O DISCURSO FRAGMENTADO DE LUÍSA (QUASE UMA HISTÓRIA DE AMOR), DE MARIA ADELAIDE AMARAL

 Nataniel dos Santos Gomes (UFRJ / SUAM)

Dedicado à Angela Nunes Damasceno.

Parece que a cada dois ou três séculos ocorrem grandes transformações na história. Por causa dessas mudanças, a sociedade se reorganiza para poder se adequar à nova visão de mundo, rever seus valores, avaliar sua estrutura social e política, suas artes.

Mas se no período conhecido como Modernidade, as pessoas diziam: “Deus está morto”, na Pós-Modernidade, elas anunciam: “Marx também está, e eu estou doente de morte”. Na realidade, o novo-homem que o niilismo sonhava tornou-se um primitivo e selvagem predador de seus semelhantes.

É óbvio que a Pós-Modernidade aconteceu também na esfera sociológica levando à secularização, à privatização e à pluralização que alteraram os pilares da sociedade: o convívio, as relações pessoais e a ética.

O Pós-modernismo prometeu liberdade, mas colocou o homem na pior das escravidões: a solidão.

A nossa proposta de trabalho é de analisar algumas características do discurso fragmentado da Pós-Modernidade, no romance Luísa (quase uma história de amor), de Maria Adelaide Amaral. Parece-nos que ele é um bom exemplo da fragmentação do ser numa obra literária, afinal, temos cinco narradores, que também são personagens. Cada um deles conhece um aspecto de Luísa, e traz uma perspectiva diferente, numa relação de compreensão / interpretação, contexto / leitor etc.

 

1-       Introdução teórica:

Vamos trabalhar com um romance (do latim romanice), pois é uma composição em prosa.[1] Pretendemos demonstrar que Luísa é uma personagem que sugere inúmeras leituras, provenientes do grau de envolvimento do narrador, demonstrando, entre outras coisas,  o processo da relação entre leitor e texto.

Acreditamos que um documento escrito tem o poder de evocar uma gama imensa de significados quando este é confrontado por diferentes leitores, cada um com seu histórico que influencia sua visão do texto. Segundo Eni Orlandi,

 

(...) “leitura” pode significar a construção de um aparato teórico e metodológico de aproximação de um texto: são as várias leituras de Saussure, as possíveis leituras de um texto de Platão, etc”. (ORLANDI, 1996:7)

 

Pode-se assinalar várias características que tornam o romance distinto das demais formas de prosa. Todas as formas de conhecimento cabem ao romance. O romance permite ao escritor construir um projeto que pegue as mais variadas experiências humanas e as globalize, tendo o leitor o privilégio de desfrutá-las sem risco de “perder o sentido” da obra.

Na sua estrutura, o romance tem a característica da coexistência de vários conflitos e não de tranqüilidade, o que alimenta o enredo. O romance estabelece um intercâmbio com a realidade.

 

Tudo se passa, no romance, como uma pedra que, jogada na água, formasse uma série de anéis concêntricos que se fossem esbatendo à proporção que se afastassem do foco gerador. (MOISÉS, 1992: 452 )

 

Os conflitos que Luísa gera  não vão afetar muito as personagens que estão fora de seu círculo de amizade ou interesse. Não faz sentido interferir na vida das personagens que não estão próximas.

Com relação ao espaço, o romance geralmente não fica preso a uma região geográfica, a personagem é levada para a área de conflito pelas circunstâncias, pelo enredo, pela trama.

O tempo pode ser: histórico (ou cronológico) e psicológico. O primeiro marcado pelo ritmo do calendário, do relógio. Já o tempo psicológico transcorre no interior da personagem, variando assim de personagem para personagem.

O romance em questão é marcado por vários recursos expressivos, tais como o diálogo, principalmente o diálogo interior, ou seja, a introspecção da personagem, que também é narrador. Como obra literária, apresenta um plano de verossimilhança, isto é, representação do que poderia acontecer.

Nós entendemos que esta obra poderia ser classificada como romance de personagem, (vide SILVA: 1976, 264) por ser caracterizada pela existência de uma única personagem central, tendo em vista que até o título do romance é constituído pelo nome da personagem.

