Século XX: o século da controvérsia na Lingüística Aplicada

e no ensino de Gramática

 

Maria Alice Capocchi Ribeiro, FFP, Departamento de Letras - UERJ

Introdução

A controvérsia, como define Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (1995:176), consiste na “discussão ou debate regular acerca de assunto literário, científico, etc.; contestação, polêmica”.

Em seu constante questionamento sobre o mundo que o cerca, o homem estabelece relações causais e comparativas entre as diversas áreas do conhecimento. Conseqüentemente, todo conhecimento é construído e reconstruído a partir da reflexão e discussão geradas pela comparação e contestação de conhecimentos prévios. O conhecimento pode então ser entendido não somente como um produto, mas como um processo em contínua reconstrução, inserido em contextos sociais, históricos, e políticos.

Sendo assim, este século – definido por diversos autores como sendo o século da informação e da controvérsia – é, em outras palavras, um século marcado pelo desenvolvimento e aplicação do pensamento crítico. Comparando-o com o século anterior - o qual fixou parâmetros científicos que regiam o pensar e assim, de uma certa forma, acabou restringindo o próprio pensar - o século XX pode ser definido como o século do pensar reflexivo e crítico.

Este trabalho tem por objetivo apresentar resumidamente as diferentes correntes lingüísticas propostas ao longo deste século, as influências que estas receberam de outras disciplinas e estabelecer alguns dos inúmeros relacionamentos possíveis com o ensino de gramática.

A asserção que permeia este trabalho defende uma redefinição do conceito de que “a história é cíclica”: esta frase, em diversas ocasiões utilizada sob a ótica de um ‘retrocesso’ (em contraposição a um desenvolvimento) ou de uma ‘falta de imaginação’ constitui na verdade uma das mais importantes características do pensamento e do desenvolvimento do conhecimento. Ao retomar conceitos e idéias propostos anteriormente e estabelecer diversas relações entre eles, estamos na verdade fazendo uma releitura dos mesmos, mais crítica e mais abrangente, e levantando uma polêmica, a qual, por sua vez, leva à reflexão e à reconstrução do conhecimento.

Iniciaremos nosso passeio pela história da Lingüística no final do século XIX, apresentando brevemente a Abordagem Tradicional ao ensino de línguas, para então passarmos ao século XX.

 

Conceituação

É importante ressaltar que toda abordagem ao ensino e aprendizagem de línguas deriva de um amálgama entre a visão de língua e a natureza do processo de aprendizagem.

Devemos então formular e responder duas perguntas básicas:

a)      O que é língua?

b)      Como as pessoas aprendem suas línguas nativas e línguas estrangeiras?

Segundo Stern (1992:28, em Allen & Harley) “decisões sobre a maneira de se ensinar gramática refletem as visões de língua e de aprendizagem de uma época.” Determina-se, novamente, a necessidade de se responder as duas perguntas propostas acima.

Igualmente necessário é definir o conceito de gramática. Uma análise crítica de diversas abordagens e de suas respectivas metodologias, ainda que conduzida dentro do pequeno escopo deste trabalho, deve basear-se em uma determinada visão de gramática. A visão de gramática que guiará este trabalho será a de Chalker e Weiner (1993:177): “todo o sistema de uma língua, incluindo sua sintaxe, morfologia, semântica e fonologia”.

Sabemos que uma análise crítica de abordagens e de como “todo o sistema de uma língua” é trabalhado envolve questões sócio-lingüísticas, tais como relações de poder e análise do discurso. Dado o objetivo deste trabalho (vide Introdução), alguns aspectos destas questões serão abordados brevemente ao serem estabelecidas determinadas relações. Como fontes de referência, foram utilizados Brown e Yule (1983), Enerre (1994), Fairclough (1994), Kaplan (1990), Richards (1991) e Wolfson e Judd (1983).

