos Lucchesi, Bruno Tolentino, Alexei Bueno.
Um dos elementos da poesia marginal deixado de lado pela geração 90 foi o coloquial desleixado. A geração 70 escrevia num coloquial chegado à gíria de época. A poesia de Paulo Leminski, por exemplo, é toda escrita em gíria jovem dos 70. Os poetas dos 90 optam por um coloquial mais “nobre”, livre da gíria, como vemos em Paulo Henriques Britto e em Antonio Cícero, dois veteranos dos 70 que somente encontraram seu público nesse novo contexto dos 90. Em outros casos, ocorre mesmo a opção por linguagens mais preciosistas, como o primeiro Carlito Azevedo e uma poeta forte como Cláudia Roquette-Pinto. Há linguagens sofisticadamente alegóricas, como em Horácio Costa, e há registros mais idiossincráticos, como nos versos de Lu Menezes ou Valdo Mota. É grande a diversidade nas buscas de caminhos mais elaborados, alternativos ao coloquial chão dos 70. Predomina o poema curto, mas há vozes remando contra a corrente, como a de Alexei Bueno, que insiste no verso longo, prolífico, prolixo. Outro bom poeta da nova geração que evolui no sentido de uma discursividade maior é Rodrigo Garcia Lopes. Poetas ótimos revelados nos últimos anos são o paulista Marcos Siscar e os cariocas Eucanaã Ferraz e Sérgio Nazar David.
Com seu “traço anti-cabralino”, como disse certa vez Ana Cristina Cesar, a poesia marginal trouxera de volta a questão do sujeito e o valor do subjetivo na poesia. Poesia: discurso da intimidade. Mas a subjetividade pós-moderna já não é mais a mesma que se tinha na primeira metade do século XX. O sujeito pós-moderno existe na moldura da visibilidade total. A intimidade é um valor que mudou de figura. Portanto, poetizar a intimidade do homem comum – que foi o maior valor poético do modernismo – tornou-se um projeto necessitado de revisão. No regime da visibilidade televisual total, todo mundo aparece para todo mundo, com suas caras, suas cores próprias, suas variedades, seus números. O universal só existe em estado de diversificação. O homem comum de repente pode ser uma mulher?
Nessa cultura, o sujeito apresenta-se a priori marcado. Marcado pela presença forte da figura autoral na esfera pública. Na antiga civilização do apenas impresso, tanto o político quanto o escritor eram entidades abstratas, que só existiam na folha de papel e podiam por isso falar em nome de um “neutro” que era o sujeito universal. Na civilização televisual, quem fala aparece visualmente diante de todos. A escrita adere à fala e a fala se dá em presença. A fala é performance. O sujeito é aquela pessoa física, performática, simulacral. A comunicação se dá no face a face da tela, que os jornais comunicam no dia seguinte. O romancista escreve seus livros, mas vai à TV discuti-los no quadro de sua própria vida. O sujeito poético é uma projeção desse novo tipo de indivíduo, dessa nova definição da intimidade, enquanto algo já não simplesmente privado. Tal é a condição da marca autoral na poesia pós-modernista.
Marcas de gênero: a questão das mulheres, da poesia feminina por oposição à dominante masculina de todo o sempre. O sujeito humano é mulher. O sujeito é mulher? A marca sexual: poesia gay, poesia lésbica. Marca racial – poesia negra, poesia indígena, etnopoesia. Marca pós-colonial: poesia bilíngüe, multilíngüe. Marca pessoal: a auto-referência burlesca, o dar-se em espetáculo, revelando a intimidade como ato de obscenidade poética.
