FÁBULA, APÓLOGO E PARÁBOLA
EM MACHADO DE ASSIS

Adelto Gonçalves

 

A fábula, o apólogo e a parábola são narrativas curtas que trazem implicitamente um julgamento moral e uma estrutura dramática em que se fundamentam. Tão emparentados andam que melhor seria que houvesse um termo que os reunisse e definisse. Talvez assim fossem evitadas algumas distorções, pois, à falta de melhor definição, alguns chamam de fábula o que não passa de parábola e outros consideram apólogo o que melhor seria enquadrado como fábula, já que enfeixaria histórias centradas em animais irracionais. Mas, como ocorre com os gêneros, aqui as fronteiras destas formas literárias também são muito fluidas e não se separam com tanta facilidade íntima, como diria Fernando Pessoa (Pessoa, 1977, p. 198).

 

A princípio, porém, como explica Massaud Moisés em seu Dicionário de Termos Literários, é possível distingui-los a partir de suas personagens. Assim, o apólogo seria protagonizado por objetos inanimados, como plantas, pedras, rios, relógios, moedas, estátuas etc. (Moisés, 2004, p. 34), enquanto a fábula, por animais irracionais cujo comportamento deixa transparecer uma alusão, satírica ou pedagógica, aos seres humanos (Moisés, 2004, p. 184).

Já a parábola distingue-se das outras duas formas literárias pelo fato de ser protagonizada por seres humanos. Vizinha da alegoria, comunica uma lição ética por vias indiretas ou simbólicas. Numa prosa altamente metafórica e hermética, veicula-se um saber apenas acessível a iniciados. Embora possamos arrolar exemplos profanos, a parábola identifica-se com o espírito da Bíblia onde existe com abundância (Moisés, 2004, p. 337). É de lembrar que Coelho Neto (1864-1934) publicou, em 1904, um livro que intitulou Apólogos, mas que continha algumas histórias centradas em animais irracionais, o que nos permitiria classificá-las como fábulas, se fôssemos levar a ferro e fogo as definições que arrolamos acima. Afinal, a fábula, desde que cultivada em versos na Antiguidade clássica por Esopo, escravo grego do século VI a.C., e por Fedro, escritor latino do século I da era cristã, sempre foi protagonizada por animais irracionais.

E assim continuou depois que La Fontaine, em livros publicados entre 1668 e 1694, deu a essa forma literária foros de grandeza. Quem também escreveu um livro com o título de Apólogos foi João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838), amigo do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1804).

No pensamento de Aristóteles, o termo “fábula” designava a “imitação dos atos”, ou seja, a intriga, e era “o primeiro e mais importante” elemento da tragédia, como se pode ler na Poética, lembra Massaud Moisés, acrescentando que também para os formalistas russos o vocábulo encerrava conotação específica, vizinha de “história”, “enredo”. Citando Todorov, Moisés ressalta que a fábula consiste no “conjunto de acontecimentos ligados entre si e que nos são comunicados ao longo da obra”, ou ainda, “conjunto de motivos e sua seqüência cronológica e de causa e efeito” (Moisés, 2004, p. 184).

No século XIX, as fábulas em seu sentido lato já chegaram em prosa, deixando para trás os versos como veículo de expressão. Em língua portuguesa, provavelmente, alcançaram o seu grau de maior transcendência com Almeida Garrett (1799-1854) em Fábulas e Contos, de 1853. Na literatura brasileira, se o século foi de Machado de Assis (1839-1908), os apólogos e as parábolas encontraram nele um exímio cultor, embora não tenha sido muito produtivo nessa forma literária, já que sua obra é reconhecida, em primeiro lugar, pelos romances e, depois, pelos contos. Portanto, se não os tivesse composto, a sua fama e mérito seriam idênticos.

De Machado de Assis, há pelo menos duas histórias que rondam as considerações teóricas para parábolas, apólogos e fábulas, mas que, escorregadias, escapam a uma definição objetiva, como, aliás, boa parte da obra machadiana, sempre feita de muitos subterfúgios e subentendidos. Por isso, à falta de melhor definição, vamos chamá-las de contos.