* Século XIX: A Abordagem 'Tradicional' *

Método de Tradução-Gramática

Segundo Roger T. Bell (1981:81), o pensamento científico da época responderia a pergunta a) dizendo que as línguas são organismos vivos em evolução: existem línguas ‘mães’ e línguas ‘filhas’. A noção de uma Gramática Universal, explicando os princípios que regem todas a línguas, estava ligada às línguas ‘mães’ (línguas clássicas: Latim e Grego), e a noção de uma Gramática Particular, aplicando esses princípios gerais a uma língua específica, estava ligada às línguas ‘filhas’.

O código escrito constituía a norma, a forma mais ‘pura’ de expressão. A fala era secundária e não ‘confiável’, por ser efêmera e por apresentar ‘degenerações’ do código. Deste modo, o ensino de línguas propunha o desenvolvimento da língua escrita, “... concentrando-se na classificação de regras e exceções, enfatizando o aspecto prescritivo e mecânico da gramática – notadamente em relação a palavras isoladamente - em detrimento de seu aspecto sistemático. ... Os aprendizes não eram estimulados a exercer suas capacidades de observação e análise.” (Roulet, 1972:13, em Bell, 1981).

Para responder a pergunta b), recomendava-se aos aprendizes

1.      aprender as regras gerais de uma Gramática Universal e aplicá-las à língua em questão;

2.      estudar uma Gramática Particular, que constituía uma prescrição das estruturas e formas a serem evitadas, ao invés de uma descrição do que seria permitido;

3.      aprender principalmente a morfologia da língua: mecanismos de construção das palavras e listas de vocabulário;

4.      decorar textos na língua-alvo e trabalhar com exercícios de tradução dos mesmos.

Evidencia-se a visão restritiva de gramática: esta abordagem não contemplava a sintaxe, a semântica e a fonologia. Notamos também que a ordem social e as relações de poder vigentes eram espelhadas na visão de língua e de aprendizagem: os ‘filhos’ tinham que aprender com seus ‘pais’ e ‘mestres’, e, paralelamente, as línguas ‘filhas’ tinham que ser estudadas a partir das línguas ‘mães’, perpetuando as relações de poder dos organismos adultos desenvolvidos (línguas clássicas) sobre os organismos ‘infantis’ em formação (línguas ‘filhas’).

 

O Movimento Reformista: o Método Direto

A partir de 1850 o pensamento científico começou a enfatizar o estudo de modelos de sistemas fechados e estáticos. A lingüística, que lutava para obter o mesmo status que as outras ciências, adotou o mesmo foco objetivo e descritivo.

O Método Direto foi proposto por Sauveur (1826-1907) e posteriormente amplamente difundido pelo Movimento da Escola Berlitz. Sauver responderia a pergunta a) dizendo que a língua é um sistema, e que este sistema se desenvolve através da fala; sendo assim, uma língua estrangeira deve ser aprendida da mesma maneira que a língua materna foi aprendida.

A resposta da pergunta b) defendia a interação como sendo central ao processo de aquisição de uma língua; sendo assim, para a aprendizagem de uma língua estrangeira, toda a comunicação em aula deveria ser feita na língua-alvo e utilizando textos relacionados sobre tópicos interessantes e relevantes para os aprendizes. Para que a fala fosse desenvolvida, três condições principais deveriam ser satisfeitas: “(1) alguém com quem falar; (2) alguma coisa sobre a qual se falar; e (3) a vontade de entender o outro e de se fazer entender “(Howatt, 1984:92).

Essa abordagem pressupunha uma certa tradução da língua materna para a língua-alvo, ainda que realizada oralmente e, principalmente, através de processos mentais. Mas os papéis de língua ‘mãe’ e de língua ‘filha’ foram abandonados, entrando em cena os papéis de língua materna (nativa do falante) e de língua-alvo (língua estrangeira).

