COMO INTERPRETAR UM TEXTO LITERÁRIO
Carlos Sepúlveda (ABF)
Neste breve encontro e nos poucos minutos de que dispomos, pode parecer temerário propor uma questão cuja abrangência necessitaria de muito mais tempo. No entanto, o que vai aqui expresso é apenas um esboço preliminar, uma introdução e, possivelmente, uma provocação em torno de um tema complexo, porque envolve aspectos da capacidade humana de compreensão e da comunicação. Nada mais volátil do que o esforço que fazemos para compreender a nós e aos outros e, no entanto, nada mais radicalmente humano.
O esforço de compreender e comunicar, na verdade operações intercambiáveis, é que permitiu o salto da natureza para a cultura, que nos possibilitou a condição humana.
Comecemos pelo conforto de declarar a impossibilidade de circunscrever o ato da leitura e compreensão de um texto, supostamente literário ou não, em uma fórmula fechada ou modelo, ou modelagens. Esta tentativa, exercida à exaustão nos anos 1970, sob a rubrica do formalismo e do estruturalismo, redundou inútil, principalmente pelo seu fracasso em deixar de lado a complexidade do conflito das interpretações.
Para oferecer um breve panorama do estado da arte na questão proposta, é interessante partir de algumas obviedades em torno da proposição descrita no título de nossa conferência.
Um texto literário é, fundamentalmente, uma comunicação, no sentido daquela vontade de saber que move o céu e as estrelas, e que Dante chamou de AMOR. Provavelmente, sob o solo comum da linguagem, o homem, a única espécie capaz de organizar uma língua e com ela exercitar a comunicabilidade, elaborou o mais extraordinário e complexo instrumento de transmissão de vida e cultura: a linguagem.
Permanece obscuro o processo neuroquímico que viabilizou este milagre. Talvez um dia, com o espetacular avanço das neurociências, possamos ainda saber como se deu este milagre, ou talvez nunca venhamos a saber, porque este enigma é muito mais próximo da origem do universo, da vida e do homem, do que sonha nossa vã filosofia.
Permanece, no entanto, o fato de que podemos perceber, independente de fatores culturais, sociais ou econômicos, a existência deste refinado operador comunitário, instrumento de comunhão, chamado linguagem. E porque temos este dom, expressamos uma certa vontade de comunicar, como exercemos uma certa vontade de saber.
A espécie humana é inquieta desde sempre. Um homem talvez não, mas a espécie, sim. Jamais aceitou os limites que lhe impôs a natureza e superou todos eles com próteses engendradas por uma espécie de destino. Assim, superou os limites do corpo, do espaço e, como tudo é possível, poderá superar a única variável que ainda não controla: o tempo.
Todos sabemos também que a mais elaborada operação mental produzida pelo Homo Sapiens foi a transcendência, a invenção da vida após a morte, a criação do além, das religiões e dos Deuses, como resposta ao enigma da finitude.
Então, o discurso com que nossos ancestrais inventaram o Além, sob a forma de orações, magias, mitos, rituais, foram os primeiros discursos propriamente literários, no sentido de que se fundaram na vontade de comunicar e de saber acerca do mistério que envolve nossa origem e fim.
Comunicar aos outros as visões do Paraíso sempre exigiu o que Coleridge chamou Suspension of disbelief, a suspensão de nossa capacidade de desacreditar, sugerindo ao ouvinte um princípio fundamental: a exigência da veracidade. Não de ser verdadeiro, mas de ser veraz, de ser sincero em sua crença e aceitar o discurso como uma verdade.
Aristóteles, que escreveu a suma poética de seu tempo, estabeleceu, de princípio, a diferença entre verdade histórica e verdade poética, atribuindo à primeira um sentido testemunhal de veracidade, com o famoso princípio do acontecido. Já para a verdade poética, o Filósofo proclamou o princípio da verossimilhança: o que poderia ter acontecido.
A oposição formal de que se serviu, o acontecido em contraste com o que poderia ter acontecido, pôde re-introduzir um conceito de vontade. No acontecido existe a vontade de saber, de classificar, de formalizar. No verossímil, no espaço do poderia ter acontecido, abre-se o território de algo que Aristóteles nunca pronunciou, porque os Gregos desconheciam: a Vontade de Saber como instância de um sujeito. Freud denominou de Desejo e inventou uma ciência para interpretar este aspecto: a psicanálise. Afinal, o que é a psicanálise senão a ciência do desejo?
Alguém que conta ou narra uma invenção da memória exerce este fascínio essencialmente ou demasiadamente humano: a literatura ou, como pretendia o Estagirita, a poética.
A transcendência introduzida pela espécie humana, e só por ela, ainda nos fascina e nos intriga. Mas certamente sem linguagem, uma e outra seriam impossíveis e o que chamamos humano possivelmente jamais existiria.
Não li, até hoje, nada tão radicalmente revelador para o fenômeno literário do que as reflexões de Aristóteles, sobretudo quando associa as três instâncias fundadoras do literário: a verossimilhança, a mimesis e a catarsis.
Ao longo das reflexões sobre as teorias literárias, dos Gregos aos pós-estruturalistas, parece ter havido sempre uma certa tendência de buscar uma fórmula definitiva em que se deveria enclausurar o fenômeno literário. Aí me parece ter havido um engano: o literário não se deixa enclausurar, por isso não se explica, se interpreta.
Este equívoco metodológico, não o cometeu nem a Hermenêutica nem a Fenomenologia, ambas aparentadas. A bem da verdade, foi justamente a fenomenologia, sobretudo a de Husserl, quem levantou a hipótese dos objetos intencionais, oferecendo a possibilidade de uma razão mediada. Eu escolho as coisas, mas as coisas também me escolhem. Depois, Heidegger nos legou a possibilidade mais ampla e aberta de leitura poética com sua afinadíssima ontologia.
