O desenredo lingüístico de Guimarães Rosa
Tatiana Alves Soares
UFRJ
“O verdadeiro pode às vezes não ser verossímil.”
(BOILEAU, A arte poética)
Guimarães Rosa, escritor mineiro celebrizado pela peculiaridade de sua linguagem, apresenta ao leitor um desafio: dotado de um estilo único, povoado por construções insólitas, o autor de Grande Sertão: Veredas realiza uma verdadeira recriação da linguagem, redimensionando o léxico e ultrapassando os limites do mero regionalismo. A linguagem rosiana é a um só tempo regional e universal, presente e atemporal, popular e erudita. É desse redimensionamento, analisado em seus aspectos sintáticos, semânticos e morfológicos, que trata nosso estudo.
Desenredo, conto integrante de Tutaméia – Terceiras Estórias, narra a história de Jó Joaquim, homem que se apaixona por uma mulher extremamente infiel, a quem conhecera ainda casada. Flagrada pelo marido com um terceiro homem, a amante de Jó Joaquim escapa da morte. Este decide se afastar, mas, com a morte do marido, não resiste e casa-se com ela, que passa então a traí-lo. Com a infidelidade mais uma vez descoberta, Jó expulsa a adúltera companheira. Em seguida, começa uma verdadeira campanha com o objetivo de modificar a imagem da mulher, afirmando a sua inocência. Sua obstinação, motivada talvez por um amor incondicional, faz com que ele transmita aos outros um modelo de fidelidade tão perfeito que aos poucos todos começam a acreditar em sua história. E, de tanto acreditarem, até a traidora passa a crer na imagem pelo marido idealizada. Como que para fazer jus a tão boa fama, ela torna-se, de fato, uma mulher fiel, voltando para o marido, com quem é feliz para sempre. O enredo insólito, nesse conto talvez por isso intitulado Desenredo, articula-se às inovações realizadas pelo autor. Acreditamos que a exploração de novas estruturas lingüísticas efetuada por Rosa funcione como eixo fundamental do conto, sugerindo e indiciando o desenrolar dos acontecimentos na narrativa.
Um primeiro aspecto a ser destacado refere-se à presença recorrente de provérbios populares e máximas. Tais aforismos têm, a nosso ver, uma dupla função: a de apresentar Jó Joaquim como um homem humilde, do povo, o que se confirma com a sua caracterização, e a de atuar como indício do enredo. O fato de Jó Joaquim preocupar-se com a imagem da mulher perante os habitantes do lugar acentua o seu provincianismo, marca também do narrador, que aparece na introdução do conto a narrar a história a ouvintes, como se de um causo se tratasse. A oralidade, bem como a exploração de um tema do cotidiano, confere ao conto um caráter popular, intensificado pelas assertivas que mapeiam os momentos-chave da trama. A primeira delas, presente na apresentação de Jó Joaquim, prenuncia a mudança trazida por uma mulher na vida do protagonista, antes respeitado:
– Jó Joaquim (...) era quieto, respeitado, bom
como o cheiro de cerveja. (...) Com elas quem
pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer.[1]
Após o encanto mútuo, Jó Joaquim e a amante começam a encontrar-se furtivamente. Aguardando um momento propício, o protagonista deixa-se levar pelo amor, iludido, sonhador, como mostra o narrador com outro de seus aforismos:
(...) Então ao rigor geral os dois se
sujeitaram, conforme o clandestino
amor em sua forma local, conforme
o mundo é mundo. Todo abismo é
navegável a barquinhos de papel.[2]
A reviravolta na trama é antecipada pela instância narrante, que prenuncia a tragédia a ser narrada:
Até que-deu-se o desmastreio.
O trágico não vem a conta-gotas.
Apanhara o marido a mulher:
com outro, um terceiro... Sem
mais cá nem mais lá, mediante
revólver, assustou-a e matou-o
Diz-se também, que de leve a
ferira, leviano modo." [3]
A passagem acima, além da assertiva indicada, traz ainda marcas de oralidade no discurso – “sem mais cá nem mais lá” – e o inconfundível “diz-se”, presente nos populares disse-me-disse.