Na poesia brasileira do fim do século, o sujeito marcado por gênero é de longe o mais importante nessa multiplicação de marcas. A poesia escrita por mulheres apareceu no cenário com força quantitativa. Citemos mais alguns nomes, além daqueles já mencionados: Olga Savary, Cora Coralina, Neyde Archanjo, Orides Fontela, Dora Ferreira da Silva, Angela Melim, Helena Kolody, Lupe Cotrim Garaudy, Josely Vianna Baptista, Zila Mamede, Lélia Coelho Frota, Dora Ribeiro, Iara Vieira e tantas outras, como as mais recentes Cla-ra Góes, Vivien Kogut, Janice Caiafa. Há também uma poesia que recoloca a questão negra, desta vez em primeira pessoa, e não mais em terceira como no arquetípico poema modernista de Jorge de Lima “Essa negra fulô”. Cito aqui três nomes importantes: Adão Ventura, Salgado Maranhão, Ricardo Aleixo. E fatos importantes, como a tradução de poesia ioruba por Antonio Risério e as antologias Ebuli-ção da escrivatura e SchwarzePoesie/ Poesia Negra (esta, edição bi-lingüe lançada na Alemanha). Em matéria de poesia gay, temos os nomes de Antonio Cícero, Valdo Mota, com Roberto Piva e Glauco Mattoso fazendo o elo entre gerações.
DUAS PALAVRINHAS FINAIS SOBRE PROSA DE FICÇÃO
Os dois principais exemplos de
uma prosa alto-modernista em nossa literatura canônica são as obras de Clarice
Lispector e Guimarães Rosa. Clarice oscilou entre uma maneira mais classicizante
nos contos de Laços de Família e vários níveis de prosa experimental ou mesmo
vanguardista, como em Água Viva. Tanto em Rosa quanto em Clarice o dado
alto-modernista define-se pelo caráter remissivo ao infinito de suas escritas,
caracterizando-se pela proliferação sígnica em Lispector e
hieroglífico-neológica em Rosa e pelas altas doses de metalinguagem em ambas as
ficções. Rosa recolhe em sua prosa a tradição toda da literatura brasileira, que
no modernismo dos anos 30 em diante, com forte presença do regionalismo, narra
basicamente a experiência de viver a transformação da sociedade
predominante-mente rural patriarcal em sociedade urbana burguesa. Já Clarice
Lispector situa-se na interface entre alto modernismo e pós-modernismo. Junto
com Rubem Fonseca, ela reinstaura o campo lite-rário brasileiro como um campo
que tematiza a vida urbana, deixando para trás o regionalismo de pano de fundo
rural (nos anos 90 está se fortalecendo um novo regionalismo urbano). Considero
pós-modernista toda a ficção escrita dos anos 70 em diante que já parta de um
campo assim definido, fonsequiano e clariceano, campo, como se pode ver, marcado
por gênero. Nesse sentido ainda, Laços de Família, por questões de temática e de
ponto-de-vista, é também inaugural do pós-modernismo, por representar uma virada
feminista dentro de nosso cânone literário. Sob esse aspecto, trata-se de obra
revolucionária.
Por outro lado, a própria diversidade interna da obra de Clarice Lispector,
assim como a lógica evolutiva posta por seu projeto sempre muito coerente, fazem
com que ela termine completamente pós-modernista, naquela fase que ela mesma
chamou de “hora do lixo” e na qual emergem obras-primas como A Hora da Estrela e
Um Sopro de Vida, assim como o livro de contos A Via Crucis do Corpo. Outros
nomes de autores que deveriam ser investigados como parte de um panorama
pós-modernista em nossa prosa de ficção são: João Gilberto Noll, Márcia Denser,
Sonia Coutinho, Sérgio Sant’Anna, o já mencionado Silviano Santiago, Valencio
Xavier, Bernardo de Carvalho, Rubens Figueiredo, sem qualquer pretensão de
esgotar a lista, principalmente porque na segunda metade dos anos 90 e nos
primeiros anos 00 o campo da ficção viu aparecer uma muito promissora nova
geração de autores e autoras. Eles estão recolhidos em duas polêmicas antologias
da geração 90 organizadas pelo jovem escritor paulista Nelson de Oliveira.
Rio de Janeiro, fevereiro/março de 2004.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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