Monteiro Lobato e o Cenáculo paulistano

Adelto Gonçalves

 

UM CENÁCULO NA PAULICÉIA, de Alaor Barbosa. Brasília, Projecto Editorial, 294 págs., 2002.

alaor.b@zaz.com.br

 

Um Cenáculo na Paulicéia, de Alaor Barbosa, constitui estudo minucioso sobre um grupo de autores que se formou na cidade de São Paulo, nos primeiros anos do século XX, ao tempo em que seus integrantes eram jovens estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma das mais tradicionais do Brasil. São eles: Monteiro Lobato, Godofredo Rangel, José Antônio Nogueira, Ricardo Gonçalves, Raul de Freitas e Albino de Camargo. De todos, o único que se sobressaiu e, de fato, marcou um lugar nas letras nacionais foi Monteiro Lobato e, portanto, na maior parte do livro, é dele que seu autor trata.

 

O Minarete foi uma pequena república de estudantes instalada no segundo andar de um chalé amarelo localizado na Rua 21 de Abril, no bairro do Belenzinho, em São Paulo, onde moraram, por algum tempo, alguns dos integrantes do Cenáculoque, obviamente, nasceu inspirado no Cenáculo que, em Coimbra, existiu em torno de Antero de Quentel e, em Lisboa, em torno de Eça de Queirós, Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e outros autores portugueses do século XIX. Quem primeiro morou foi Godofredo Rangel.

O que foi esse ponto de encontro de jovens literatos em busca da realização de seus sonhos poéticos e profissionais conta-o Monteiro Lobato em seu livro A barca de Gleyre num estilo um tanto rude em que procura apenas disfarçar o carinho masculino por antigos companheiros.

Como mostram as pesquisas de Barbosa, o Cenáculo paulistano não teve o seu jornal ou revista nem lançou nenhum movimento literário de envergadura. Alguns de seus integrantes não faziam nada do que se pudesse dizer à frente de seu tempo, limitando-se a poemas parnasianos, ainda tão em voga. O acaso, porém, proporcionou a Monteiro Lobato e outros do grupo um jornal em que tiveram toda a liberdade para publicar o que quisessem.

Esse jornal foi o Minarete, de Pindamonhangaba, cidadezinha do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, que circulou de 1903 a 1907. O nome saiu de uma sugestão de Lobato a seu proprietário, Benjamin Pinheiro, ao tempo em que o escritor morava no Minarete do Belenzinho, assim chamado porque era um sobrado do qual se tinha uma ampla visão da São Paulo provinciana de então.

mais de 40 anos trabalhando o tema, Barbosa fez um profundo trabalho de pesquisa, especialmente para traçar o perfil dos demais cenaculistas, fazendo-o na ordem em que publicaram seus livros. José Antônio Nogueira, primeiro membro do Cenáculo a aparecer em livro, era mineiro de Carmo de Minas, foi juiz de Direito em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro e morreu em 1947. Seus livros jaziam em completo esquecimento, não fosse o trabalho de Barbosa de agora ressuscitá-los.

Ricardo Gonçalves, nascido na capital paulista, morreu em 1916, aos 33 anos de idade. Passou, no entanto, boa parte da infância em Ribeiro Preto, interior de São Paulo, o que explica os movivos sertanejos de sua poesia. Ativista político, envolveu-se nas lutas anarquistas do começo do século XX em São Paulo. Morreu sem ter livro publicado. Foi Monteiro Lobato quem lhe publicou o único livro, Ipês, em 1921. Apesar de anarquista, não fez poesia social nem revolucionária, o que levou Barbosa a compará-lo ao russo Maiakovski, seu contemporâneo.

Godofredo Rangel morreu em 1951 e, depois de Monteiro Lobato, foi, entre os do grupo, o que deixou obra mais importante, o que justificou a biografia que lhe escreveu Enéas Ahanázio, O amigo escrito, de 1977. Nascido em Três Corações, Minas Gerais, Rangel publicou quatro romances e dois livros de contos. Homem de alma interiorana, como diz Barbosa, depois de estudar em São Paulo e Campinas, voltou para o interior de Minas, para a cidadezinha de Carmo de Minas. Mas ficou para a história literária mais pelas cartas que Monteiro Lobato lhe remeteu da adolescência à maturidade, mais tarde reunidas no livro A barca de Gleyre.