A personagem constitui um elemento indispensável no romance. Entre as personagens, há duas que têm função particular: o narrador e o narratário. O narrador constitui uma figura fictícia como qualquer outra personagem, enquanto o narratário “constitui o receptor  do texto narrativo, aquela criatura ficcional a quem se dirige o emissor / narrador”. (SILVA: 1976, 270) 

Na construção do texto devemos pensar no leitor que não existe, mas que foi idealizado pelo autor, o que gera um conflito no encontro entre os dois. O narrador parece ser um tipo de leitor daquela situação (texto) que pode trazer vários choques ao leitor, ou seja, o narrador também tem histórico que influência sua visão do todo. É isso que pretendemos demonstrar em nosso trabalho: a visão de cada narrador/leitor.

 

Há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos “formações imaginárias” em análise do discurso, trata-se aqui do leitor imaginário, aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se dirige. Tanto pode ser um seu “cúmplice” quanto um seu “adversário”.

Assim, quando o leitor real, aquele que lê o texto, se apropria do mesmo, já encontra um leitor aí constituído com o qual ele tem de se relacionar necessariamente. (ORLANDI, 1996:9)

 

O primeiro foco narrativo a considerar é o do narrador onisciente. É aquele que o autor/narrador tudo conhece da história e tudo pode esquadrinhar, inclusive a vida mental das personagens.

O segundo ponto de vista é o da primeira pessoa, singular ou plural, que pode ser assumido pela personagem central, por uma personagem secundária, pelo narrador testemunha. De qualquer modo acontece uma drástica diminuição da faixa de terreno abrangida pelo “olhar”.

 

No primeiro caso, o protagonista narra a sua história e reporta-se às demais personagens na razão direta da sua participação; no segundo, a incumbência se desloca para um dos figurantes menores, mas a história gira em torno de uma outra personagem; no último caso, o narrador torna-se testemunha, ou seja, simples espectador de conflitos alheios (SILVA, 1976).

 

A personagem designa os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos, mesmo que sejam animais, estes personagens são personificados. A personagem será caracterizada pela sua função e relevância no texto.

 Enredo é o conjunto  dos incidentes que constituem a ação duma obra. O enredo pressupõe uma linha de ligação de causalidade entre os diversos acontecimentos, e por isso depende de uma série de recursos narrativos, como o mistério, o suspense, o flashback...

Balzac é tido como o criador do romance moderno através da Comédia Humana, na realidade um painel da burguesia de sua época.

Sabe-se que os romances narravam feitos heróicos, até que surgiu a obra Dom Quixote, de Cervantes. Este começou a mostrar, em seu estilo, o homem e seus problemas, seria portanto um anti-romance.

Já no século XX, a grande preocupação é com a linguagem, e o texto a ser estudado tem como preocupação básica a linguagem. Luísa é uma espécie de metáfora da modernidade fragmentada. Ela não fala de si, os outros é que falam dela, portanto o texto é marcado pela ausência de opinião de si mesma, enquanto que os narradores fazem alusão ao leitor (os diversos modos de se ler e interpretar um texto).

É na modernidade, marcada pelo desejo de desconstrução desse algo estabelecido, que é criada uma obra como Luísa, haja visto os cinco narradores. Lógico que estes são bem diferentes, mas vamos falar sobre isto mais a frente.

Ainda na modernidade, destaca-se o interesse na análise psicológica das personagens, levando a uma abordagem penetrante dos problemas gerados pela tensão existente entre os indivíduos e o contexto social em que vivem. Isto leva o leitor ao âmago da miséria e aos mecanismos de opressão do mundo, como é  o caso de uma greve que é retratada no romance.

Existem tantas correntes que discutem as possibilidades de interpretação que seria muita pretensão tentarmos solucionar o problema da interpretação: qualquer interpretação deve ser aceita? Existem limites? Tentaremos dar uma resposta até o final do artigo.

 

2 – Os diversos focos narrativos de Luísa (quase uma história de amor):

Para começar a análise do foco narrativo desse livro seria bastante interessante que fosse mostrado que, apesar de raro, o foco múltiplo é bastante conhecido, embora não prestemos muita atenção, e talvez por isso não o “conheçamos”. Esse tipo de narrador, no nosso caso, é de primeira pessoa, assumido pelo personagem. Logicamente, que o livro em questão possui vários narradores, cada um responsável por narrar o capítulo com seu nome. (veja MÓISES: 1992, 407-415)

Um exemplo a ser mostrado é o da Bíblia,  o livro mais lido do mundo. Pode parecer estranho ou até simples demais para começar a discussão, mas vejamos os argumentos.

