A revolta dos mazombos
pernambucanos
Adelto Gonçalves
A fronda dos mazombos:
nobres
contra mascates,
Pernambuco, 1666-1714, de Evaldo Cabral de Mello.
São
Paulo, Editora 34, 2003, 496 págs.,
R$ 54,00.
Embora
tenha servido de tema
para o romancista
oitocentista José de Alencar e de fonte de estudo para os sociólogos
Caio Prado Júnior
e Gilberto Freyre em obras clássicas da historiografia
brasileira, o episódio
conhecido
como Guerra
dos Mascates, ocorrido em 1710-1711 em
Pernambuco, entre os moradores das cidades de Olinda e Recife,
continuava, até
poucos
anos atrás,
sem uma
reconstituição
digna desse nome.
Foi para preencher
essa lacuna que o diplomata
Evaldo Cabral de Mello escreveu A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715, que, publicado em
1995 pela
Companhia
das Letras, sai
agora
em segunda
edição revista
pela Editora
34, de São Paulo.
Tendo iniciado
na carreira diplomática em
1960 e servido nas embaixadas do
Brasil em Washington, Madri, Paris,
Lima
e Barbados e nas
missões
em Nova
York e Genebra, foi
durante
a época em que esteve no Consulado
Geral do Brasil
em
Lisboa que Cabral de Mello aproveitou
o tempo para
pesquisar
especialmente os papéis da capitania de Pernambuco do
Arquivo
Histórico Ultramarino, na Biblioteca Nacional
e no Arquivo
Nacional
da Torre do
Tombo, resgatando assim
este
episódio que,
embora não
estivesse esquecido nos livros de História,
andava muito
mal
contado.
Referência
indispensável
para o estudo
de Pernambuco e do Nordeste brasileiro, Cabral de Mello, que
obteve o título de
doutor
em História
por notório
saber pela Universidade de São
Paulo em 1992,
já
escreveu obras
importantes
como Rubro
veio: o
imaginário
da restauração
pernambucana
(1986), Olinda restaurada: guerra
e açúcar no
Nordeste, 1630-1654 (1975), O
nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial (1989), O negócio do Brasil: Portugal, os
Países
Baixos e o
Nordeste, 1641-1669 (1998) e,
mais recentemente, Um
imenso Portugal:
história
e historiografia (2002), entre
outras.
Depois de
exaltado pelo
nacionalismo brasileiro
como um
dos movimentos autonomistas que marcaram a história
colonial, o episódio da Guerra dos Mascates
ganha uma nova
dimensão. O historiador não se limita a recuperar
as razões que
levaram às alterações políticas que colocaram, de um
lado, os mascates
do Recife e, de
outro, a chamada
nobreza da terra,
descendentes dos
primeiros
reinóis que se estabeleceram no solo e haviam criado
uma aristocracia
em
torno da produção
do açúcar. Recua
meio
século, analisando o
período
que vai de 1666 a 1707 através de três
episódios que
adquirem significado à luz do que
ocorreu depois. A
partir
desses acontecimentos, o autor reconstitui toda
a trama de
fatos
e interesses
que,
mais tarde,
iria opor nobres
da terra, residentes em
Olinda ou com
casa na cidade
e extensas fazendas e engenhos de cana
no interior do
país, e os comerciantes
procedentes
do Reino e estabelecidos no Recife.
O primeiro
episódio
é a deposição
em
1666 do governador e capitão-general
Mendonça Furtado, o Xumbergas, em que o mandatário
foi posto num
navio
de volta a Lisboa, numa grave desobediência ao rei. Mas, como a Coroa tinha suas
próprias razões de
queixa
contra o Xumbergas, acusado de incontáveis fraudes,
foram feitas
vistas
grossas ao desafio dos
colonos. Seja porque
Lisboa vivia uma crise dinástica, seja porque
o governador deposto ainda iria se enfiar numa conspiração no Reino,
os promotores de
sua
deposição puderam-se
livrar
do castigo,
ainda
porque também
tinham a seu favor
o fato de terem expulsado anos antes os
holandeses do Nordeste
brasileiro.
O segundo
episódio
recupera várias administrações, especialmente a do marquês
de Montebelo (1690-1693) em que, mais uma vez, o autor
desvenda a atuação de um setor da açucarocracia que se empenhou por
limitar em proveito próprio o exercício do poder real na capitania
e o acesso dos
comerciantes
reinóis do Recife ao
poder
local, encarnado
sobretudo na Câmara de
Olinda, "que
desde
a guerra holandesa adquirira certas funções
supramunicipais de representação de interesses e gestão
de recursos
fiscais".
O outro
episódio
trata do dissídio
entre os
religiosos
da Congregação do
Oratório, uma guerra
clerical que
hoje é difícil
de entender, mas
que se inseriu no
confronto
entre mazombos e reinóis. Os néris da Madre de Deus
seriam decisivos na
conquista
da autonomia municipal do Recife, tornando-se
extremamente
influentes nas questões políticas na capitania.
Na parte
seguinte
do livro, Cabral de Mello procura inventariar o longo contencioso
entre a nobreza da
terra
e a mascataria durante os decênios anteriores
à sedição
contra
o governador Castro e Caldas em 1710,
que golpeava a
crença
no apego dos
lusitanos
aos seus
monarcas. A atitude dos
pernambucanos
parecia tanto
mais
perigosa porque partira de filhos e netos
dos que haviam restituído as capitanias do Norte à
sujeição da Coroa,
sem
que Lisboa tivesse participado com reforços. Entre 1707 e 1710, Castro e
Caldas
cometeu tantos
desmandos
que foi alvo
de um
atentado
por parte
da nobreza da terra.
Depois, houve a insurreição
dos mascates no Recife
seguida pela
repressão da
Coroa
durante a
administração
seguinte, de Félix
Machado
(1711-1715).
Antes de
concluir, é preciso
que
se diga que a fronda do título é recuperada pelo autor do francês
fronde,
nome
dado por
extensão à guerra
civil que
houve na França (1648-1653), na minoridade de Luís XIV,
entre
os partidários da
regente
Ana de Áustria e do
cardeal
Mazarino, por
um
lado, e da magistratura
e a alta nobreza,
por
outro, de onde
a distinção
entre
"fronda parlamentar" e "fronda aristocrática".
Já mazombo
era
o nome pelo qual eram conhecidos
aqueles que
já haviam nascido
em
terras brasileiras,
em
contraposição aos reinóis, os
naturais
de Portugal ou das
ilhas. O vocábulo viria do
idioma
banto como
designação para indivíduo
mal-humorado e
macambúzio
ou ainda
pessoa mal-educada
e rude, mas
na América portuguesa a palavra
passou a
indicar o filho
do português nascido na terra,
equivalente ao "criollo" da América espanhola.
À guisa de
explicação, é preciso
lembrar
que a designação "guerra dos mascates"
nasceu muito
tempo
depois, na
segunda
metade do século
XIX, quando José de Alencar deu esse título a um romance à
clef em
que
procurava ridicularizar o
gabinete
Rio Branco
(1871-1875), na etapa final do Segundo
Império. Até
a publicação da obra de Alencar, como observa o autor,
os acontecimentos de 1710-1711 haviam
sido conhecidos
geralmente
como "sedições",
"sublevações" ou
"alterações de Pernambuco". |