São eles: “A Igreja do Diabo” e “Um Apólogo”, que fazem parte de livros pertencentes à segunda fase machadiana que, como estabeleceu a crítica, começa a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). “A Igreja do Diabo” foi juntada em Histórias sem Data (1884), enquanto “Um Apólogo” é de Várias Histórias (1896). Ambas foram reunidas em Contos consagrados de Machado de Assis, com biografia do autor por M. Cavalcanti Proença e estudo introdutivo por Ivan Cavalcanti Proença (Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1969).

Como se sabe, Machado de Assis cultivou o hábito de ler o Eclesiastes bíblico e os Pensamentos de Pascal, o que talvez o tenha levado a desenvolver um estilo figurado, metafórico, permeado por parábolas, apólogos e aforismos, com frases ágeis e contundentes.

Esse estilo o teria também estimulado a exercitar um elemento que vinha do Romantismo, a ironia, que “nasce da consciência do caráter antinômico da realidade e constitui uma atitude de superação, por parte do eu, das contradições incessantes da realidade, do conflito perpétuo entre o absoluto e o relativo”, segundo definição de Friedrich Schlegel (1772-1829), o grande responsável pela introdução do conceito de ironia na estética romântica (Aguiar e Silva, p. 1993, p. 548). A arte, segundo Schlegel, exige do criador uma atitude de ironia, ou seja, de distanciamento, de superioridade em relação à obra criada, exatamente a postura que se percebe nos romances e contos de Machado de Assis.

 

A IGREJA DO DIABO

A rigor, “A Igreja do Diabo” não é uma fábula. Além de não constituir uma narrativa curta, pois tem 14 páginas de composição, os seus protagonistas não são animais irracionais à La Fontaine que falam de um modo integralmente humano. Tampouco pertencem à espécie humana. É descrita por um autor onisciente e onipresente, embora permeada de diálogos entre divindades: Deus e seu anjo renegado, o Diabo.  Portanto, extrapola até os limites do fabuloso.

Conta o autor que, certo dia, o Diabo, frustrado com a sua existência secundária, teve a idéia de fundar uma igreja e decidiu apresentá-la ao Senhor. Para quê queria o Diabo uma igreja, se ele sempre foi, ao longo dos séculos, avesso a regras, a cânones e a rituais? Ora, porque esse seria um meio eficaz de combater as outras religiões e destruí-las de uma vez, conta o autor onisciente. A sua igreja seria única, sem Maomés e Luteros para combatê-la e dividi-la (Assis, 1969, p. 71-72).

Escrita a uma época em que a Igreja romana exercia o monopólio da fé, ainda que já fossem longe os tempos da intolerância representada pela Inquisição do século XVI, o conto de Machado de Assis não deixa de readquirir um certo vigor nos dias de hoje em que igrejas evangélicas proliferam em cidades e sertões do Brasil, muitas vezes insufladas pelas vantagens das telecomunicações. É que todo sectário, sempre frustrado com sua existência secundária, a primeira coisa que faz é organizar outra igreja.

No conto machadiano, depois de enfadar o Senhor, o Diabo chega à terra disposto a espalhar a nova doutrina, prometendo aos seus discípulos e fiéis as delícias do mundo, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Ao imaginar esse ser luciferino, o autor coloca do avesso um universo mental ainda hoje fortemente sedimentado na população, estruturado em torno de uma visão mágica do mundo e de uma tradição plurifacetada de pensamento mítico que deu origem à figura literária de Fausto (Bethencourt, 2004, p. 44). Não é à toa que, em sua conversa em que comunica ao Senhor a sua intenção de fundar uma igreja, o Diabo diz que não vem em nome de Fausto, “mas por todos os Faustos do século e dos séculos”.

Ao Senhor, diz ainda: “Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...” Depois de ouvir a catilinária luciferina, o Senhor, impaciente, manda-o de volta à terra: “Retórico e sutil! Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas vai, vai!”