São quatro os Evangelhos, cada um narrado por uma pessoa diferente, e cada um apresentando uma característica diferente do Senhor Jesus sem anular o outro, somente enriquecendo-o. Assim Mateus apresenta Jesus como rei, escrito para os judeus que esperavam o Messias. Marcos descreve Jesus como Servo de Deus, escrito para os romanos. Lucas mostra  Jesus como Homem Perfeito, escrito para os gregos. João retrata Jesus como Filho de Deus, escrito para os futuros cristãos.

Cada um destes narradores tinha uma profissão diferente: cobrador de impostos, médico, pescador. E este conjunto é que nos dá uma visão geral.

Van Dyke disse certa vez:

 

Suponhamos que quatro testemunhas comparecessem perante um juiz para depor sobre acontecimentos e cada uma delas usasse as mesmas palavras. O juiz, provavelmente, concluiria, não que o testemunho delas era de valor excepcional, mas que a única coisa certa, sem sombra de dúvida, é que haviam concordado em contar a mesma história. Todavia, se cada uma tivesse contado o que tinha visto e como o tinha visto, aí então a prova seria digna de crédito. (MEARS, 1966)

 

Como dissemos anteriormente, as quatro visões de nosso Senhor não são contraditórias, mas complementares. Cada evangelista tinha um histórico, que fica evidente na forma narrativa adotada. 

Ainda um outro exemplo que pode ser citado é encontrado na Galeria Nacional de Londres, onde há uma tela com três representações de Carlos I. Numa, ele tem a cabeça voltada para a direita, noutra para a esquerda, e na do centro, ele está olhando para a frente. Ela foi pintada para o escultor romano Bernini, a fim de que ele pudesse modelar um busto do rei. Combinando as impressões dos três quadros. Benini pôde criar uma imagem real, que um quadro somente não lhe permitiria produzir.

Agora sim, com estes dois exemplos vamos ver o que cada narrador comenta de Luísa. Mas claro que para isso teremos que articular um pouco sobre os personagens, afinal no texto  os narradores são personagens. Por isso é muito difícil, ou quase impossível falar de um sem falar de outro.

 

A1) Raul

Raul, amigo homossexual e colega de trabalho, é o primeiro dos cinco narradores de Luísa. É muito importante o que ele narra porque nos traz as primeiras imagens e informações sobre Luísa, o contexto histórico da década de 60 (auge do governo militar).

 

Eu estou deprimido nesta festa de Marga, que retorna do exílio. (AMARAL,1986: 20)

 

Raul, além de narrador é também personagem, trabalha na redação do jornal, e por vezes usa de uma linguagem tipicamente jornalística para contar a história. Ele também é o único que não é objetivo ao descrever Luísa, fazendo muitos “rodeios” com o uso do flashback. Estes são construídos, mais para narrar a vida, os desejos e frustações de Raul do que de Luísa.

Nesta festa eu gostaria de ser um best-seller e não estar desempregado. Procuro Luísa, mas ela dança com Mário. Marga fala de sindicalismo. Quero um uísque. O gelo acabou. (idem:22)

 

Nota-se o interesse de Raul por Mário, esposo de Luísa. A cada instante Raul se identifica mais com Luísa. Ele é discriminado pela sociedade por ser homossexual e ter uma visão do mundo diferente do estabelecido, normal e comum. Ele se  identifica com Luísa, para vencer seus traumas e preconceitos.

 

Nesta festa, Luísa se excede no brilho de seus convidados. Há um romancista, um poeta concretista, um dramaturgo censurado desde 1968, quando contista, dois críticos de arte e um de música popular, um compositor promissor, vários atores e alguns jornalistas de prestígio. E eu estou entre eles, provocando Marga e me sentindo cada vez mais ansioso porque Mário ainda não está na sala. (idem: 32)

 

Raul ainda fala da adolescência de Luísa, digamos, a sua origem; seu relacionamento com Paulo Cavacanti; e quando se “apaixona” por Mário.