É justamente este aspecto que pretendo tomar como ponto de partida. Não que eu negue a filosofia da práxis em sua vertente relacionada à teoria crítica, mas suponho poder existir um território de compartilhamento entre a hermenêutica e a teoria crítica.
Estabeleço, agora, a primeira proposição.
Chama-se leitura poética a leitura criativa de um texto, no sentido de que autor e leitor se completam e o exercício da leitura é sempre um trabalho cooperativo, mediado pelo acervo de vivências que unem leitor, texto e autor.
Há uma regra básica para o leitor que se utilize da leitura poética: em um texto poético nenhum dos leitores, nem o autor, leitor privilegiado, detêm o monopólio da interpretação.
É necessário, no entanto, entender bem o termo poético, em seu sentido original, na fonte clássica. Poético se refere ao verbo poien que, entre os gregos, significava algo próximo a fabricar, transformar, transmutar. Para expressar o sentido de transformar um coisa em outra, havia também o termo techne, cujo sentido é diferente, sem a profundidade do termo poiesis, porque já se referia ao mundo objetivo e não à economia simbólica da obra de arte.
Com techne os gregos queriam descrever qualquer habilidade no fazer e, mais especificamente, uma espécie de competência profissional oposta a uma capacidade instintiva ou mero acaso. Já para a palavra poiesis admite-se uma conotação ética, referente ao comportamento humano, à produção de sentido em face de valores abstratos como o terror e a piedade, fundamentos da tragédia, por exemplo.
Ora, no mundo do sentido poético clama-se pelo original e pelo originário, por conseguinte pelo que os gregos designavam como o princípio, como physis, palavra próxima à natureza ,mal traduzida, mas que vale em três sentidos: a natureza natural, a natureza humana e a natureza das coisas. Assim, assumimos, até hoje, o idéia de que há um princípio inicial para todas as coisas, mas para os pensadores gregos, este princípio era dinâmico, referia-se a uma espécie de emergência , do mesmo modo que a vida retoma seu curso nas flores, nas plantas, com uma força inevitável.
Interpretar tem a ver com a physis, na medida em que o sentido do texto emerge como uma força originária, revelando o que se oculta a nosso olhar desarmado. Abrir-se a esta verdade é uma espécie de physis.
Uma das frases mais esclarecedoras a este respeito foi escrita por Eduardo Portella quando escreveu que a mimesis é a physis da literatura. Isto quer dizer que literatura emerge no mundo da representação do vivido e do a viver.
Em termos mais diretos: existe sempre um componente de mediação no texto literário e que será objeto de uma negociação entre o escrito e o lido.
Um texto é, portanto, um objeto em construção. Nada se pode dizer de um texto se não for produto de um Hermes, um deus da mediação, da negociação, de enunciação angélica da novidade revelada, interpretada. Trazida entre os homens, assim como a verdade, segundo Sócrates, está entre os homens. Quem sabe em sua práxis.
Nesta linha de argumentação, poético quer dizer o que se desdobra do princípio das coisas, a volta ao originário e ao original. Por isso, a leitura poética é um exercício de retorno ao originário/original, que também se relaciona com o conceito de verdade entendida como o que se oculta a nosso olhar, e não como adequação entre o intelecto e as coisas. Cabe ao poético a tarefa de realizar o des-velamento, cabe à literatura a tarefa de ser anunciadora do sempre novo.
Cabe, porém, ampliar nossa discussão para algo mais formal e talvez um pouco mais didático.
Sabe-se que o sentido de um texto é uma reconstrução na qual o tempo e o espaço (a distância entre texto e leitor) desempenham importantes funções esclarecedoras dos sentidos. A proximidade, a contemporaneidade, a distância temporal e espacial do texto fazem parte da estrutura do sentido que se pretende resgatar no esforço da leitura.
Daí e existência de três instâncias fundadoras da construção do sentido. A primeira, situada antes da presença do texto explícito que poderemos denominar de pré-texto, seguindo a lição de Eduardo Portella em seu Fundamento da Investigação Literária.
Os elementos do pré-texto constituem as bases de uma teoria da intencionalidade, porque são aspectos da práxis do autor, isto é, sua biografia, seu espaço social, ambiente histórico, leituras realizadas, enfim, tudo aquilo que constitui um conhecimento capaz de se acrescentar ao entendimento do texto mas que não é relevante senão em vista do que está inscrito no texto do autor, não importa os níveis de consciência.
O pré-texto é prévio, mas é também concomitante, porque só concomitantemente pode ser prévio e porque forma um aspecto do contexto. Como se sabe, o contexto determina uma parcela importante dos jogos de linguagem e, por conseguinte, do sentido.
A segunda instância é o texto enquanto presença explícita, concentrado numa língua de cultura, articulador dos fatos e recursos desta mesma língua. É o momento propriamente formal e constitui as teorias da imanência. O texto é a realização formal das possibilidades de uma língua, transformada em literatura, por meio de recursos estilísticos e que depende, é óbvio, das habilidades do autor enquanto produtor e articulador de uma gramaticalidade.
É evidente que nossa capacidade de ler e de usufruir do prazer do texto está imediatamente vinculada à percepção que temos, na condição de leitores, de apreciar o jogo de linguagem articulado pelo artista. É este ir-além-da-língua, esta transgressão, ou esta trapaça, como dizia Barthes, que permite a existência do literário.
A terceira instância é, ao mesmo tempo, mediadora e conflitiva. De posse da nossa leitura, da leitura de cada um, abre-se o espaço do dialogismo entretextual. Portella considera este momento como o entretexto, isto é, um espaço de conflito e de tensão entre a verdade do leitor e aquela do texto. Mantenho a mesma denominação utilizada por Portella, esclarecendo que se trata de uma tensão criativa e fundadora, porque é o momento da subjetividade, da formação dos juízos práticos, na formulação kantiana. É aí que o texto vive e revive, porque é submetido ao rigor da comunidade de leitores, do espaço público, da crítica, das instâncias legitimatórias do literário. No entretexto é que se decide o destino e a vida de uma obra literária.