A narrativa prossegue, e vemos Jó Joaquim afastado da amante, refazendo-se da decepção. Entretanto, como é de desenredo que se trata, o marido morre, permitindo o reencontro dos amantes:
Enquanto ora, as coisas amaduravam.
Todo fim é impossível? Azarado
fugitivo, e como à Providência praz,
o marido faleceu (...).O tempo é engenhoso.[4]
A máxima do narrador, claramente irônica, sugere os desdobramentos que a morte do marido trará à história. Em termos narrativos, trata-se de uma função, na medida em que temos um acontecimento crucial para o desenrolar da trama.
Além dos provérbios citados de forma literal pelo narrador, há outros a nosso ver ainda mais significativos, que aparecem modificados, alegorizando a modificação da situação apresentada. Assim, mais do que simplesmente reproduzir expressões da fala popular, o narrador modifica tais expressões, imprimindo-lhes sua marca pessoal e adaptando-as ao contexto da narrativa. A máxima “depois da tempestade vem sempre a bonança” é aqui transformada em “a bonança nada tem a ver com a tempestade”, numa sugestão de que, após tantas desventuras, Jó Joaquim ainda não encontrará a paz:
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, progressivo, jeitosão afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. (...) Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira.[5]
Outra expressão adaptada pelo narrador está presente na passagem abaixo, momento em que Jó Joaquim é informado da viuvez da amada:
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato,
dolorido, mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou (...). Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se.[6]
Ao subverter o conhecido “num abrir e fechar de olhos”, o narrador simultaneamente demonstra a eternidade do amor do protagonista, que jamais se fecharia às palavras da amada, e sugere a credulidade de Jó Joaquim, que confiava nas doces palavras da mulher.
Os jargões e termos técnicos também perpassam a narrativa, relacionando palavras de um mesmo campo semântico ao enredo do conto. Há, por exemplo, diversas referências a embarcações quando o narrador fala da paixão de Jó Joaquim. Tais referências atuam como metáforas da trama retratada. Ao comentar a atração recíproca entre Jó Joaquim e a amada, diz o narrador:
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento.[7]
A comparação do amor com a nau tangida a vela e vento sugere, simultaneamente, uma relação movida a paixão (a vela) e que vagueia à deriva (ao vento), oscilando de acordo com os acontecimentos.
Outra imagem ligada à navegação é a dos barquinhos de papel. A fragilidade e a inocência dos sonhos do protagonista são habilmente metaforizadas nos singelos barquinhos, acentuando a pequenez humana diante dos indecifráveis desígnios da vida:
(...) O marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo.
Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. [8]
O campo semântico das embarcações / navegações é ainda vislumbrado na referência a Ulysses, célebre herói da Odisséia que, entre tantas outras peripécias, amarrou-se à proa do navio para não sucumbir ao melodioso e traiçoeiro canto das sereias. O Ulysses mitológico encontrou, portanto, uma saída contra a tentação feminina simbolizada pelas sereias, o que não parece ocorrer com Jó Joaquim, levando o narrador a citar a sabedoria do navegante ancestral:
(...) Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver
com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulysses,
que começou por se fazer de louco. [9]
Entretanto, se por um lado pode-se ver nas palavras do narrador uma crítica ao comportamento crédulo e apaixonado do protagonista, por outro pode haver uma defesa de Jó Joaquim por parte da instância narrante. Afinal, se a sabedoria de Ulysses foi a de se fingir de louco para não ter de ir à guerra, a tentativa de redimir a imagem da esposa efetuada por Jó Joaquim, apesar de parecer uma total insanidade, no final revela-se sábia e bem-sucedida. O protagonista embarca em seu sonho, e com ele chega ao local desejado.