 

 Mariana ri e mais uma evoco Luísa recém-saída da adolescência, filha única do Sr. Luís, funcionário do Banco do Brasil e de Dona Carmem, professora de canto e piano. Cantava no coro de Teatro Municipal e sua maior glória foi substituir Niza de Castro Tank em  La Bobème. Quando Luísa saiu de casa para viver com Paulo. Dona Carmem começou a cantar insistentemente  a ária da loucura de Lúcia de Lammermoor. Só parou quatro anos depois, quando a filho voltou para casa. Para a sua completa felicidade, logo em seguida Luísa conhecia Mário, que retornava de Ilha Solteira. Eu estava em Londres quando recebi um cartão de Natal informando que ela conhecera um “homem maravilhoso”. (idem:24)

 

E por não saber trabalhar (ou pensar) sobre Luísa, Raul chega a ser repetitivo, parecendo estar cansado.

 

Estou numa festa. O gelo acabou. (idem:24)

Quero uísque. O gelo acabou. (idem:22)

 

Depois de tudo isso pode-se chegar a seguinte conclusão: este capítulo é narrado em primeira pessoa, o narrador é personagem, e portanto, não sabe de tudo que está ou estava acontecendo e tem uma visão limitada de Luísa.

Raul vê Luísa como mulher sedutora, uma porta para fuga de suas frustações.

 

A2) Rogério

Rogério é o segundo narrador apresentado no livro. Mas talvez ele fale mais sobre si do que de Luísa. As duas interpretações são perfeitamente cabíveis.

Ele constrói o seu texto usando de um flashback contínuo, diferentemente de Raul que até seus flashbacks são fragmentados, relembrando a idéia que se tem da modernidade.

Rogério é aquele personagem apaixonado por Luísa, que, por vezes, usa de uma linguagem cheia de fetichismo ao descrevê-la. Seu discurso é recheado de sexo,  até mesmo na adoração de seu pé, por vezes irônico.

 

A primeira coisa que me chamou a atenção em Luísa foram os pés. Há quem goste de bundas, de seios grandes, de pernas, de mãos. Eu gosto de pés. Magros, esguios, sem traços de calos, olhos-de-peixe ou joanetes. Um pé, se não bastasse, Luísa era magra, tinha os ossos dos quadris proeminentes, a barriga ligeiramente entrada. Podia adivinhar-lhe o umbigo: um botão tímido, rodeado de penugem dourada. Os seios pequenos. (idem: 53)

 

Ele trabalha como chefe da redação, portanto vê Luísa constantemente e a sua relação com Sérgio. Só que de fetichismo a coisa parecia ir para uma espécie de psicose.

 

- Você está ficando obcecado – dizia Carlinhos.

E estava. Pensava em Luísa dia e noite, minha alegria estava atada aos seus humores, sábados e domingos eram intoleráveis porque eu ficava privado da sua presença. Encerrado em casa, acariciava as coisas em que ela deixava sua marca. Meu fetichismo se agravava. (idem: 61).

 

Isso leva a uma idealização tal que quando Luísa se rende (!?) ele não consegue prosseguir. Até a amante várias vezes ele chama de Luísa.

 

Naquela mesma madrugada conheci Branca, dançarina da boca, esguia como Luísa. Depois de um mês, mudou-se para minha casa.

- Sem compromissos – adverti.

- Tudo bem.

Lavava, passava, cozinhava. Arranjo quase perfeito se insistisse em saber quem era Luísa.

- Eu sei que você não trepa comigo. Trepa com essa tal de Luísa.

- Sem compromisso, lembra?

- Lembro, porra! Mas já estou de saco cheia de ser chamada de Luísa. (idem: 63)

 

O depois não aconteceu. tirar o paletó foi fácil, mas o cinto enroscou no cós algumas vezes até que eu decidisse retirá-lo pelo lado da fivela. O zíper das calças enguiçou e, ao tentar arrebentá-lo, tropecei. Luísa assistia deliciada ao meu desajeitamento, e eu forcei um sorriso numa tentativa canhestra de fazê-la acreditar que eu também me divertia. Do resto seria inútil qualquer empenho sexual da minha parte. Nem beijando seus pés, nem sentindo-lhe os ossos proeminentes dos quadris, nada seria capaz de me fazer esquecer a vergonha do cinto, do zíper e do tropeço. Após dez minutos de tentativas, escorrendo de suor, deitei-me ao seu lado. Nunca a expressão “a carne é fraca me pareceu tão verdadeira. Não sabia se lhe dizia “isso nunca me aconteceu”, porque seria mentira, ou se não lhe dizia nada, o que talvez fosse pior. Mas Luísa não esperou as desculpas nem as explicações. Vestiu-se e foi embora. (idem: 75)

 

Num dado momento ele chega a achar que todo mundo está apaixonado por Luísa: “Talvez  Marga  estivesse  apaixonada  por Luísa, como todos nós.” (idem: 85)

 

Ele termina dizendo que a esperaria o tempo que fosse preciso, deixando claro que nunca a esqueceu.