Neste sentido, quando um autor produz, ele faz uma aposta com o futuro. A obra será ou não legitimada a partir de situações imponderáveis que só o devir pode esclarecer. A obra de Machado de Assis se tornou clássica e tem sido capaz de oferecer uma ponte entre o passado e o futuro. Centenas de outros escritores ficaram pelo caminho do esquecimento e não foram capazes de escrever o futuro. Porque isto acontece constitui o admirável mistério da existência de nossa atividade humana. No entanto escrevemos, mal rompe a manhã, mesmo sabendo que menos de 1% dos escritores sobreviverão a este crítico implacável que é o tempo.
Voltemos ao texto literário.
Um texto, sobretudo artístico (isto é, com intenções literárias) é tanto mais poético quanto mais profundos são os seus variados sentidos, daí a inesgotável capacidade de interpretação de que um texto é portador. Há, por conseguinte, no texto poético, uma infinidade de possibilidades de leituras, uma polissemia, por isso pode-se dizer que uma obra verdadeiramente poética é uma obra aberta e que seu sentido nunca está pronto, é uma operação solidária de construção de sentidos.
O leitor do texto literário depara-se, freqüentemente, com o desafio (e o prazer) da interpretação, por isso ele é um leitor especial, porque não lida com uma única e específica verdade, mas com várias possibilidades de construção da assim chamada verdade do texto, ou, tecnicamente, verdade poética.
A grosso modo, costuma-se deparar, hoje, com três tipos de textos que o leitor busca interpretar e, conseqüentemente, interrogar acerca da validade deles.
Pensamos inicialmente nos textos que se sustentam na verdade da ciência, isto é, aqueles textos que costumam ser definidos como científicos. Nesse caso, o leitor tem a tendência a interpretá-los a partir de certas estruturas argumentativas atribuídas à ciência. São textos validados pelo conjunto do conhecimento científico, portanto dependem, para sua adequada interpretação, da verdade científica. Esses textos não podem ser polissêmicos, ao contrário, devem ser denotativos, referenciados no sentido de situações exteriores à linguagem do texto, fora, portanto, de seu conteúdo semântico. Nesse caso, o texto normalmente funciona como legenda para algo que se quer demonstrar e que já se encontra no exterior, isto é, fora do universo de significação do próprio texto. O que se preserva, neste caso, é o caráter pragmático do texto, sua eficácia comunicativa ou argumentativa em face dos paradigmas nos quais se baseia. É um efeito demonstrativo.
Os textos ditos científicos, no sentido aqui exposto, não têm finalidade em si mesmo, não são autotélicos, porque demonstram fatos ocorridos na exterioridade, tanto na natureza quanto no mundo objetivo das coisas ou dos conceitos. O que não quer dizer que não sejam interpretados.
Em seguida, podemos considerar os textos que sustentam certos valores de ordem prática, isto é, textos que se referem a algum tipo de verdade de fundo moral ou ético, que têm a ver com o comportamento dos indivíduos e da vida social. Nesse caso, o que lhes dá validade é um certo sentido de justiça e de retidão (fazer a coisa certa), que os leitores costumam desenvolver a partir do mundo-da-vida, do senso-comum, do patrimônio moral vigente ou das ideologias.
Alguns desses textos, por exemplo, sob o título recente de “literatura de auto-ajuda”, vêm se tornando muito populares, não porque expõem verdades científicas, mas porque despedem conceitos supostamente religiosos, espiritualizantes, supostamente místicos, que estão, na realidade, ainda circunscritos à metafísica clássica e que, submetidos à pressão do mercado, se transformam em literatura empobrecedora da experiência humana, o que é uma contradição, reduzindo o espaço simbólico das vivências, simplificando o que de natureza é complexo: o outro.
Também nesse caso a leitura poética é inaplicável, na medida em que esses textos não permitem uma leitura aberta, isto é, isenta de paradigmas pré-estabelecidos.
No entanto, em certas circunstâncias, esses textos podem situar-se na fronteira do poético, em especial aqueles textos que se abrem para a exegese bíblica ou jurídica, admitindo outras interpretações e novos exercícios de desvelamento. Caso escapem da banalidade do mercado (best-seller não é uma categoria literária, mas mercadológica) podem revelar alguma poesia, mas aí eu desconfio que não será mais de auto-ajuda. Nem de nenhuma ajuda que vem do alto.
O problema é que, apesar da relativa abertura, essas exegeses têm limites estreitos, sobretudo quando as interpretações estão submetidas ao dogma ou ao cânone. É o caso clássico da jurisprudência e das teologias que mais escondem do que revelam.
Finalmente, os textos que nos dizem respeito: os poéticos.
Os leitores do texto literário, quando sabem que estão perante este tipo de escrita, precisam, como atitude inicial, promover uma espécie de suspensão de julgamento, ou, como escreveu o poeta inglês a quem já nos referimos suspension of disbelief.
Por que esta atitude inicial é decisiva para a leitura poética? Porque a literariedade do literário é validada pela sinceridade com que nós, leitores, nos entregamos à lógica do texto, como aceitamos o mundo autotélico proposto pelo autor.
Sabemos, pelo senso comum, que de nada adianta cobrar verdade da ficção, porque se trata de uma outra estrutura de realidade, sobretudo se esta verdade é produto da adequatio e não da desvelação.
Aristóteles, como dissemos, escrevendo sobre este problema, cunhou a categoria verossimilhança, que remete a um território difuso entre o real prático e o real imaginado.
No conceito de verossímil, reside a tensão própria da verdade poética, portanto literária. Tensão justamente porque o texto literário nos joga no mundo das contradições, da polemos, entre o que é e o que poderia ter sido.