Esta abordagem, ousada para a época, propunha uma inversão de valores sociais e das relações de poder: a língua escrita, tida como a norma e propriedade das classes que política e culturalmente detinham o poder, foi colocada em segundo plano, elevando a língua falada, até então classificada como ‘efêmera e degenerativa’, ao primeiro plano. Não coincidentemente, este método surgiu logo após a Revolução de 1848 (Larousse Cultural, 1998: 5035-5036), um conjunto de revoluções de caráter liberal e democrático que explodiram em vários países da Europa.

A visão de gramática, apesar de não claramente definida por esta abordagem e respectiva metodologia, de uma certa maneira equilibrava sua atenção à sintaxe, à morfologia e à fonologia, pois estes três componentes estruturam a fala. Entretanto, estes componentes não eram discriminados ou estudados.

Esta abordagem certamente influenciou a Abordagem Sistemática do início do século XX.

 

* Século XX *

Início do século (décadas de 10 e 20): Abordagem Sistemática

Influenciados pela objetividade científica da época, os lingüistas tinham por objetivo principal responder a pergunta “O que é língua?”. A intenção de tornar a Lingüística uma ciência objetiva e descritiva levou à ênfase nas línguas contemporâneas (abandonando as comparações com as formas ‘puras’ clássicas de épocas anteriores) e na sua expressão oral. A língua escrita passou a ser considerada como sendo derivada da língua oral.

O aspecto sistemático da língua e seu uso em contextos sociais tornaram-se fundamentais: para o lingüista suíço Saussure (1983), o fundador desta abordagem, cada elemento da língua só tinha valor se analisado em relação aos outros elementos. Daí sua distinção entre langue (o sistema propriamente dito) e parole (os usos desse sistema em contextos sociais). Saussure também acreditava que os contextos sociais determinavam o uso homogêneo da língua por uma nação também homogênea.

Foram então reconhecidos e descritos diversos estilos e o estudo do Registro levou ao desenvolvimento da Sócio-lingüística. Discutiremos posteriormente como os conceitos propostos por Chomsky na década de 60 ligam-se a Saussure.

Respondendo a pergunta b), acreditava-se que os aprendizes deveriam, nesta ordem,

1.      ser capazes de reconhecer e produzir os sons e a entonação da língua-alvo, tanto isoladamente quanto em combinações;

2.      memorizar, sem analisar, um grande número de frases completas, que seriam selecionadas pelos professores / escritores de materiais didáticos através de um critério de ordem de ‘facilidade’ e ‘utilidade’;

3.      e finalmente começar a construir, por si mesmos, sentenças e um discurso mais longo.

O ensino de línguas passou a rejeitar a Abordagem Tradicional e seu Método de Tradução-Gramática, argumentando que cada língua apresenta um sistema único, e que a tradução poderia confundir o aprendiz. O compromisso com a expressão oral tornou a prática da pronúncia a base da expressão correta.

Tanto o Método Tradução-Gramática quanto o Método Direto, característicos do século XIX, poderiam ser classificados como tentativas amadoras de ensino de línguas, por não terem a preocupação com os aspectos sistêmicos de uma língua e por trabalharem a gramática de uma maneira não fundamentada em princípios científicos. Esses dois métodos representavam também duas polaridades: o primeiro, enfatizando a língua escrita, propriedade das classes dominantes, e o segundo, a língua falada, de domínio das classes proletárias.

Nota-se na Abordagem Sistemática e em sua metodologia uma tentativa de equilíbrio dessas polaridades, bem como uma preocupação em ser científica, ‘profissional’. Presente também a preocupação social e política da época com um certo equilíbrio entre as camadas sociais, representadas pelos usuários da língua, atendo-se à confirmação de identidades nacionais – preocupação esta decorrente da I Guerra Mundial.

No entanto, os aprendizes ainda recebiam oportunidades de análise e reflexão sobre a língua e sobre sua gramática. Esta tarefa era reservada aos lingüistas, escritores de materiais didáticos e professores, considerados capazes de realizar tal análise. As relações de poder ainda eram mantidas, mas não aparentemente expostas.

