“VIDAS SECAS E A LINGUAGEM DA SEDE”

ELIANE RODRIGUES DA COSTA VIANA

            O objeto deste trabalho  consiste numa abordagem sintático-estilística  de alguns  capítulos do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, através do qual procuraremos mostrar a sede como a grande “tortura” que percebemos em todo o romance, onde o autor transporta os  elementos distintivos  do espaço e dos personagens para a linguagem. Partiremos  da análise das principais características da linguagem apresentada na narrativa como: o falar coloquial e regional dos personagens;  a predominância de orações coordenadas;  as frases e períodos curtos. Identificaremos assim, no desenvolver da narrativa e principalmente na fala dos personagens, a linguagem lacunosa, truncada, seca, retratando a realidade da sede no sertão nordestino.

 São Gonçalo – RJ

14 de junho de 1999

 

INTRODUÇÃO

As incorporações das inovações formais e temáticas do Modernismo ocorreram em dois níveis: um nível específico, no qual elas foram adotadas, alterando essencialmente a fisionomia da obra; e um nível genérico, no qual elas estimulavam a rejeição dos velhos padrões. Graças a isto, no decênio de 1930, o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito não uma transgressão. Na verdade, quase todos os escritores de qualidade acabaram escrevendo como beneficiários da libertação operada pelos modernistas, que acarretava a depuração antioratória da linguagem, com a busca de uma simplificação crescente e dos torneios coloquiais que rompem o tipo anterior de artificialismo.

            É o caso do “romance do nordeste”, considerado naquela altura pela média da opinião como o romance por excelência. A sua voga provém em parte do fato de radicar na linha da ficção regional (embora não “regionalista”, no sentido pitoresco), feita agora com uma liberdade de narração e linguagem antes desconhecida. Mas deriva também do fato de todo país  ter tomado consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua realidade viva pela literatura.

            Os nossos romancistas de 30 preferiram uma visão crítica das relações sociais,  o que daria à obra de Graciliano Ramos  a grandeza severa de um testemunho e de um julgamento. A matriz de cada obra é uma ruptura, desfolhada em cada personagem onde Graciliano via a face angulosa da opressão e da dor.

            O roteiro do autor de Vidas Secas norteou-se por um coerente sentimento de rejeição que adviria do contato com  a natureza ou com o próximo. O que explica a linguagem díspar de Vidas Secas, momentos diversos que só terão em comum  o dissídio entre a consciência  do homem e o labirinto de coisas e fatos em que se perdeu. Em Graciliano o “herói” é sempre um problema:não aceita (entende) o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o isolam, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa máscara a melhor maneira de fixar as tensões sociais como primeiro impulso de todos os comportamentos. Esta, a grande conquista de Graciliano: superar na montagem do protagonista  o estágio no qual seguem caminhos opostos o painel da sociedade e a sondagem moral. Daí parecer precária, a nota de regionalismo que se costuma dar a obras em tudo universais como Vidas Secas. Nela, a  paisagem capta-se menor por descrições miúdas que por uma série de tomadas cortantes; e a natureza interessa só enquanto propõe o momento da realidade hostil a que a personagem responderá como retirante. 

 

Ex;       “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.(...)

            Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.” (RAMOS, 1983, p. 9).

 

            “Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul.(...) Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul.” (RAMOS, 1983, p.117).

  

 

DESENVOLVIMENTO

 

O romance Vidas Secas percorre a trajetória de uma família de retirantes que luta contra a sede-seca, numa narrativa repartida em capítulos autônomos, cada um com sua importância literária e seu valor social.   

            A Sede  de justiça no capítulo Cadeia ; a Sede  inconsciente por novos horizontes em todos os capítulos , principalmente em : Mudança e Fuga; a Sede do saber, esta se fazia tão agigantada que parecia “esquisitice”, no episódio sobre a sabedoria de seu Tomás da bolandeira[1].

Toda esta sede recebe como cenário e contexto o sofrimento no sertão nordestino, ressecado pela falta de chuvas  e ressequido pela falta de educação, justiça social, ... .

Pôde-se  perceber, nos fragmentos escolhidos para exemplo, como a estrutura da linguagem apresentada no romance com a predominância de orações coordenadas, as frases e períodos curtos, o linguajar regional[2]; compôs a retratação da realidade Seca  do sertão nordestino.

A sede de justiça retratada no sofrimento do personagem Fabiano, no  pouco falar (Nas partes sublinhadas do fragmento abaixo, observou-se a simplicidade nas frases curtas, no falar regional - incluindo um ditado popular-) e pela opressão dos que podem mandar: o  soldado amarelo – representando  o governo, a autoridade máxima e distante, impassível. Na simplicidade de entendimento do personagem não existia a possibilidade do Governo (este “ser” afastado mas muito importante) compactuar com as arbitrariedades do soldado, ou mesmo admiti-lo como seu representante.