Se alguém aqui imagina a literatura como um confortável lugar de descanso, esqueça.
Podemos, pois, assumir que, quanto mais literário, mais ambíguo, mais exposto às tensões entre o que é e o que poderia ter sido.
Eis aí a primeira marca do poético: quanto mais agudamente problematizador do que é, mais verdadeiramente poético.
Então, a leitura poética é a leitura do que não está dito, do residual, da tensão, da elipse.
O leitor da literatura necessita, portanto, retomar algumas categorias estritamente poéticas com que o literário emerge, no contexto da literariedade. É o que pretendemos fazer.
No exercício destas prerrogativas, duas exigências, ou melhor, duas habilidades, se fazem importantes:
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PENSAR DUPLOÉ da natureza mesma da linguagem este duplo pensar. Neste sentido, toda literatura é uma grande metáfora, uma comparação entre possíveis mundos e nossa habilidade, enquanto leitores da literatura, que consiste justamente em viver esta tensão.
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LER OS VAZIOS DO TEXTOTodo texto verdadeiramente literário ,ou poético, sugere, muito mais do que diz. A ambigüidade, as alusões, as preterições consistem em um jogo de linguagem capaz de permitir ultrapassar os limites da própria linguagem, como nos indica Wittgenstein, e daí construir mundos.
Albert Camus escreveu, certa feita, que se o mundo fosse claro, a arte não existiria. Observem como ele, de algum modo, repetiu os gregos, partindo do conceito de que o mundo, por mais belo e racional que pudesse parecer, é ainda a morada de um certo mistério, do SER, de que nos esquecemos faz mais de três mil anos e que, para eles, estava logo ali, ao alcance dos sentidos.
Permitam-me agora uma reflexão à margem do que vimos tratando e que nos iluminará o caminho.
Mas, quando lia, os olhos divagavam pelas páginas e o coração penetrava-lhes o sentido, enquanto a voz e a língua descansavam. Nas muitas vezes em que me achei presente – porque a ninguém era proibida a entrada, nem havia o costume de lhe anunciarem quem vinha – sempre o via ler em silêncio e nunca de outro modo. (Confissões)
Foram essas as palavras com que Agostinho de Hipona, por volta do ano 400 d.c., descreve o espanto de surpreender Ambrosio, seu mestre, lendo em silêncio.
É a primeira vez que se registra a possibilidade de existir alguém interior para quem se pode ler, do mesmo modo como só se lia em voz alta. A leitura silenciosa estava sendo inaugurada e com ela a possibilidade de uma comunicação da interioridade, que os antigos não conheceram muito bem.
Agostinho escreve um belíssimo livro – Confissões – que é uma espécie de crônica da consciência e certidão de nascimento de um EU, de uma subjetividade, que é uma invenção do ocidente.
Mas, ao mesmo tempo em que se maravilha com a possibilidade de existir uma voz interior, Agostinho percebe também a impossibilidade da plenitude, porque este EU, que registra uma narrativa no tempo, também constrói uma tragédia: é que jamais seria possível a completa harmonia entre o eu interior, a paisagem interna, e o mundo exterior, as coisas. Estava para sempre fraturada a harmonia entre o nome e as coisas que o duplo pensar revela, se é que em algum dia existiu esta recôndita harmonia.
O espanto de Agostinho é um sinal desta cultura ocidental trágico-moderna. Porque há um terrível descompasso entre o que somos para nós mesmos, estas figuras da subjetividade, o sonho, a fantasia, os desejos, a idealização, o mundo interior e a dura lei de que somos para os outros: a lei, a ordem, as marcas do superego, para falar como Freud.
E imaginamos um dia, no período romântico, que a formação, a Bildung iluminista, seria a possibilidade do triunfo do homem educado, civilizado pela arte, pela estética, sobre a barbárie da ignorância.
Na fala cotidiana ouvimos: cair na real. Existe aí uma sabedoria: o real é um lugar onde se cai, ou decai, ou desmorona. Aí está a origem da tensão fundadora do literário.
No entanto, vale a pergunta: devemos desistir do sonho de ver triunfar a delicadeza do poema, a sutileza da arte, a magia do teatro, a graça do humor sobre a realidade pura e dura? Devemos abandonar a perspectiva de reconstrução do sonho romântico de emancipar o indivíduo a partir do culto da beleza estética? Não vale a pena apostar no potencial construtivo da obra de arte, em todas as suas expressões? Devemos abandonar o projeto civilizatório de superar a morte, eliminar a dor e viver com a beleza?
É disso que se ressente a noite em que mergulhou o ocidente da cultura. Todos os que comungam do mesmo sonho de ver triunfar a vida como obra de arte estão misteriosamente prenunciados no discurso de Agostinho de Hipona. E depois repetidos no verso de Keats: a thing of beauty is a joy forever.
Fiz este breve desvio para ilustrar os desafios que enfrentamos, nós, professores de leitura, numa sociedade que vem se tornando pós-letrada.
Acho que já podemos ampliar um pouco mais nossa reflexão no sentido de estabelecer, ainda que esquematicamente, algumas habilidades básicas para a formação do leitor. Afinal, tudo o que pretendi ser na vida, agora que Deus vem me punindo com a senectude, foi ser um professor de leitura. Leitura em sentido amplo, como falamos em ler um livro, ler uma sinfonia, ler uma pintura, ler um filme.
Imagino, para ser didático, as seguintes habilidades:
1- Acervo semântico compartilhado
O idioma do texto necessita ser acessível ao leitor, caso contrário a mensagem torna-se ruído. Isto exige o habito da pesquisa filológica, da consulta a dicionários e de um certo treinamento em nosso métier. A vida das palavras, como todos sabemos, é um fascinante universo de jogos de sentido, porque envolve idioletos, registros, dialetos, enfim, aspectos das variações lingüísticas. Imaginemos a aventura empolgante de se defrontar com uma literatura de Guimarães Rosa, por exemplo.
