O JORNALISMO INVESTIGATIVO E A CRÍTICA GENÉTICA

Sandra Regina Moura

Profª de Jornalismo da UFPB

e Doutoranda em Comunicação  e Semiótica na PUC-SP

       Com a proposta de estudar o processo de investigação de Caco Barcellos, um dos mais eminentes jornalistas de nosso tempo, destacamos a importância de incorporação dos estudos genéticos ao jornalismo investigativo ­­ — o tipo de cobertura jornalística que vai investigar  onde a informação não está ao acesso do jornalista.

        Para este estudo, tomamos como referência o livro-reportagem Rota 66, em que Caco Barcellos denuncia a ação dos matadores da Polícia Militar contra civis, durante o patrulhamento na cidade de São Paulo, no período de 1970 a 1992. Após sete anos de criteriosa investigação, Barcellos apresenta-nos um quadro estarrecedor: a maioria das pessoas assassinadas pelos PMs constitui-se de inocentes. A pesquisa comprova, ainda, que a PM mata mais jovem, negro ou pardo, nordestino e morador da periferia.

        Um dos aspectos interessantes, de se acompanhar a investigação jornalística, à luz da crítica genética, é conhecer os diversos meios utilizados pelo jornalista para armazenar informações que são relevantes para o seu processo investigativo.

No caso de Rota 66, o autor reserva uma boa parte de sua obra para esclarecer os procedimentos utilizados na investigação. E já nos aponta uma série de documentos de seu processo.

        Ocorre que o mergulho no mundo processual de Barcellos vai ampliar a diversidade desses documentos. São fichas, laudos de exame de cadáver, recortes de jornais e revistas, questionários, fotografias, desenhos, mapas, caderno de anotações, rascunhos, pautas, entrevistas, cópias de fax, de telex, processos da Justiça Militar e da Civil.

        A intromissão no mundo investigativo de Barcellos nos permite acompanhar como o jornalista busca as pistas que não tinham sido visitadas pelas investigações oficiais e como organiza o que se vai investigar.

       Outro aspecto importante é ver estabelecer-se a seleção dos critérios jornalísticos na investigação de Caco Barcellos. As fichas, criadas para armazenar dados de assassinatos divulgados pelo Notícias Populares, no período de 1970 a 1992, são peças fundamentais para o acompanhamento da construção desses critérios.

       Das fichas analisadas até o momento, referentes à década de 70, podemos apontar três dos critérios comumente utilizados pelo jornalismo na seleção dos fatos noticiáveis e que são incorporados ao processo de investigação de Barcellos. O interesse investigativo apóia-se em casos de impacto, ineditismo e interesse humano.

       O critério do impacto, que no jornalismo diz respeito ao abalo que os acontecimentos chocantes e impressionantes podem causar nas pessoas, influencia a seleção dos casos investigados por Barcellos, já que, geralmente, quanto mais dramático o episódio, mais atenção vai se ter nessa investigação.

      Dessa forma, dos supostos tiroteios envolvendo civis e policiais militares, a investigação vai recair sobre os casos de mortes. Os feridos vão ganhar importância quando acompanhados de algum elemento que cause mais impacto ou se torne mais dramático. Um exemplo deste modo de seleção está na ficha de 7.08.79 em que a vítima acusa o policial de ter jogado amoníaco em seus olhos. Ao lado, temos a anotação de Caco Barcellos: “PM sádico (bom caso)”.

O interesse investigativo apóia-se também em feridos portadores de deficiência física, mental, ou que adquiriram a deficiência em conseqüência das agressões dos PMs. As fichas de 4.01 e 27.6, de 1978, exemplificam esse modo de seleção. A primeira diz respeito à agressão da PM a um  portador de deficiência. Ao lado, Barcellos anota: “Bom caso, deficiente físico”. Na segunda ficha, tem-se que os policiais espancaram dois operários e um deles ficou surdo em função da agressão policial. Barcellos enfatiza: “Investigar, ficou surdo”.