 

* Décadas de 30 a 60 : o Formalismo e a Abordagem Estrutural

O Estruturalismo respondeu a pergunta a) confirmando a visão de Saussure: uma língua é um sistema manifestado principalmente na fala de uma nação homogênea. “Gravações dos sons da língua e suas transcrições constituíam o material básico para a aprendizagem da língua; estas seriam então segmentadas progressivamente em unidades cada vez menores. O paralelo [com a ciência física da época] pode ser claramente estabelecido: um ‘objeto’ sendo ‘cortado’ em ‘partes’ cada vez menores até chegar ao último deles - o átomo.” (Bell, 1981:93).

Os lingüistas da época (Bloomfield, Fries e Lado, principalmente) trabalhavam a partir da forma para chegar ao significado.

Os estruturalistas apoiavam-se na psicologia da escola Behaviourista de Pavlov e Skinner para responder a pergunta b):

1.      a linguagem é uma atividade humana; a aquisição da língua se dá ao longo dos anos através da formação de hábitos a partir de estímulos e respostas;

2.      a aprendizagem - e conseqüente aquisição – de uma língua estrangeira ocorre através de um processo mecânico de formação de hábitos: a prática contínua, controlada e em ordem progressiva, até que a língua-alvo esteja automatizada tal qual a língua materna;

3.      para a aprendizagem de uma língua estrangeira, a apresentação de material autêntico deve ser seguida de repetição e de exercícios mecânicos, visando eliminar a possibilidade de erro;

4.      somente a língua-alvo deve ser usada nas aulas de língua estrangeira. Podemos notar uma certa influência do Método Direto, no que se refere a toda a comunicação ser feita na língua-alvo.

Esta visão de aprendizagem, que postulava ‘resultados rápidos’ e ‘aplicação imediata’ , foi prontamente aceita dadas as características históricas, sociais e políticas da época: durante a II Guerra Mundial, a necessidade de comunicação entre as nações fez com esta metodologia fosse facilmente abraçada pelas forças armadas, unidades diplomáticas e empresas comercialmente ativas dos países envolvidos no conflito.

Os métodos Audiolingual e Audiovisual refletiam esta abordagem. O Método Audiolingual foi principalmente caracterizado pelo uso do gravador e de gravações de falantes nativos – os professores era tidos como um segundo recurso no quesito ‘fala modelo’. Os laboratórios audiolinguais eram o grande ‘sucesso’ da época, pois proporcionavam horas infindáveis de prática (repetição) dos modelos. Exercícios de substituição de partes das sentenças-modelo constituíam a prática controlada mais freqüente.

O Método Audiovisual, desenvolvido por Crédif na França e amplamente adotado nos anos 60, representou certo desenvolvimento sobre o Método Audiolingual. Apresentando diálogos contextualizados e não sentenças isoladas e soltas, empregava uma certa variedade de técnicas transformacionais com o uso combinado do gravador e do projetor de “slides”, de cartões ilustrativos e de objetos reais.

A preocupação com o caráter científico e ‘profissional’ do ensino permanece. Notamos entretanto, uma visão de gramática que atribui um maior valor à fonologia; apesar de não ignorar a sintaxe e a morfologia, ainda não era dada aos aprendizes a oportunidade de analisar e refletir sobre os sistemas da língua. Acrescentando-se a isso o fato de fornecer aos aprendizes modelos a serem seguidos (e não questionados) e automatizados através de prática controlada, esta abordagem ainda perpetua as relações de poder entre lingüistas, escritores de materiais didáticos e professores, e os aprendizes.

 

* A reação: a Gramática Transformativa-Generativa

A partir da década de 50 manifestou-se uma crescente insatisfação com o Estruturalismo Behaviourista. Os aprendizes queriam expressar seus próprios pensamentos.

No final desta década e durante a década de 60 o lingüista americano Noam Chomsky desenvolveu e defendeu a Gramática Transformativa-Generativa.