2- Defasagem espaço-temporal
O sentido é uma tensão entre Ser e Tempo. O texto pode ser a expressão de uma temporalidade objetivamente distante de nós, no entanto, ontologicamente, o tempo é sempre unitário. O distante é muitas vezes o muito próximo. Muitos textos, embora produzidos em contextos práticos distantes do leitor, dele se aproximam justamente em virtude desta presentificação que ignora a linearidade temporal. Presente, passado e futuro pouco significam, exceto na condição de referências espaço--temporais.
3- Reconstrução das sensibilidades
T.S Elliot costumava dizer que o mais difícil na leitura de um poema não é reconstruir o sentido, mas a sensibilidade, especialmente porque não se educam mais os sentimentos. A comunhão necessária entre as motivações emocionais do autor e a sensibilidade do leitor constitui um dos mais difíceis problemas a serem enfrentados. Como educar a sensibilidade de um leitor numa sociedade que constrói suas sensibilidades por meio dos programas de televisão, a maioria de péssima qualidade? Esta sintonia, que os alemães chamam de Stimmung, parece depender do currículo familiar, da formação, do gosto desde a primeira infância, portanto, quando recebemos nossos jovens em sala de aula, a maioria está perdida para esta habilidade.
Não sei se este fatalismo cabe, mas temos também testemunho de leitores autodidatas que conseguiram desenvolver fina sensibilidade, às custas de esforço pessoal. É o caso clássico de Machado de Assis.
Tenho obtido alguns resultados positivos com turmas de letras, buscando desenvolver exercícios de meditação, de sensibilização, com a ajuda de disciplinas como arte e educação. Acho no entanto que esta é uma tarefa multidisciplinar, envolvendo áreas da psicologia, da pedagogia, da lingüística e mesmo da filosofia. Podemos organizar um grande esforço no sentido de criar uma disciplina de estude com mais cuidado estas questões.
4- Experiências compartilhadas
Todo leitor quer contar e dividir o que leu, sobretudo quando o entretexto radicaliza carências de sua vida pessoal. Se somos o que nos falta, o texto é como a paixão e o amor: precisamos do outro paradisíaco, já que o paraíso é o que nos fala do que não temos ou somos. Compartilhar e verbalizar o que diz o texto, não importa em que nível, é o começo do prazer do texto. Também sei que alguém vai me indagar como fazer isto numa classe com 80 alunos. Eu não sei, mas ainda que vire um monólogo -- o do professor embevecido -- existirá uma certa reverência, se houver sinceridade. Há uma regra: não tenham medo do ridículo, professor de leitura é mesmo um tipo meio maluquinho.
5- O prazer do texto
É este o ponto de chegada, o nosso Telos. Borges, o grande Borges, dizia não compreender a prática da leitura obrigatória, para ele soava como um absurdo. Ler é uma expressão refinada do desejo, é um erotismo, só pode existir como prazer. O livro de Barthes -- O prazer do texto --é, depois de quase 40 anos, um texto indispensável. Quando vislumbrarmos em nosso aluno aquele gosto pela leitura -- sabor mesmo, sabor físico, como saber é sabor -- percebemos como ele toca no livro, como ele busca o odor de livro novo, como acaricia a capa, detém o peso, sente a fusão de mineral e vegetal que é a coisa livro. O prazer do texto leva à paixão de ler. Como toda paixão, é punida, como aconteceu com aquele leitor paradigmático, um certo Alonso Quijano, que viveu trancado em sua biblioteca, durante 35 anos e só saiu para viver o absurdo de ser Dom Quixote.
Porém não importa. O prazer de ler, quando acontece, compromete corpo e espírito e a solidão se transmuta em longas conversações com mentes brilhantes que podemos convocar sempre que temos vontade. Existe prazer maior? O que é uma biblioteca senão um depósito de vozes e almas prontas para serem convocadas?
Não estaria completa esta conversação se não sugeríssemos aos futuros professores e jovens colegas algumas pistas de como começar a aventura de formar leitores de literatura.
Sugiro começar desfazendo algumas confusões que o leitor leigo não é capaz de desfazer. Esclareço que os próximos parágrafos são o resultado de aulas para turmas do ensino médio.
Quando lemos um texto ficcional, é comum nos atermos a dois elementos básicos: enredo e personagem.
Enredo é o que se conta na história, são as complicações, os acontecimentos, enfim, a invenção do autor, a trama, a habilidade em apresentar os fatos dentro de uma certa ordem.
Personagem é a figura humana (ou humanizada, dizemos antropoformizada) que aparece na história.
No entanto, o que nós guardamos na memória, depois de termos lido, não é normalmente o enredo. Se nos lembramos de um filme, uma telenovela, uma peça de teatro ou um romance que lemos (ou que vimos),o que fica em nossa memória são as (ou os) personagens.
Então, personagem é uma figura importantíssima numa história. Mas por que isto acontece?
Uma das explicações mais plausíveis para o fato de lembrarmos as personagens é que a personagem se aproxima imediatamente da pessoa, na verdade se parece muito, e como nós, leitores, nos reconhecemos como pessoas, esta identidade é quase natural, isto é, espontânea.
Pessoa é o que somos para os outros. Os outros sempre fazem de nós alguma coisa, dizem que somos altos ou baixos, feios ou bonitos, se somos generosos ou egoístas. Enfim, elas nos atribuem identidades, nos designam papéis, que representamos como atores sociais. Como vivemos diferentes realidades, em diferentes grupos e atravessamos vivências pessoais diferentes, nós somos sempre pessoas plurais e inesgotáveis.