Essa idéia de que a seleção passa pelo critério do impacto pode ser reforçada pelo exame de acontecimentos envolvendo vítimas que, embora tenham sido feridas pelos PMs em tiroteios, não ganharam prioridade na investigação. A ficha de 2.7.77, por exemplo, registra um ferido nessas circunstâncias (tiroteio) e não se tem anotação de “apurar”, “investigar”, “bom caso”, como em outros episódios.

No decorrer do processo, percebemos que o interesse investigativo baseia-se também no nome do policial  que praticou a ação. É comum encontrar nas fichas anotações enfatizando os nomes dos PMs e em alguns casos o registro do nº de mortos. Na ficha de 11.7.77, temos a anotação: “Gilson Lopes, 3 elementos”. Acreditamos que esse modo de seleção possa ter relação com a lista dos principais matadores da PM, criada pelo jornalista ao longo da investigação.

Nos exemplos citados, é possível acompanhar o jornalista no processo de hierarquização dos acontecimentos, separando o importante do secundário. É curioso observar que esta hierarquização, em termos de ordem de relevância, não vai funcionar segundo o status e a importância que a vítima goza no interior de um sistema social, como normalmente ocorre na imprensa. Podemos considerar que quanto mais o acontecimento possa caracterizar a fragilidade da vítima, a exclusão social, mais isso estimula a investigação, o que serve tanto para os casos de mortes quanto de feridos.

A tais mecanismos de seleção dos assassinatos  somam-se outros aspectos que nos parecem importantes no processo de investigação: o ineditismo e o interesse humano. O primeiro diz respeito, no jornalismo, aquilo que é novidade, ou seja, que é novo e que o leitor desconhece. No nosso entender, o ineditismo no processo de investigação de Barcellos está relacionado, entre outros aspectos, ao olhar do jornalista. Trata-se de uma pesquisa na qual o jornalista busca desvendar pistas não visitadas pelas investigações oficiais. Barcellos toma a versão policial como ponto de partida (os boletins de ocorrência), mas não vai a ela se prender.  Pelo contrário, utilizando-se dos arquivos oficiais (Justiça Civil e Militar), vai desvendar os métodos e as circunstâncias em que as pessoas foram mortas pelos policiais militares, o que vai resultar na comprovação de que a PM em São Paulo mata mais negro ou pardo, jovem, nordestino e morador da periferia da cidade.

 Neste caso, a pesquisa de Barcellos tem caráter inédito, já que, geralmente, na imprensa, pelo menos nos casos de Rota 66,  mais especificamente as matérias divulgadas pelo Notícias Populares, não se teve essa disposição de procurar as pistas que não foram visitadas pelas investigações oficiais.

Nesse complexo trabalho de priorização dos assassinatos, a investigação busca despertar interesse humano. Assim,  as circunstâncias da tragédia, a história de vida das vítimas vão se construindo a partir das anotações nas fichas e vão se acentuando na medida em o jornalista busca depoimentos de parentes e amigos.

Dessa forma, o processo investigativo caminha não apenas no sentido de quantificar os assassinatos. Trata-se, também, de contar o drama das vítimas e as conseqüências para as suas famílias.

Pode se dizer, ainda, que a incorporação dos critérios de impacto e ineditismo, como identificamos no processo de seleção de Barcellos, não se apresentam na perspectiva do sensacional e do espetacular, no sentido em que localizamos em muitos dos periódicos, programas televisivos e radiofônicos. Deve-se lembrar que o drama das vítimas é construído na perspectiva de se compreender as circunstâncias em que foram mortas e traçar o perfil na direção de um relato humano — são pessoas pobres, moradoras da periferia da cidade, negras ou pardas — e que não necessariamente são criminosas.

BIBLIOGRAFIA

BARCELLOS, Caco. Rota 66: história da polícia que mata.

      São Paulo: Globo, 1993.

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     redação, captação e edição no jornal diário. São Paulo: Ática, 1991.

LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. São Paulo: Vozes,

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SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado. São Paulo: 

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