Adeptos a esta abordagem respondiam a pergunta a) dizendo que a língua é um sistema cujos significados são expressos pela forma, revertendo assim a ordem do sistema apresentado pelos estruturalistas. Baseando-se na psicologia cognitiva, que estava entrando em cena na época, uma língua era vista como um atividade mental (um processo cuja manifestação era a fala) na qual fatores humanos universais eram mais importantes do que estímulos externos.

A expressão ‘transformativa-generativa’ explicava os mecanismos mentais de uma língua: as regras básicas para a expressão de significados (estruturas da língua) eram consideradas completas em si; a partir destas estruturas, seguindo regras de transformação (acréscimo, decréscimo ou mudanças de posição de certos elementos), uma sentença gramática seria gerada.

Chomsky é responsável pelos conceitos de competência (o que sabemos) e desempenho (o que fazemos com o conhecimento que temos). O modelo transformacional generativo baseava-se na noção do “falante-ouvinte ideal” em uma comunidade de fala totalmente homogênea, de “alguém que conhece sua língua perfeitamente e que não se deixa afetar por fatores externos e/ou imperfeições apresentadas por outros membros da comunidade em seu desempenho ao aplicar seu conhecimento da língua.” (Chomsky, 1965:3)

Notamos aqui a influência de Saussure no tocante ao falante-ouvinte ideal representante de uma língua homogênea, e também no que se refere à ligação dos significados com os contextos sociais. Todavia, podemos ainda notar um certo resquício de abordagens anteriores no que se refere à existência de um modelo a partir do qual as transformações seriam operadas.

Ainda apoiando-se na psicologia cognitiva, a pergunta b) era assim respondida:

1.      os aprendizes deveriam receber amostras ‘autênticas’ da língua e então devem aprender como operar as regras transformativas;

2.      os aprendizes deveriam analisar as amostras da língua (primeiramente o contexto onde estão inseridas e então sua forma de expressão) para depois executarem as transformações por si mesmos, de acordo com os novos contextos.

Este modelo é o que tem tido a maior influência no ensino de línguas por ter introduzido o conceito de gramática explícita e dedutiva, e os conceitos de competência e de desempenho, abrindo assim o caminho para a abordagem funcional/nocional que o seguiu e posteriormente para a abordagem comunicativa.

No entanto, não podemos dizer que esta abordagem gerou uma metodologia específica e que existam materiais didáticos escritos a partir desta abordagem.

Nota-se uma certa releitura da Abordagem Tradicional: apesar de a primeira não levar em consideração o contexto de aplicação e de prescrever exceções, traduções constituem, de uma certa forma, exercícios de transformação. Ao operar transformações e trabalhar a gramática explícita e dedutivamente, os aprendizes estavam inevitavelmente fazendo uso de Análise Contrastiva com os conhecimentos que já possuíam – tanto em um nível “macrolingüístico” (a partir de sua língua materna) quanto em um nível “microlingüístico” (uma análise contrastiva ‘interna’ da língua-alvo (James, 1986:66-101).

De todo modo, esta abordagem marcou o início de uma maior atenção aos aprendizes, dando-lhes a oportunidade de analisar o material lingüístico. Ainda assim, professores e escritores de materiais didáticos detinham o poder de seleção do material a ser apresentado aos aprendizes e de como esse material deveria ser trabalhado em aula. Ao exercer esse poder de seleção e de método de trabalho, estes passavam aos aprendizes suas ideologias, a ideologia das instituições onde trabalhavam e dos órgãos governamentais da área da educação.

 

* Década de 70: A Abordagem Funcional/Nocional

Respondendo a pergunta a), esta abordagem reage à visão de língua de Saussure, definindo uma língua como um sistema aberto e dinâmico, através do qual os membros de uma comunidade trocam informações.