As personagens, no entanto, são seres de papel, não têm vida como nós temos, são atribuições de alguém a partir da linguagem, são substantivos, adjetivos, pronomes, verbos, isto é, categorias gramaticais, mas nos imitam em nosso modo de ser, parecem conosco, agem como nós, com uma diferença fundamental: enquanto as pessoas são inesgotáveis, as personagens são congeladas. A personagem é congelada na história, são sempre as mesmas palavras que a designam, ao contrário das pessoas que sempre podem mudar. Personagem é para sempre, pessoa não.
Porém, por que a personagem é tão decisiva na construção de um filme, de uma novela ou de um romance? É que a personagem, porque é um ser imutável, não está submetida ao tempo, não pode mudar, não pode nos surpreender, e isto permite que se volte sempre a ela, refletindo com calma sobre o seu significado, sobre sua maneira de agir.
Então, enquanto as pessoas agem sempre sem poder controlar exatamente todas as conseqüências se seu agir (chamamos isto de livre-arbítrio), as personagens podem ser interpretadas e podem nos indicar algumas regras, algumas características, alguns procedimentos, no que convencionamos chamar vida real.
As personagens são construídas para representar atitudes humanas. Por exemplo: Capitu, de Machado de Assis, pode estar associada ao ciúme, à intolerância, à injustiça; Riobaldo, de Guimarães Rosa, costuma simbolizar a sabedoria do homem simples que nos dá lições de vida; Aurélia, de José de Alencar, pode representar a luta pela emancipação da mulher, etc..
Mas nem sempre pessoa e personagem estão próximas (chamamos de realismo quando esta aproximação é muito grande). Pode ser que o autor pretenda construir uma alegoria, nesses casos, a personagem pode tomar formas bem diferentes da forma humana e serem construídas de modo surpreendente (chamamos absurdo este tipo de construção).
Por exemplo, Kafka, um dos mais importantes autores do século XX, construiu uma personagem chamada Gregor Samsa que se transformou em um enorme inseto no romance chamado Metamorfose.
Esta personagem é um alegoria de uma situação complexa no mundo.
Se se reparar bem, as personagens dos contos de fada são também absurdas, se comparadas às pessoas.
Por fim, deve-se compreender que pessoas são prisioneiras do tempo e do espaço, estão submetidas ao peso das convenções, da gravidade, têm peso e massa, são, portanto limitadas em seu espaço, embora possam sempre nos surpreender; ao passo que as personagens, embora construídas de palavras, são produtos da livre imaginação de alguém, representam valores éticos, verdades, qualidades que nos ajudam a compreender o enigma da vida e jamais deixam de ser como foram escritas, exceto para nossa interpretação.
Elas existem porque nós temos sempre um excesso de vida e, como disse uma vez um grande escritor francês chamado Albert Camus, se o mundo fosse claro, a arte não existiria.
Outro aspecto importante é o herói do enredo. Neste caso, falamos de vários tipos de heróis.
Para bem se compreender, vamos começar pelo herói moderno ou problemático (categoria definida por um filósofo húngaro chamado Georg Lukács) é preciso, antes, entender as novas funções da ficção literária, em especial do romance, a partir da modernidade, para nós, a partir do século XVI.
O romance passa a ser a história de uma investigação sobre a autenticidade do mundo, isto é, a idéia moderna de que o mundo é um lugar demoníaco, porque obriga o homem a perder seus valores verdadeiros e autênticos, como a lealdade, a coragem, a fidelidade, a temperança, a solidariedade, valores que construíram o herói clássico.
Sendo o romance moderno um tipo de ficção que se caracteriza por representar uma ruptura insuperável entre o herói e o mundo (moderno), segue-se que aquele – o herói – permanece numa espécie de luta interna entre a busca da superação dos obstáculos (como o herói clássico) e sucumbir ante as regras de um mundo movido pelo interesse, cujas normas são devastadoras.
O herói moderno (problemático) por ser incapaz de superar esta contradição torna-se demoníaco. São heróis loucos, criminosos, melancólicos, cínicos, sempre problemáticos, porque desajustados, cuja busca degradada, e por isso inautêntica, dos valores autênticos num mundo de conformismos, convenções, falsa moral, constitui um novo tipo de personagem do romance, que os teóricos chamam romance moderno.
Então, o que caracteriza este herói moderno (ou problemático) é que, incapaz de compreender ou aceitar a lógica de um universo formado a partir da cultura pequeno-burguesa, conservadora, reacionária, vitoriana, com seu mundo inautêntico feito de hipocrisias e conveniências, ele se rebela, não no sentido de uma transformação de valores, mas uma rebeldia surda, feita de loucura, solidão e mágoa.
Em resumo: o herói moderno ou problemático é o personagem de uma história de uma busca degradada por valores autênticos, num mundo decadente, por isso um mundo que se tornou desumano e desencantado.
Se para o herói clássico o mundo é um lugar habitado pelo deuses, portanto um espaço sagrado, e seu papel é merecer a heroicidade por meio de ações extraordinárias, para o herói moderno o mundo é um lugar demoníaco e degradado, onde os deuses já não mais habitam e ele, o herói moderno, sente-se intruso, por isso é problemático.
Já o anti-herói é a tentativa de se construir um personagem para o qual o mundo é um lugar absurdo, sem sentido, e ele não é capaz de nenhum ato, nenhuma ação, apenas é um espectador passivo, um objeto sem finalidade.
O anti-herói é uma espécie de extensão do herói problemático, é a metáfora do homem comum que se sente impotente frente a um mundo absurdo, sem finalidade.
Sigamos este pequeno trecho de Graciliano Ramos, em seu romance
Angústia.Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
(...)
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres na Rua da Lama.
Consideremos, agora, alguns aspectos relacionados à tensão que se segue à leitura de um texto literário, como o que acabamos de ler, e que chamamos, antes, de entretexto.