 

Fragmento do capítulo Cadeia:

 

“_        Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos:

_          Desafasta, bradou o polícia.

            E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.

_          Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?

            Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do vaqueiro.

_          Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente. (...)

Havia  engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso.

            Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam o cipó de boi oferecia consolações:

_          Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.

            Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo?

_          An !

            E por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar.” (RAMOS, 1983, p. 29) 

 

 

           

No desenvolvimento e no desfecho dos capítulos, assim como do romance se observou um movimento circular como o de uma  bolandeira, onde  a história  vivida pelo personagem Fabiano e sua família se inicia e se finaliza num ponto comum, impossibilitando a visão de um horizonte.

 

 

Fragmento  de Mudança:

 

            “A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.

            A fazenda renasceria  _  e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.

            Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira,[3]o aió,[4] a cuia de água e o baú de folha pintada. A  fogueira estalava, o preá chiava em cima das rasas.

            Uma  ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde.” (Ramos, 1983, p. 16)

 

 

Fragmento de Fuga:

 

            “Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba do chapéu, protegiam-lhe os olhos contra a claridade e tremiam.

            Os braços penderam, desanimados.

            _ Acabou-se.” (RAMOS,  1983, p. 117 e118)

 

            A imposição social à miséria  se torna natural,  o personagem é trabalhado de maneira  tal, que  expresse o conformismo, a falta de acesso a educação e ao saber. Percebeu-se, no parágrafo sublinhado, períodos compostos por coordenação, as orações são sintaticamente equivalentes,  estas não desempenham função sintática  em outra nem apresenta  um de seus termos na forma de oração. A conexão entre as orações é feita por uma pausa representada na escrita por vírgulas ou ainda  pelas conjunções coordenadas aditiva e  e a adversativa  mas.

 

 

Fragmentos do capítulo Fabiano,:

 

 

            Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência tranqüila e marchou para casa. Chegou-se à beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigosd haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.”

 

            “Fabiano   dava-se bem com  a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.

            _ Está aí.

            Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.

            Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: _ “seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão puxado.

            Certamente aquela sabedoria inspirava respeito.(...)

            Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice, Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.” (RAMOS, 1983, p. 21)

             

 

            Fabiano  costumava utilizar nas relações com as pessoas a mesma línguagem com a qual se dirigia aos animais, cantada, monossilábica e gutural.

 

 

Falas de Fabiano:

 

            “_ Hum! Hum!   - o personagem emite esses sons procurando chamar a atenção dos filhos como se fosse falar algo, mas termina aí.

            _Bem! Bem!

            _An !  - Fabiano reclamando da prisão injusta.

            _Ecô! Ecô! – Fabiano chamando a cachorra Baleia.”   (RAMOS, 1983, p. 21, 31,87)

  

 

CONCLUSÃO

 

 

            O coloquialismo associado ao regionalismo no texto pode ser observado no transcorrer de toda a narrativa, caracterizando a maneira simples, as vezes rude, de se expressar e a realidade miserável e de isolamento a qual é submetido o sertanejo

 

.           Quando se faz referência ao aspecto universal da obra de Graciliano, pode-se lembrar  quantos outros “Fabianos” existem isolados nas diferenças  sociais impostas por motivos diversos, e contra as quais esses tantos outros “personagens reais” freqüentemente não possuem armas para lutar  em defesa de sua dignidade, contra a sede que produz o ressecamento do Ser.

  

 

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

 

 

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura

       Brasileira, 34ª ed., São Paulo, Cultrix, 1996.

 

____________  Céu, inferno – ensaios de crítica literária

       e ideológica, São Paulo, Ática, 1988.

 

CÂNDIDO, Antônio. A educação pelo norte & outros

       ensaios, São Paulo, Ática. 1987.

 

COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem: a

       obra literária e a expressão lingüística, 5ª ed.

       reform., Petrópolis, RJ, Vozes, 1994.

 

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática

       do Português Contemporâneo, Rio de Janeiro, Nova

       fronteira, 1985.

 

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo

       Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed.,

       33ª impressão, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1986.

 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas, 51ª ed., São Paulo,

        Recorde, 1983.

 

Comunicações  Coordenadas – grupo 04,                                                     III Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos.

 

 

UERJ

1999 

 

 



[1] Bolandeira- Bras.- N. e N.E. grande roda, puxada por animais, que move o rodetede ralar mandioca. (AURÉLIO, 1986, s.v.)

[2] “A prosa de ficção encaminhada para o realismo bruto, em parte, de Graciliano Ramos, beneficiou-se amplamente da “descida” a linguagem oral, aos brasileirismos e regionalismos léxicos e sintáticos, que a prosa modernista tinha preparado.” (COELHO, 1993, p. 246)

[3] Pederneira- pedra muito dura, que produz faíscas, quando ferida com um fragmento de aço.(AURÉLIO, 1986, s.v.)  

[4] Aió – bolsa de caça feita de fibras de caroá. (AURÉLIO, 1986, s.v.)