Esta abordagem foca a maneira como a língua é usada em interações: as funções das expressões utilizadas e o significado das expressões (as noções que elas expressam) estão diretamente relacionados à situação na qual um evento da fala está inserido e na intenção do falante. Esta abordagem parte do significado para a sua realização através da forma e, como mencionado anteriormente, foi diretamente influenciada pela definição de língua da Gramática Transformativa-Generativa (a língua sendo um sistema de significados). Sendo assim, as ciências humanas – Filosofia, Psicologia e Sociologia – acrescentaram uma dimensão social extremamente importante à visão de língua desta abordagem.

O trabalho de Austin (1962) na área da Semântica, a Teoria do Ato da Fala de Searle (1969), a Gramática Funcional de Halliday (1970), o trabalho de Hymes (1972 – ver abaixo) e o de Wilkins (1976) sobre noções foram as maiores contribuições a esta abordagem por focarem seus conceitos fundamentais.

A pergunta b) recebia a seguinte resposta:

1.      ao identificar suas intenções (funções), o usuário da língua converte os significados (noções) em determinada forma que é processada pela gramática; por conseguinte, os aprendizes aprendem melhor se primeiro lhes for apresentado material autêntico que ilustre o uso real da língua; a seguir, eles analisam esse material (identificando funções e suas formas) e então praticam as funções, noções e formas em vários tipos de atividades, em pares e em grupos, para finalmente transferir essa língua para sua própria realidade;

2.      deve haver um equilíbrio das quatro habilidades (fala, escrita, compreensão oral e escrita);

3.      deve haver maior tolerância ao erro, e os professores devem desempenhar papéis mais variados e dar maior apoio aos aprendizes.

Hymes (1972:59) sugeriu um esquema para explicar as variantes de um evento da fala; este esquema foi utilizado para auxiliar os aprendizes na análise do material apresentado e orientá-los quanto à sua própria expressão: a sigla SPEAKING  (FALA):

S   setting” (lugar e hora), situação e cena (definição cultural de uma interação)

P   participantes da mensagem (falante/escritor, interlocutor/ leitor)

E   ends” (intenções, objetivos e resultados da comunicação)

A  atos (formas, conteúdo e seqüência da comunicação)

K  key” (chave) (tom, estilo e maneira como a mensagem é expressa)

I    instrumentais (o canal: escrita ou fala, registro)

N  normas (fatores sócio-culturais determinando interpretações)

G  gênero (tipos de interação e tipos de discurso)

A contribuição de Hymes foi decisiva para o desenvolvimento do conceito de Competência Comunicativa, conectando a propriedade do discurso e a correção gramatical. É importante ressaltar que este conceito constitui a raiz da Abordagem Comunicativa, e que diverge do conceito de competência lingüística proposto por Chomsky.

Esta abordagem pressupunha uma prática mais controlada no início que seria gradualmente abrandada, levando à liberdade dos alunos de expressarem seus significados no estágio final do processo. Esta metodologia ficou conhecida como APP (Apresentação - Prática - Produção). É importante notar que as necessidades de comunicação dos aprendizes eram consideradas somente no último estágio do processo. Durante a Apresentação os aprendizes eram observadores externos expostos a e analisando a comunicação de outros, e durante a Prática os aprendizes dramatizavam papéis determinados pelos professores ou pelos livros-texto.

De todo modo, foi dado o primeiro passo para equilibrar as relações de poder: a análise dos significados que a língua realiza em situações de real comunicação confere um papel social e politicamente mais importante aos falantes da língua do cotidiano, colocando a norma culta em segundo plano novamente. Este aspecto leva em consideração principalmente as necessidades dos aprendizes de usar a língua em situações rotineiras de comunicação, abordando a questão de praticidade do uso e da aprendizagem de línguas estrangeiras. Surgiram assim, durante a década de 70, os cursos de línguas estrangeiras instrumentais e de línguas estrangeiras para fins específicos.

Na Abordagem Funcional/Nocional os aprendizes são colocados no centro do processo de ensino-aprendizagem, exercendo um papel mais atuante no que se refere à análise do material lingüístico e à expressão de suas próprias idéias durante a produção. Há também, por parte do professor, uma maior tolerância ao erro e um maior encorajamento às tentativas de expressão.