A literatura, como as demais artes, começou como um ritual mágico, de fundo religioso; buscando representar, principalmente por meio da dança, as atribulações e as peripécias do dia. Lembremo-nos de que se tratava de sociedades de coletores-caçadores.
Por meio desses ritos, em que os movimentos do corpo imitavam o dos animais e da caça, os “artistas” não só narravam o cotidiano como também reviviam as suas próprias dificuldades e perigos.
Assim, esses rituais tinham duas funções básicas; de um lado, ensinavam aos outros como superar as dificuldades da coleta de alimentos e, por outro, repetindo o sofrimento, de um certo modo, superavam-no.
Podemos, então, dizer que literatura e as artes começam, na vida humana, realizando de modo mágico e religioso duas funções: mimesis e catarsis.
Por mimesis entende-se a imitação, isto é, a repetição daquilo que a natureza mostra, mesmo sabendo que ela é irrepetível, por isso não é propriamente uma cópia, mas uma representação: uma apresentação outra vez. Por catarsis compreende-se a necessidade de repetir os fatos do cotidiano para superar as contradições que eles contêm. Vimos isto em Aristóteles.
As duas formas são inseparáveis e constituem a essência mesma da obra de arte.
Das duas formas esquematicamente apresentadas, a catarsis é que nos interessa no texto que acabamos de ler.
Por catarsis entende-se, então, um ritual de superação das contradições, isto é, dos desejos frustrados, das emoções reprimidas que se liberam, e portanto se ajustam, quando se liberam.
A catarsis era, originalmente, sempre entre os gregos, uma forma religiosa, no sentido de favorecer o equilíbrio (os gregos chamavam DIKÊ) tão desejável para a condição humana.
A obra literária, no caso a tragédia, representada como um ritual religioso, servia para evocar o terror e a piedade na platéia e, desse modo, fazer com que cada espectador revivesse a dor, o horror, o sofrimento da personagem e assim liberasse, também, suas próprias dores.
Como tudo era uma forma de fingimento, o espectador saia do teatro livre de seus próprios terrores e se tornava útil à vida coletiva.
Mas para que a catarsis seja bem sucedida, exige-se que a platéia se identifique com uma personagem, normalmente o herói trágico, através do qual ela sente e repete o sofrimento dele.
Então, os processos de identificação com um personagem é que permitem ao espectador – ou ao leitor – praticamente reconhecer-se dentro da narrativa, por meio de uma identificação com uma das personagens, ou mais de uma.
Os sutis mecanismos de catarsis normalmente são sentidos pelo espectador não a partir de uma reflexão racional sobre o que se passa na história, mas como um sentimento de solidariedade ao personagem, quase que exclusivamente como um dado da emoção e do sentimento. O leitor, no caso do texto, ou o espectador, no caso do teatro, do cinema ou da televisão, praticamente mergulha na narrativa, sentindo simpatia (que quer dizer “com a mesma paixão”) por um ou mais personagem e antipatia (isto é: “paixão contrária”) acerca de outros. Desse modo, pelo amor e pela recusa, o leitor (ou espectador) deixa extravasar seus próprios sentimentos e encontra uma espécie de alívio para suas próprias emoções.
Quando assistimos a um filme e choramos de emoção ou gritamos de medo ou sentimos um imenso terror ou mesmo indignação estamos sendo submetidos ao processo da catarsis. Normalmente, dependendo de nossa sensibilidade e das situações evocadas, de nada adianta tentar evitar a emoção, pois ela é maior do que nossa capacidade de retê-la ou mesmo compreendê-la. Há mesmo quem afirme, como os românticos, que a principal função da arte é a catársis.
Ainda imaginando um leitor desarmado, sem as habilidades básicas para a leitura de um texto literário, é interessante discutir a categoria de autor e narrador que, obviamente, não são a mesma coisa.
Do mesmo modo que pessoa e personagem mantêm semelhanças e diferenças, também o autor e narrador.
De grosso modo, podemos dizer que autor corresponde à pessoa, porque é uma entidade física do chamado “mundo real”, isto é, uma pessoa física. Já o narrador é uma figura da ficção, quer dizer, é uma voz que conduz o enredo, não tem, portanto, existência física, não é pessoa, é personagem.
Pois bem, se o narrador é quem nos conta uma história, quem conduz o fio narrativo, ele pode se colocar em diferentes lugares, em diferentes pontos-de-vista. Do mesmo modo que nós podemos nos perguntar sobre o lugar de uma pessoa quando ela nos conta um fato qualquer.
Assim, podemos ter:
SITUAÇÃO |
AUTOR / PESSOA |
NARRADOR / PONTO DE VISTA |
1 |
Eu conto um fato que aconteceu comigo | Narrador em primeira pessoa (EU) ou intradiegético ou narrador-personagem |
2 |
Eu conto um fato que me contaram ou que eu soube, mas não aconteceu comigo | Narrador em terceira pessoa (ELE) ou extradiegético ou “onisciente” |
Esta classificação é meramente esquemática. O que acontece, de fato, é que as relações entre o narrador o que ele conta (matéria narrada) podem sofrer uma série de variações de modo que os pontos-de-vista acabam dependendo da estratégia do autor.
O importante é saber que o que se narra não é necessariamente o que se vive, mas o que se vive (na imaginação) é sempre o que se pode narrar.
Imaginemos que nosso leitor se envolve com a literatura de nosso tempo, sobretudo de Machado de Assis até agora. Neste caso, ele deverá assegurar-se dos conceitos de metáfora, de metonímia ,da ironia, que constituem as figuras básicas, o idioma da literatura ocidental contemporânea.
Os termos expressos anteriormente referem-se a uma propriedade fundamental de toda e qualquer língua que é seu caráter de duplicidade, como já anotamos.
As figuras, como se denominam aqueles três termos, só existem porque somos capazes de ir além da expressão imediata de uma referência qualquer, porque somos dotados da habilidade de ir além do que está dito ou escrito.