Luísa mantém Rogério como se ele fosse seu escravo, apenas para saber que é adorada por mais um. Ela o subjuga até mesmo com suas leituras intelectuais. Para piorar a situação, ele vem de um casamento arruinado, e se divide na hora da greve como uma espécie de mediador entre a classe dominada e a dominante.

Novamente o narrador é em primeira pessoa, ele é um narrador-personagem que traça mais um rascunho de Luísa para ser montado ao final (ou pelo menos tentado).

Rogério vê Luísa como deusa intocável.

 

A3) Sérgio.

Maria Adelaide Amaral criou primeiro este capítulo, que acabou se transformando numa peça nomeada “De braços abertos”. A partir daí é que surgiram os outros capítulos. Isto significa que o primeiro olhar sobre Luísa foi o de Sérgio, originalmente. Mas acabou mudado na construção do livro.

Sérgio é um jornalista que não gosta, trabalhar com finanças.

Quando Luísa anunciou a exposição e pediu que eu fosse modelo de uma de suas telas, fiquei indignado. Porque Luísa podia desdobrar-se e encontrar, apesar de mim e de tudo, tempo e energia para criar.

Essa capacidade me humilhava porque eu mal consegui desempenhar as tarefas mais corriqueiras desde que me apaixonara e ficava mortificado porque Luísa era imune à ação de seu amor por mim. Eu invejava em Luísa a aplicação e a disciplina,  o exercício de um talento não fosse muito grande, mas era exercido. (idem: 118)

 

Sérgio e Luísa competem como duas crianças ou dois atletas em busca do prêmio. Mas fica claro que ele compete para tentar se igualar socialmente a Luísa. Mas ela não se importa e continua brincando com ele, infelizmente Sérgio parece ser a única pessoa que sempre amou Luísa. Mas ela continua pensando naquele que a maltratou, Paulo Cavalcanti, e por conseqüência se vinga em outras pessoas, usando-as e machucando-se. Isto faz com que fiquem inseguros e comecem a se agredir. Ela começa a fazer jogo de intelectualidade superior, bancando uma certa arrogância, por isso comprova-se sua insegurança.

Por vezes, Sérgio convida Luísa para fugir para Alexandria e chega ao ponto de dizer que ela foi seu único amor. Até mesmo quando Luísa parte, a memória de Sérgio começa a falhar, mas ele não quer isso aconteça.

 

Penso nela e penso também que, depois de ela ter partido, comecei a esquecer os traços de seu rosto e, desesperado pedi a Marga que me mostrasse uma foto de Luísa (Idem: 115)

 

Até seu desempenho sexual melhora com a esposa quando ele estava com Luísa, era como se ele tivesse relações sexuais dobradas com Luísa.

 

Eu nunca amei tanto minha mulher como nos tempos em que eu amava Luísa (Idem:106)

 

Mas assim como o livro é uma metáfora da fragmentação do sujeito na modernidade, Luísa vai destruindo sua vida.

Sérgio vê Luísa como mulher fraca e vunerável.

 

A4) Marga

O nome Marga é pouco comum e parece ter sido colocado na personagem para fazer um trocadilho com a palavra “amarga”. E por vezes ela realmente passa esta imagem.

Na leitura do texto fica claro que ela se envolve por política por puro desânimo da vida, e por Luísa não se envolver de igual forma é chamada de alienada.

Raul também costuma perguntar, derrisório, por que “não obstante” todos os grupos e comitês, continuo sozinha. Para  ele, a militância mascara um problema maior ou menor, muitas vezes banal e freqüentemente indigno. (idem: 169)

 

Mas é quando Luísa sai de cena que Marga consegue se aproximar de Mário e ter uma visão diferente dele. É oportuno colocar como observação que quando qualquer um dos narradores “perde” Luísa, sua visão começa a mudar. Até Sérgio é visto diferentemente.