Ainda com relação aos termos técnicos, várias são as palavras ou expressões ligadas à lei e ao Direito, como se pode perceber nas passagens abaixo:
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo
desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; Chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. [10]
De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. (...) Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. [11]
Repare-se que, apesar de a maioria dos termos grifados possuir uma relação semântica com crime, não é à adúltera que eles se referem. O abuso no ato de usufruir, ou abusufruto, neologismo rosiano que sugere o prazer desfrutado pelos amantes, aparece como um delito do protagonista, instaurando uma espécie de contradição: o usufruto caracteriza o direito de se aproveitar alguma coisa, enquanto o termo abuso marca o excesso dessa prerrogativa. As delícias experimentadas nos encontros superavam, portanto, os limites estabelecidos, numa transgressão já expressa pelo caráter adulterino da relação. Já os termos criminoso e reincidente se referem explicitamente a Jó, traduzindo a imagem de que o grande erro fora dele, ao confiar novamente na mulher. O termo decúbito dorsal, normalmente utilizado para indicar a posição em que um corpo fora encontrado, coloca o protagonista na condição de vítima, ao mesmo tempo em que denuncia a sua prostração após a constatação da infidelidade da amada.
A partir do momento em que começa a sua cruzada visando a redimir a mulher, os termos vão se aproximando mais do aspecto criminal. Para livrá-la da calúnia, ele não hesita em modificar testemunhos e evidências, alterando completamente a “cena do crime”.
A relação do enredo com as estruturas morfológico-sintáticas presentes no conto é ainda vislumbrada a partir de um jogo com os parônimos mas e mais, cada um deles constituindo um parágrafo.
O primeiro parágrafo formado apenas pela conjunção adversativa surge logo após a notícia do casamento do protagonista, num prenúncio das adversidades trazidas pela união:
(...) Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim,
para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.[12]
Em outro parágrafo, desta vez sintetizado no advérbio de intensidade, uma sugestão de que há muitas coisas ainda por contar nessa história:
(...) Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. (...) Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.[13]
O próprio jogo fônico-semântico entre mas e mais ilustra o desenvolvimento da trama: primeiro, há a reviravolta; depois, surge algo a mais, que permitirá a transformação, volvendo o mero enredo em desenredo.
Os neologismos detectados na obra também dialogam com ela, possuindo uma função na narrativa. Um deles indica a situação de Jó Joaquim durante o afastamento da amada:
(...) Jó Joaquim, em seu franciscanato,
dolorido, mas já medicado.[14]
O termo franciscanato utilizado na referência à vida do protagonista enfatiza o seu celibato, seu estoicismo. A renúncia aos prazeres, exigida de qualquer monge, aliada ao voto de pobreza típico dos franciscanos, acentua a abstinência de Jó Joaquim, penitente do amor. A existência monástica que o personagem levava até então contrasta com a devassidão da amada, e significativamente a referência ao franciscanato de Jó Joaquim é imediatamente anterior ao mas, indicando a mudança por vir.
Outro neologismo percebido em Desenredo é o termo ufanático, usado para caracterizar o protagonista em sua empresa:
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar e qualquer causa se refuta.[15]
A palavra em questão, cruzamento de ufanista com fanático, sintetiza de forma primorosa a paixão de Jó pela amada. Dotado do tom exagerado que marca os ufanistas e da admiração exaltada do apaixonado que comete excessos, Jó Joaquim revela-se um verdadeiro ufanático, numa sugestão do amor quase obsessivo que manifesta. É movido por essa paixão desmedida que ele decide transformar sua história de amor.
Um aspecto que merece ser destacado refere-se à onomástica, uma vez que o nome dos personagens completa a sua caracterização. O protagonista, que tem como primeiro nome Jó, remete ao homônimo bíblico conhecido por sua paciência e resignação. Submetido às piores provações, manteve-se fiel a Deus. O fato de o personagem possuir o mesmo nome do mártir bíblico funciona como indício de todo o sofrimento que experimentará ao longo da história, bem como a sua incontestável fidelidade.