De volta ao mundo dos homens, em sua pregação, o Diabo reabilita como virtudes a soberba, a luxúria, a preguiça, a avareza e a gula. Também a inveja considera virtude preciosa, pois era origem de prosperidades infinitas. Com semelhante discurso, não demorou para que multidões corressem atrás dele encantadas. Mais entusiasmo arrancou quando preconizou que a venalidade era o exercício de um direito superior a todos os direitos. “Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?”, argumentava.

Depois de combater o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade, o Diabo entendeu de rematar a obra dizendo que o amor ao próximo era um obstáculo grave à nova instituição, mais um inimigo a ser combatido. E mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolventes, gente fracassada de olho na opulência alheia.

Como ainda havia incrédulos, o Diabo recorreu a um apólogo: cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão dos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. E esse apólogo foi incluído no livro da sabedoria da nova religião.

Mas, quando a nova religião parecia ir de vento em popa, reunindo cada vez mais mais adeptos, o Diabo descobriu, desolado, que o êxito de seu empreendimento não era completo, talvez nunca o viesse a ser por mais que insistisse e granjeasse novos seguidores. De nada adiantaria restabelecer quase por completo o reinado do vício e da iniqüidade sobre a Terra, pois sempre restariam alguns que insistiriam, ainda que às escondidas, em praticar as antigas virtudes. Houve até quem, depois de dilapidar o erário público, decidira restituir-lhe pequenas quantias. Onde já se viu isso?

Por aqui se vê que, como já percebera John Gledson, este conto, que inclui um apólogo, é uma adaptação da doutrina de Arthur Schopenhauer (1788-1860), para quem o mal — ou o egoísmo — é o motor básico da maioria das ações humanas (Gledson, 1991, p. 149). Mesmo assim, jamais o “mal” poderá ser a norma oficial do mundo, jamais poderá assumir os discursos dos políticos às escâncaras, ainda que, hoje, mais de um século depois, os políticos brasileiros sejam acusados de ter perdido a vergonha na cara, assumindo em público o que antes só sussurravam entre paredes.

Enfim, o “mal” jamais poderá organizar a sua “igreja”, exceto se limitada a alguns poucos marginalizados. E por que? Ora, uma igreja como a imaginada pelo Diabo de Machado de Assis o que pregava era que o inferno achava-se aqui mesmo na Terra e que nada mais restaria ao homem exceto usufruir do que a vida lhe podia oferecer porque não haveria outra oportunidade, não haveria outra vida além desta. Esta é a verdade irônica que Machado de Assis deixa o leitor intuir sem forçá-lo: se uma igreja coloca em xeque o dogma da imortalidade, está condenada ao fracasso. Como a do Diabo desta história machadiana.

Diz o filósofo alemão Schopenhauer, autor de cabeceira de Machado de Assis: “De fato, todas as religiões simulam considerar a existência de seus deuses como a coisa capital, e defendem este tema com muito zelo. Todavia, o grande problema é o problema da imortalidade — pelo fato de aliarem a nossa vida de todo dia um dogma de imortalidade e pelo fato de considerarem esta vida como que inseparável da imortalidade é que desfrutam de uma importância indestrutível (...). Em suma: se demonstrássemos a absoluta impossibilidade de outra vida, não existiriam as religiões” (Shopenhauer, 1960, p. 86-87).

Pois se é assim — e Deus, portanto, como onipotente e onipresente, sabia-o antes mesmo de conceder a audiência ao Diabo —, melhor deixar como está porque, ainda que os homens sucumbam a todos os vícios e venalidades, sempre haverá quem se deixará atrair pela prática da virtude, a ponto de o Senhor não se importar que a vida humana siga assim.

Diz a filosofia pessimista de Schopenhauer que, “para domar as almas bárbaras e desviá-las da injustiça e da crueldade, não é a verdade que se torna útil, porque não lhes é dado concebê-la; é portanto, um erro, um conto, uma parábola. Daí vem a necessidade de ensinar uma fé positiva” (Assis, 1969, 183-184).