 

Olho novamente para “Sérgio de Alexandria” e meu coração se aperta. (Idem: 175)

 

É neste capítulo que é revelado o sofrimento de Luísa por Paulo Cavalcanti, que a despreza.

 

Três meses depois reencontro a velha Luísa numa carta deseperada. Paulo tinha voltado e durante uma semana se refulgiara na casa dela.

“Foi horrível, Marga. Durante sete dias o pavor. E eu sem coragem de encarar Mário. À noite, no quarto, eu pedia perdão, mas a gente tinha que ajudar o Paulo, senão fosse por mais nada, por tudo isso que está aí fora. E o Magro impaciente, bebendo, batendo portas, esperando uma mensagem que nunca chegou. O dedo sempre em riste me acusando por causa do Mário. Mário era o que faltava pra ele confirmar todas as previsões a meu respeito. Quando a casa estava vazia, o Magro vinha para mim com aquele jeito sem graça de se desculpar e pedia para eu fazer amor com ele. Era tão sofrido, terrível, o reencontro. E enquanto a gente se amava eu ficava imaginando que a criança na minha barriga estava sendo feita pelo Magro naquele instante.”

Se Paulo tivesse pedido, Luísa teria partido com ele, mas o Magro se despedira sem um abraço. “Nem  olhou pra trás.” Foi um amigo que disse a Magra que Paulo chegara a salvo a Santiago. (Idem: 150)

 

Até mesmo em coisas simples Luísa é ridicularizada (ou invejada) por Marga.

Luísa vai para o banheiro inicia o ritual da  noite. Sentada na tampa da privada, observo seus gesto, precisos em cada operação. Creme de limpeza para retirar a maquiagem. Loção adstringente para fechar os poros. Creme nutritivo para alimentar peles cansadas. Óleo de tartaruga para retardar o aparecimento de rugas na área dos olhos. Quando terminar o tratamento facial, será a vez dos cabelos. Cem escovadelas como Dona Carmem ensinou. (Idem: 177)

 

Luísa mostra sinais de fraqueza e narcisismo de maneira bem clara e intensa neste capítulo, como no exemplo anterior.

Marga termina o seu capítulo de maneira única. Deixando clara a idéia de querer fazer o que Luísa fez da vida, Marga estava impressionada.

Marga vê Luísa como uma pessoa alienada e  sem sentimentos ao brincar com a paixão dos outros.

 

A5) Mário

Com toda certeza Mário é bem diferente dos outros narradores. Ele é o único que não faz parte do meio jornalístico. Por conseqüência, tem uma linguagem mais sincera, menos artificial, mais emotiva e equilibrada. Afinal ele não era amante, mas sim o marido que estava com Luísa lado a lado.

Ele é o tipo de homem que muitas mulheres gostariam de ter, com um porte atlético, é bonito e inteligente, possui estabilidade financeira, dá presentes caros a Luísa (tudo isso confirmado nos outros capítulos). Até Raul tinha interesses em Mário. Mas nem por isso Luísa o amava de verdade, somente escarnecia dele por causa da diferença na profissão.

Seu amor foi tal, que Mário chegou ao ponto de romper o noivado para ficar com Luísa. Mas ela nunca disse mais do que “gosto de você”.

A sua sensibilidade e compaixão por Luísa é tal, que mesmo ele sabendo de seu caso com um colega de trabalho, Mário não expulsa Luísa de sua vida. Ele espera que ela vá embora, nunca age de modo que libere insinuações ou coisas parecidas, sempre mantém a atenção nela.

 

Mas havia um ponto em que Luísa era especialmente vunerável: não se sentir amada. (Idem: 192)

 

Mário sempre esperou que Luísa viesse amá-lo de verdade.

 

É espantoso que eu tenha vivido tantos anos satisfeitos com migalhas, à espera do milagre de Luísa se apaixonar por mim. (Idem: 209)

 

Depois da separação Mário começa a ter uma vida diferente até com os amigos de Luísa, como já foi dito antes.

 

É curioso que após a nossa separação eu tenha me aproximado de pessoas como Marga, provenientes do seu passado, das quais Luísa procurou me manter à margem.

Outro dia Marga confessou gostar muito de mim e lamentou não ter conhecido melhor a mais tempo. [...]