A visão de gramática nesta abordagem torna-se mais abrangente: além de contemplar as quatro habilidades, os expoentes da língua e sua sistemática (sintaxe, morfologia e fonologia) são vistos como um conjunto de instrumentos a serviço da intenção do usuário da língua (os significados que deseja expressar e entender). Esta abordagem foi a primeira a levar em conta o fato de significados serem construídos (expressos, interpretados e negociados) socialmente, através da interação, e se serem influenciados pelo contexto e por fatores históricos e políticos.

Ao analisar o sistema da língua (gramática) utilizado para expressar significados, os aprendizes estavam também, ainda que de um modo superficial, analisando os fatores que determinavam a expressão e a interpretação dos significados. Ao expressarem seus próprios significados, suas verdadeiras ‘vozes’ estavam sendo ouvidas pela primeira vez, vozes essas também influenciadas pelos aspectos sociais, culturais, políticos e históricos de suas culturas. Ao interagir com outros aprendizes, com os professores e com os materiais didáticos, os aprendizes estavam pela primeira vez negociando todos esses aspectos mencionados.

 

* Década de 80: A Abordagem Comunicativa

O rápido desenvolvimento da Sociolingüística e da Pragmática (como uma língua é efetivamente utilizada em contextos variados) levaram ao desenvolvimento do conceito de Competência Comunicativa, que propõe a ênfase na mensagem ao invés da ênfase na forma que esta toma.

Seguindo os trabalhos de Canale e Swain (1980, 1983), Savignon (1983:7-10) definiu a Competência Comunicativa como “a habilidade de interpretar, expressar e negociar significados” em contextos variados. Este é um conceito dinâmico e interpessoal que se aplica tanto à língua escrita quanto à língua falada e a outros sistemas simbólicos da comunicação. “Somente através do desempenho é que a competência pode ser desenvolvida, mantida e avaliada.” (ibid.).

Resumidamente, Savignon (1983) assim classifica os quatro componentes da Competência Comunicativa:

Competência Gramatical: domínio do código lingüístico

ð capacidade de reconhecer as características lexicais, morfológicas, sintáticas e fonológicas da língua e de manipular estas características para formar palavras e sentenças

ð capacidade de usar as regras, e não somente de formulá-las

 

Competência  Sociolingüística: propriedade ao contexto social

ð compreensão do contexto no qual a língua é utilizada: o que dizer, como dizê-lo, quando falar/calar

ðEx: registro (formal/informal), gíria, dialetos

 

Competência Discursiva: capacidade de produzir um discurso coerente e coeso

ð padrões organizacionais diferem entre si, dependendo da natureza do texto/conversa e do contexto

ð conhecimento compartilhado entre os participantes: valores, intenções e objetivos

 

Competência Estratégica: estratégias que compensam o conhecimento imperfeito/ incompleto do código lingüístico ou fatores que limitam seu uso (distrações, pressão emocional, etc.)

ðuso das estratégias (Ex: parafrasear, adivinhar, evitar expressões; circunlocução, repetição, alterações de registro e estilo, linguagem corporal, etc.)

ð capacidade de alterar e adaptar as estratégias de acordo com condições interpessoais variáveis

 

A resposta à pergunta a) define uma língua como um instrumento eficiente de comunicação em determinado contexto social. A língua não é uma forma, e sim uma mensagem inserida e determinada por uma situação.

Respondendo a pergunta b), esta abordagem inclui práticas coerente com os princípios que a embasam:

1.      consideração de estilos e estratégias de aprendizagem individuais, e desenvolvimento de um leque de estratégias de comunicação;

2.      proporcionar aos aprendizes oportunidades variadas de aprendizagem, através de tarefas que espelham a real utilização da língua  onde os aprendizes são agentes das mesmas e têm uma necessidade real e relevante de usar a língua-alvo para atingir os objetivos das tarefas;

3.      desenvolver o pensamento crítico e a reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem: aprendizagem reflexiva e responsável;

4.      desenvolver a autonomia e a capacidade de explorar recursos.