Eis aqui a gênese do pensamento schopenhaueriano que parece ter levado Machado de Assis a escrever “A Igreja do Diabo”: uma religião que ensine uma fé negativa, ainda que, a princípio, possa atrair numerosos adeptos, não pode ir muito longe: “os sistemas completamente céticos ou materialistas nunca hão de exercer uma influência geral ou duradoura” (Assis, 1969, p. 181), diz o filósofo, explicando que o interesse que inspiram os sistemas filosóficos e as religiões liga-se principalmente ao dogma de uma duração qualquer após a morte: só a imortalidade os preocupa.

“Se fosse possível assegurar de outra maneira a vida eterna ao homem, o seu zelo ardente pelos deuses esfriaria imediatamente, e daria até lugar a uma indiferença quase absoluta, desde que lhe fosse mostrada com evidência a impossibilidade de uma vida futura...”, (Assis, 1969) acrescenta.

É porque não tem certeza de que seja o nada o que o espera depois da morte que o homem procura “comprar” a indulgência de Deus numa possível vida eterna. É por isso que Machado de Assis, ao final do conto, mostra o Diabo totalmente desorientado, depois de ter descoberto que um de seus melhores apóstolos de sua nova igreja, um calabrês de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, dono de uma bela casa numa campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, enfim, a fraude em pessoa, tinha lá as suas recaídas de bondade. “Pois esse homem não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados”.

E, ainda por cima, feita amizade com um cônego, ia confessar-se com ele, expondo suas ações secretas, suas sujeiras, sempre à espera da absolvição e da garantia de um lugar no céu. Daí a começar a fazer contribuições à Igreja católica seria um passo, se é que já não o fizesse às escondidas. Foi o que levou o Diabo a desistir de tudo, cerrar as portas de sua igreja e voar de novo ao céu para saber de Deus a explicação para tão singular fenômeno.

Como sempre procurava fazer em seus contos e romances, Machado de Assis reservou para o epílogo de “A Igreja do Diabo” um fecho de ouro, elaborado com sutileza e ironia: Deus ouviu o Diabo queixar-se de seu fracasso, sem interrompê-lo nem repreendê-lo e, por fim, disse-lhe: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.

Em outras palavras, o que está por trás desse fecho de ouro é a filosofia de Schopenhauer: “As religiões são necessárias ao povo, e são para ele um benefício inapreciável (....), pois constituem (...) um mal necessário, um amparo para a fraqueza mórbida do espírito da maior parte dos homens” (Assis, 1969, p. 187).

Nas dobras da argumentação machadiana, também se percebe um autor eqüidistante, um espírito schopenhaueriano a dizer: “Mas exigir que um grande espírito, um Goethe, um Shakespeare, aceite convictamente impliciter, bona fide et sensu proprio, os dogmas de uma religião qualquer, é exigir que um gigante calce o sapato de um anão” (Assis, 1969).

 

UM APÓLOGO

Em “Um apólogo”, também conhecido como “A agulha e a linha”, Machado de Assis exercita a mesma filosofia schopenhaueriana que considera que, se o mundo é vontade, tem de ser um mundo de sofrimento em que os mais hábeis tratam de utilizar os menos hábeis para agarrar sempre mais do que podem alcançar. Narrativa breve, de três páginas e meia, este apólogo reproduz o diálogo em que uma agulha e um novelo de linha discutem sobre quem tem melhor utilidade.

“Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados”, vangloria-se a linha. “Sim, mas de que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás. Obedecendo ao que eu faço e mando...”, retruca a agulha (Assis, 1969, p. 222).

Mais tarde, depois de a costureira ajudar a baronesa a vestir-se e colocar a agulha espetada no corpinho, a linha, em ares de mofo, perguntou-lhe: “Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá”.