Na tentativa de recuperar o que perdemos, nos vemos com freqüência, saímos para almoçar ou jantar, e ela me pede conselho, nem sempre de caráter financeiro. (Idem: 194)

 

Mário vê Luísa como egocêntrica.

 

A força de Luísa reside na sua egolatria, e ela é capaz de se erguer quando todos acreditam que não se levantará mais. (Idem: 207)

 

 

3 – Considerações sobre o processo de interpretação a partir dos narradores-personagens:

O livro estudado apresenta uma riqueza imensa, sobretudo na utilização do foco múltiplo, que não anula as características de Luísa, estas só são enriquecidas e complementadas.

Os bilhetes e anotações de Luísa completam o [seu] quadro. Os narradores falam mais deles do que de Luísa, o que acreditamos que aconteça em muitos casos na relação entre leitor e texto, cada um dá uma visão limitada que vão se complementando.

Pode-se agora montar as feições da “camaleoa” como mulher sedutora, deusa que não se pode alcançar, fraca, vulnerável, alienada, irresponsável com os sentimentos alheios, egocêntrica. Mas mesmo assim o quadro ainda é muito restritivo para uma personagem que não fala de si mesma, os outros que falam dela.

O texto parece-nos uma apologia ao processo de interpretação e de compreensão do leitor à obra,  existe uma verdade que precisa ser analisada a partir do pressuposto da vida de cada leitor, sua história com o texto, o que vai influenciar sua leitura. Não deixamos de acreditar numa verdade absoluta, mas acreditamos que ela precisa ser contextualizada. Entendemos que o ser humano parece possuir quatro vidas, cada uma complementando a outra: a vida pública (nossa imagem cosmética, uma vitrine ornamentada para os outros e para nós mesmos), a vida privada (onde somos um pouco menos falsos, onde as pessoas do nosso círculo de amizade mais próximo nos conhecessem um pouco melhor), a vida consciente (nossos pensamentos, nossa moral, ética e liberdade) e a vida inconsciente (lugar de ser onde parece que a censura não consegue reprimir muita coisa).  

Nossa vida é composta de leitura. O ato de ler vai além da escrita. Acontece que um dia começamos a ler, no sentido maior da palavra, vemos um objeto de forma diferente, porque ocorreram uma conjugação de valores para formar nosso juízo. Nossa leitura parece se iniciar no momento que chegamos ao mundo, estabelecendo relações entre as experiências e as tentativas de resolução de problemas, estaremos fazendo leitura.

Para qualquer leitura contamos com a interação das condições subjetivas e das objetivas. O ato de ler será sempre marcado por estas interações.

Acreditamos que existem limites para a interpretação de um texto, o que talvez seja nadar contra a maré, já que a maioria pensa exatamente o contrário: tudo que pode ser justificado num texto é verdade.

É certo que o escritor perde o controle e a responsabilidade a partir do momento em que coloca as palavras no papel, mas em muitos casos ele quer dizer o óbvio, e os leitores fazem uma outra leitura devido aos fatos já referidos.  

Nenhuma metodologia  cria leitores. Uma vez que se sabe ler, a maioria das pessoas se limita à leitura com fins puramente pragmáticos, às vezes, mistificando o ato de ler.

Ao ampliar a noção de leitura percebemos que ela (interpretação/compreensão) é inerente ao ser humano desde seu nascimento, conforme afirmam os lingüístas.

 

 

4 - Bibliografia:

AMARAL, Maria Adelaide. Luísa (quase uma história de amor). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário de literatura. Porto: Figueirinhas, 1987.

GONDIM, Ricardo. Fim do milênio: os perigos e desafios da pós-modernidade na igreja. São Paulo: Abba, 1996.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 3 ed. São Paulo: Loyola, 1993.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 2 ed. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1983.

MEARS, Henrietta C. What the Bible is all about. /s.l./ G.L. Publications, 1966.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1992.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 3 ed. São Paulo, Cortez. Campinas, Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996.

SILVA, Vitor Manuel Aguiar e. Teoria da literatura. 1 ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1976.



[1]  “O termo romance  também remete a uma composição poética tipicamente espanhola, de origem popular, de autoria não raro anônima e temática lírica ou/e histórica, geralmente em versos de sete sílabas, ou rendodilhos maiores; o vocábulos  rimance altera com romance e corresponde, até certo ponto, à balada medieval.” (MOISÉS, 1992: 451)