A gramática, nesta abordagem, é trabalhada ao longo de toda uma unidade, um livro, e um curso, e não mais como um capítulo separado a ser trabalhado em uma aula especialmente dedicada a isto. Em todas as tarefas, todos os aspectos da gramática de uma língua são trabalhados de maneira integrada às intenções dos aprendizes, ao contexto e à situação onde a comunicação está inserida. A negociação de significados, principal característica desta abordagem, tem auxiliado aprendizes e professores a desenvolver uma maior consciência dos aspectos sócio-lingüísticos que permeiam o uso de uma língua e a escolha das formas para expressar suas intenções nessa língua.

Podemos dizer que esta abordagem constitui uma releitura de vários aspectos apresentados por abordagens e metodologias anteriores. Os materiais didáticos lançados a partir da década de 80 e as práticas de ensino observadas ilustram aspectos transformativos-generativos, formação de hábitos através do estímulo-resposta, práticas menos guiadas para a expressão e compreensão de noções e de funções comunicativas. No entanto, essas práticas são conduzidas através de tarefas que inserem os aprendizes em um contexto de real necessidade de comunicação. Os aprendizes estão se tornando, cada vez mais, agentes reflexivos e responsáveis por sua aprendizagem e pelo ensino.

 

Conclusão

As duas últimas décadas apresentaram uma reconciliação entre todas as abordagens e metodologias que se manifestaram ao longo deste século.

Relações de poder podem ser identificadas em todas as abordagens ao processo de ensino-aprendizagem. Mas relações de poder irão sempre permear os relacionamentos humanos e ser expressas através da linguagem. A linguagem também será influenciada pelas ideologias de seus diferentes usuários. No entanto, estas relações estão sendo investigadas, esclarecidas e discutidas, e estamos caminhando em direção a um consenso sobre a co-existência e a co-atuação de diversos agentes e recursos (com suas respectivas características sócio-políticas) no processo de ensino-aprendizagem: professores, aprendizes, materiais didáticos, e o próprio mundo que nos cerca.

Professores estão levantando as necessidades e características de seus aprendizes, e desenvolvendo suas capacidades de seleção e de adequação de recursos de acordo com essas necessidades e características. Isso requer uma consciência de sua responsabilidade pela organização do processo de ensino-aprendizagem, incluindo-se aqui como trabalhar conteúdos lingüísticos e fatores sócio-lingüísticos.

Os aprendizes e sua maneira de aprender estão sendo considerados; aprendizes estão também contribuindo com recursos para o processo de ensino-aprendizagem e discutindo o processo com seus professores.

 

* Outras Abordagens e Metodologias *

A partir do foco nos aprendizes e no processo de aprendizagem, outras abordagens e metodologias surgiram ao longo do século XX. Fundamentadas principalmente na psicologia cognitiva, estas abordagens e respectivas metodologias foram desenvolvidas em determinados contextos que não se aplicavam ao ensino/aprendizagem de línguas, mas à educação em geral. No entanto, foram também incorporadas pelo corpus metodológico da lingüística aplicada e são adotadas em diversas partes do mundo para o ensino/aprendizagem de uma segunda língua/língua estrangeira:

·      “Silent Way” (Gategno)

·      “Total Physical Response” – TPR (Asher)

·      “Suggestopedia” (Georgi Lozanov)

·      Aprendizagem Experimental ou Situada (Rogers)

 

 

Referências

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Austin, J. L. (1962) How to do things with words. Cambridge: Cambridge University Press.

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Howatt, A. P. R. (1984) A History of English Language Teaching. Oxford: Oxford University Press.

Hymes, D. (1972) “On Communicative competence” em Pride, J.B. and Holmes, J. Sociolinguistics. Harmondsworth: Penguin.

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