O apólogo, porém, não pára aqui, embora já carregue um aforismo, uma conclusão moral. O autor, escrevendo na primeira pessoa, ainda intervém para colocar um alfinete, “de cabeça grande e não menor experiência”, a murmurar à pobre agulha: “Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico”.

Mais uma vez, o apólogo poderia ter sido arrematado aqui porque, novamente, traz um aforismo: enquanto a agulha simboliza a melancolia daqueles que servem de escada para os outros subirem na vida e roem-se com a ingratidão, o alfinete pretende representar o comodismo, a apatia, a indiferença daqueles que se recusam a abrir caminho para os outros, mas também não saem do lugar, vivem uma vida vegetativa.

Não satisfeito, o autor ainda acrescenta quatro linhas para dizer que contara esta história a um professor de melancolia que, abanando a cabeça, dissera-lhe: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!” (Assis, 1969, p. 224)

Este comentário obviamente irônico é típíco da técnica machadiana: a filosofia pessimista, de quem, à maneira de Dostoievski (1821-1881), não crê que possa vir do homem algo de grandioso, é expressa por parábolas que, como sempre, têm um objetivo moral, de explicar o mundo à luz dos defeitos humanos. Aliás, à época em que escreveu esse apólogo, Machado de Assis vivia a fase em que confirmava os seus mais íntimos temores com a República, que estava sendo conduzida como ele prognosticara: a liberdade existente ainda era a do trono e o presidencialismo tornava-se cada vez mais imperial (Flores, 2003, p. 56).

Depois de um governo provisório que durara 15 angustiantes meses, a Constituição republicana fora promulgada em fevereiro de 1891, mas ainda refletia a “República da espada”. Depois, a substituição do marechal Deodoro pelo marechal Floriano Peixoto apenas aumentaria a crise institucional e o radicalismo daquelas vivandeiras que em nome dos privilégios das classes dominantes haviam ido bater às portas dos quartéis.

Nesse sentido, é possível imaginar que os militares haviam sido a agulha que abrira caminho para muitos daqueles que ansiavam garantir favores do Estado, como o fariam ainda muitas vezes ao longo do século XX. Seja como for, em 1892, o País estava à beira da guerra civil. E Floriano decretara o estado de sítio. Ganhara o apoio das camadas populares, mas, em compensação, despertara a ira de latifundiários e de grandes comerciantes atacadistas, que controlavam a economia desde o Império e estavam acostumados a altos lucros. Nada apaziguava a Nação e sedições explodiam no Brasil meridional.

Sabe-se que esses fatos influíram decisivamente no ânimo do Machado de Assis, a ponto de ele ter escrito o romance Esaú e Jacó em que a morte da heroína, Flora, amada pelos dois gêmeos, coincide com a decretação do estado de sítio por Floriano. Sem contar as crônicas que escreveu ao sabor das vicissitudes de uma época de grande instabilidade econômico-financeira marcada pela desvalorização do meio circulante e pela retração do crédito. É um tempo propício aos pescadores de águas turvas, aqueles que não hesitam em usar quem lhes seja útil para ascender na política ou na vida privada. Época em que muitas agulhas abriram caminho para muitas linhas ordinárias.

Demasiada tinta já se gastou para explicar — e com maior brilho — essa visão cética que Machado de Assis teve da sociedade de seu tempo e que deixou explícita em outros romances memoráveis como Quincas Borba, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Que tenha passado essa visão também para textos menos pretensiosos, como os contos que discutimos, foi o que modestamente procuramos demonstrar neste trabalho.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1993.

Assis, Machado de. A Igreja do Diabo. In: ––– Contos consagrados. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969.

––––––  Um apólogo. In: ––– Contos consagrados. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969.

Bethencourt, Francisco. As dores do mundo. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.

––––––  O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

Flores, Elio Chaves. A consolidação da República: rebeliões de ordem e progresso.In: –––  O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente, Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Gledson, John. Machado de Assis: Impostura e Realismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

Moisés, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2004.

Pessoa, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.

Shopenhauer, Arthur. A necessidade metafísica. Tradução de Velloso, Arthur Versiani. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.