Raul de Freitas, o mais jovem dos integrantes do Cenáculo, morreu em 1943 e, embora tenha escrito alguns livros de poemas e sátiras políticasum deles publicado pela editora Monteiro Lobato & Cia, em 1923 – é, hoje, nome esquecido. No Dicionário de Autores Paulistas, de Luís Correia de Melo, é lembrado pela freqüência com que escreveu em O Minarete, de Pindamonhangaba. Para Albino de Camargo, o autor reservou apenas uma página, o que diz bem da pouca importância que teve para as letras.

Por razões óbvias, foi a José Bento Monteiro Lobato, nascido em 1882, em Taubaté, interior de São Paulo, que Barbosa dedicou maior atenção. Formado em Direito, Lobato conseguiu o primeiro emprego como promotor interino de Taubaté, por empenho do avô, o visconde de Tremembé, da oligarquia paulista dos fazendeiros de café. Morto o avô, viu-se fazendeiro à força, assumindo a Fazenda Buquira, mas, sempre que possível, viajava para São Paulo com o objetivo de se confraternizar com os antigos companheiros da Faculdade de Direito. Na fazenda, teve oportunidade de ler muito os clássicos portugueses e, especialmente, Camilo Castelo Branco.

Depois de se livrar da propriedade em 1917, retornou a São Paulo, onde se lançou como empresário, adquirindo a Revista do Brasil, da qual era colaborador. Logo em seguida, editou Urupês, com os contos escritos à época em que vivera na Fazenda Buquira e que carregam um estilo que veio de autores quinhentistas e setecentistas. em 1917, havia lançado o livro O saci pererê, assinando-o com pseudônimo. Depois, começou a editar seus livros e não parou mais.

De 1917 a 1948, publicou mais de 70 livros, incluindo aqueles destinados ao público infantil. Depois de sua morte em 1948, saíram mais oito livros. Ainda encontrou tempo para traduzir mais de cem livros importantes, entre eles alguns de Ernst Hemingway, Rudyard Kipling e Will Durant.

Em seu estudo, Barbosa refaz alguns equívocos, observando que as relações entre Lobato e os modernistas foram mais intensas do que se imaginava até aqui, como provam cartas que trocou com Oswald e Mário de Andrade. O autor recupera também os quatro anos passados por Lobato nos Estados Unidos, de 1927 a 1931, época em que perdeu todas suas economias com o crack da Bolsa em 1929. Ao voltar para o Brasil, dedicou-se a escrever a saga do pequeno-mundo do Sítio do Picapau Amarelo, ainda hoje lembrada com freqüência na TV brasileira depois de fazer imenso sucesso nos anos 70 e 80.

Da série de literatura infantil, é lamentável o preconceito racial que Lobato destilou por uma série de livros, o que chega a ser incompreensivel num homem dotado de uma inteligência e um espírito tão superiores, como assinala o autor. Levando-se em conta que escrevia para crianças, esse preconceito torna a sua obra hoje pouco recomendável num país mestiço como o Brasil. Tão racista foi Lobato que nem todos os seus livros foram aceitos nos países africanos de língua portuguesa.

Advogado de profissão, depois de trabalhar na juventudade em importantes jornais do Rio de Janeiro, Alaor Barbosa, nascido em Morrinhos, Goiás, vem construindo também como ficcionista uma obra a cada dia mais reconhecida por seu valor literário. Seu último romance, Memórias do negociado Bertolino d´Abadia, recebeu elogios de Wilson Martins, um dos mais respeitados críticos literários do Brasil. Um Cenáculo na Paulicéia foi originalmente tese de mestrado em Literatura Brasileira defendida em 1991 na Universidade Brasília.