Essa duplicidade na apreensão do sentido é conhecida como uma disposição entre denotação e conotação, descrita pela lingüística estrutural.
Por denotação entende-se um sentido aceito consensualmente pela maioria dos usuários de uma língua e que se torna fixada em suas formas dicionarizadas e independe, relativamente, dos contextos.
Por conotação entende-se um sentido basicamente contextual, portanto, particularizado e restrito, e que se refere a uma extensão que dizemos figurada.
De todo modo, as conotações é que permitem a profundidade do sentido, a renovação da língua e a recriação dos vários sentidos de um vocábulo. Sem esse dinamismo, as línguas morreriam.
Em certo sentido, metáfora, metonímia e ironia só existem porque podemos escapar da ditadura do sentido único, por meio das denotações, por meio de expansões em profundidade das conotações.
METÁFORA
Baseia-se numa expansão do sentido a partir de uma comparação não declarada, por meio de uma extensão de campos semânticos que guardam entre si algum tipo de afinidade aleatoriamente construída.
Tomemos o seguinte verso:
Fecha-se a pálpebra do dia.
Denotativamente, isto é, em sentido imanente, diz-se: o dia está acabando, ou o sol se põe, ou a noite começa, etc.
No sentido recuperado pela metáfora, a base do sentido encontra-se concentrada no termo pálpebra.
Somos levados a construir uma imagem para compreender a cena descrita.
A cena descrita refere-se ao pôr-do-sol. O poeta imaginou (isto é: construiu uma imagem) onde o sol parece um olho humano, daí o termo central da metáfora: pálpebra.
Assim temos:
SOL
Þ OLHO Þ PÁLPEBRAem que o sol é comparado a um olho humano.
Se não fôssemos capazes de compartilhar com o poeta a associação olho = sol, não seríamos também capazes de assimilar a metáfora. As metáforas só se constróem por assimilação analógica. São, portanto, em certo sentido, produtos culturais.
METONÍMIA-
Do mesmo modo que as metáforas, a metonímia também se baseia em uma afinidade ou comparação.
Tomemos a expressão popular:
Comi dois pratos.
Denotativamente, isto é, em sentido linear e plano, ninguém como pratos, o que se come é o alimento que está no prato. Ao contrário da palavra sol, que não tem relação direta e imediata com olho, prato e alimento estão em total relação de identidade. A palavra prato está sempre associada a alimento, não depende tanto da invenção de quem enunciou a frase mas de sua capacidade de repetir algo que já está dado.
A metonímia é, pois, uma metáfora sem imaginação, porque é óbvia demais.
IRONIA-
Também depende de um segundo sentido contido na expressão, a diferença é que, nesse caso, não é exatamente o modo de ler a expressão, mas o modo de enunciá-la.
Tomemos este exemplo:
Muito bonito o que você fez!!!
Se tomamos o termo bonito denotativamente, isto é, em sua forma dicionarizada, e em nosso modo de pronunciar a frase (enunciá-la), não há ironia. A ironia só aparece quando enunciamos o termo bonito de modo a ler o avesso, o contrário, do que diz sua denotação (isto é: bonito é lido como feio). Necessitamos, pois, alongar a vogal i.
No texto escrito, é indispensável apreender as marcas da enunciação (hipertextos) para poder ler a ironia. No caso acima, a interjeição marca a enunciação irônica.
Outras vezes, as marcas da enunciação dependem do contexto.
Pretendi, com estes exemplos, sugerir algumas estratégias para interessar novos leitores no mundo da literatura.
E assim, caminhamos para um possível final de nossa exposição.
Gostaria de convocar a palavra de Dante, com quem iniciamos esta palestra, em um dos mais comoventes episódios da Commedia e que tem como tema a leitura.
Trata-se do Canto V do Inferno em que Dante descreve o segundo círculo. Lá está Minos, Rei de Creta, que julga as almas dos pecadores. Ali são atormentados os voluptuosos, são punidos o ócio e o prazer, que foram os mais belos eventos de um século Alegre. Mas é também ali que estão Francesca e Paolo da Rimini, condenados por fratricídio e adultério.
Paolo e Francesca viviam na mesma casa, porém Francesca era mulher de Gianciotto, irmão de Paolo. No dia em que o marido se ausentara, Paolo, o belo e gentil poeta, sedutor, ao contrário do irmão, bruto, sanguinário condottiere, foi surpreendido no leito da cunhada. Morrem os três na luta que se seguiu. Todos, inclusive os amantes, vão para o Inferno. O tormento dos namorados consiste em girar suas almas, no espaço, sem jamais poderem se tocar. Podem apenas contemplar-se, quando passam próximos, girando em sentidos opostos. Que maior tortura, para quem vive um amor improvável, do que contemplar o amante sem poder tocá-lo?
Indagada por Dante como chegaram àquela situação, em razão de um amor ilícito, Francesca culpa o livro e a leitura. Diz ela, descrevendo a aproximação dos rostos dos amantes, enquanto lêem a mesma página:
Per più fiate li occhi ci sospinse
quella lettura, scolorocci il viso,
ma solo un punto fu quel che ci vinse.
(Nossos olhos, por vezes, se encontrando,
cessam de ler; a cor do rosto muda.
Foi daí que se marcou nosso destino.
E mais adiante:
(...)
la bocca mi baciò tutto tremante
Galleotto fu il libro e chi lo scrisse:
quel giorno più non vi legemmo avante.
(Beijou-me (Paolo) a boca, tremendo,
repetindo o que diz Galleotto em seu poema.
E nós dois não mais seguimos lendo...)
Assim o livro e o prazer. Viver, como escreveu Guimarães Rosa, é muito perigoso. A leitura também. Mas só vale a pena viver o que é arriscado.
Obrigado.
Cabo Frio, verão de 2004