O nome da amada de Jó Joaquim, intencionalmente omitido até aqui, é também extremamente sugestivo. No início do conto, o narrador refere-se a ela, sem deixar claro qual é, de fato, o seu nome:
– Jó Joaquim (...) era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. (...) Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.[16]
A indefinição do narrador traduz a incerteza quanto à identidade da personagem e, por extensão, quanto ao seu caráter. A inconstância da amada de Jó Joaquim é metonimizada na inconstância de seu nome, que parece se modificar com a mesma rapidez com que ela troca de parceiro. Chevalier, ao analisar a simbologia do nome, destaca a sua importância no processo de criação e de construção da identidade:
(...) O nome de uma coisa é o som produzido pela ação das forças moventes que o constituem. Por isso, a pronunciação do nome é efetivamente criadora ou apresentadora da coisa. Nome e forma são a essência e a substância da manifestação individual: esta é determinada por elas. [17]
Se os nomes, como afirma Chevalier, refletem a essência do objeto denominado, a dúvida entre os vários nomes traduz a incerteza quanto à essência da personagem. Surpreendentemente, o nome que aparece ao final da narrativa não é nenhum dos três anteriormente mencionados, como se verifica a seguir:
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. [18]
O fato de Vilíria surgir com um nome outro, distinto dos referidos pelo narrador, sugere a transformação nela operada pelos esforços de Jó Joaquim. É essa quarta mulher, diferente de todas as anteriores, que trará a felicidade ao protagonista. Seu último nome carrega ainda uma polissemia condizente com sua história: apesar da aparente oposição entre o vil e o lírio, maldade e pureza aliam-se nessa mulher multifacetada. A própria imagem do lírio é repleta de ambivalências, sendo ao mesmo tempo ícone de pureza e de pecado, sendo inclusive uma das marcas das prostitutas medievais. Semelhante dualismo é observando por Chevalier, que destaca os signos positivos e negativos associados ao lírio:
(...) O lírio do vale é relacionado com a árvore da vida plantada no Paraíso (...). É ele que restitui a vida pura,
promessa de imortalidade e salvação. [19]
Apesar da perspectiva de salvação metaforizada pelo lírio, este apresenta uma relação com a tentação, com o pecado, com o amor proibido:
O lírio é sinônimo de brancura e, por conseguinte, de pureza, inocência, virgindade. (...) Entretanto, (...) presta-se a uma interpretação completamente diferente.
Seria o final da metamorfose de um favorito de Apolo (...), e evocaria, sob esse aspecto, amores proibidos (...); o lírio poderia nesse sentido simbolizar a tentação ou a porta dos Infernos. [20]
A referência a amores proibidos é significativa, em função do adultério representado pela personagem. A interdição social incita à transgressão, e esse aspecto sedutor, marca de Vilíria, constitui mais uma das simbologias do lírio:
(...) Huysmans denuncia (...) seus eflúvios pecaminosos: seu perfume é bem o contrário de um perfume casto; é uma mistura de mel e pimenta, alguma coisa de acre e adocicado, de fraco e de forte (...), perfumes que cantam os arrebatamentos do espírito e dos sentidos (...). [21]
Observe-se que Chevalier alude a um aroma de mel e pimenta para definir a faceta afrodisíaca do lírio. Comparemos tal imagem com a caracterização de Vilíria feita pelo narrador:
Antes bonita, olhos de viva mosca,
morena mel e pão. Aliás, casada. [22]
Além da proibição explícita – o fato de ela ser casada -, o lado tentador da personagem evoca o arrebatamento simbolizado pelo lírio, como demonstrara Chevalier. Vilíria é marcada pela dualidade, dualidade essa que lhe permite a transformação observada ao final da história. Não por acaso, outro aspecto presente no lírio refere-se a esse transitar pelas diferentes possibilidades de existência:
Trata-se então de um símbolo de realização
das possibilidades antitéticas do ser. [23]
Esse potencial para a mudança entrevisto no simbolismo do lírio reflete o poder de cada ser humano de transformar o seu destino, atitude tomada por Jó Joaquim. Este, ao reescrever a história da mulher, modifica-a, tornando-se narrador em vez de mero personagem. Ao imprimir seu desejo à narrativa, torna-se partícipe desse processo, mudando-lhe o final e gerando o desenredo aludido pelo título. O enredo corriqueiro e estereotipado da mulher de mil amantes, de fim trágico e previsível, é então reformulado, transformando-se em feliz desenredo. Com a boa-fé dos otimistas, de tanto acreditar tornou em verdade a mudança de sua história:
(...) Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade – idéia inata. Entregou-se a remir, a redimir a mulher, à conta inteira. (...) Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo.[24]
De tanto criar uma fantasia em que pudesse se refugiar e convencer os outros, Jó Joaquim acaba por criar uma nova realidade. A vida imita a arte, e é a um espetáculo teatral que o narrador compara a atitude do protagonista:
(...) Trouxe à boca-de-cena do mundo, de
caso raso, o que fora tão claro como água suja. [25]
O processo de conversão da mentira em verdade ocorre por meio de uma lógica invertida, por uma investigação às avessas, em que o passado modifica o presente, na arte e na obstinação de Jó Joaquim:
O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. [26]
À medida que embarca quixotescamente em seu propósito, os vestígios do passado maculado vão sendo apagados, dando lugar à verdade transformada:
Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. (...) Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos. [27]
E, mágica-paradoxalmente, o sujeito das infâmias converte-se em objeto, claro e límpido, da criação de Jó Joaquim:
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. [28]
Numa espécie de exorcismo narrativo, Jó retira de Vilíria as máculas do passado para que ela retorne, purificada. Até mesmo o clássico “viveram felizes para sempre” é aqui resgatado, na promessa de felicidade eterna. Transformados pelo ritual da palavra, tornam-se livres e podem ser felizes:
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. [29]
E, o que era apenas ficção do protagonista, sugerido inclusive pelo termo fábula, passa ao estatuto de verdade, sendo perpetuado com todas as formalidades, lavrado como documento de fé pública: “E pôs-se a fábula em ata” (cf., 1967, p.40).
Jó Joaquim ousou desprezar a verdade linear, redesenhando a sua história. Personagem rosiana, ele seguiu os passos de seu criador, inovando, recriando. Guimarães Rosa, que sempre subverteu a linguagem, ousou contrariar o próprio epíteto que identifica os membros da Academia Brasileira de Letras. Sua morte repentina, ocorrida apenas três dias após ironicamente ter se tornado imortal, foi o seu último desenredo.
[1] ROSA, João Guimarães. Tutaméia – Terceiras Estórias. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1967, p.38 (os grifos em
todas as citações são nossos)
[2] Ibidem, p. 38.
[3] Ibidem, p. 38.
[4] Ibidem, p. 39.
[5] Ibidem, p. 40.
[6] Ibidem, p. 39.
[7] Ibidem, p. 38.
[8] Ibidem, p. 38.
[9] Ibidem, p. 40.
[10] Ibidem, p. 38.
[11] Ibidem, p. 39.
[12] Ibidem, p. 39.
[13] Ibidem, p. 39.
[14] Ibidem, p. 39.
[15] Ibidem, p. 40.
[16] Ibidem, p. 38.
[17] CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
1990, p.641.
[18] ROSA, J. (1967), p. 40.
[19] CHEVALIER, J. (1990), p. 553.
[20] Ibidem, p. 553-554.
[21] Ibidem, p. 554.
[22] ROSA, J. (1967), p. 38.
[23] CHEVALIER, J. (1990), p. 554.
[24] ROSA, J. (1967), p.40.
[25] Ibidem, p. 40.
[26] Ibidem, p. 40.
[27] Ibidem, p. 40.
[28] Ibidem, p. 40.
[29] Ibidem, p. 40.