Na intimidade de um estudante solitário
Matildes
Demetrio dos Santos
Universidade
Federal de Viçosa
Há em algumas das minhas cartas a ti uma história inteira de dois anos, uma lenda, dolorosa mas verdadeira, muito verdadeira no seu pungir de ferro, como uma autopsia de sofrimentos.[1]
Ao ler a correspondência de Álvares de Azevedo, o leitor surpreende um missivista íntimo, misterioso e criativo. Nele se reconhece a pretensão do herói romântico em parecer radicalmente diferente, um ser vulnerável às incertezas da vida, melancólico frente à própria existência . O gosto pelo isolamento se manifesta na escolha dos destinatários: sua mãe, a irmã, Maria Luísa, por quem nutria um amor imenso, e Luís Nunes, amigo e confidente.[2]
O epistolário publicado abrange as cartas do tempo de infância, entre 1840 e 1844, enquanto o poeta era estudante do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. À luz desse contexto, sobrevem a imagem de um menino exemplar, de espírito meigo, com grande aptidão para os estudos e atento à vigilância dos pais e professores. São mensagens familiares, bilhetes, redigidos em português e também em francês e inglês, reproduzindo fatos da vida cotidiana e escolar. É a visão de um menino, que domina pouco a língua estrangeira mas que se esforça para demonstrar seus conhecimentos intelectuais e reafirmar seu afeto e saudade pelos pais e irmãos distantes.
Logo em seguida, as cartas registram a sua permanência em São Paulo onde vai estudar Direito. Curiosamente, longe de demonstrar satisfação no convívio com outros estudantes, Azevedo se mostra inadequado para lidar com o prosaísmo do cotidiano universitário, se retrai voluntariamente, criando à sua volta um círculo de isolamento que lhe propiciava tempo para escrever mas que lhe confirma a fama de um artista singular. Na carta de vinte de julho de 1848, ele alude à própria atitude como se tratasse de uma pose estudada com a intenção de resguardar sua obra da ingerência de terceiros: “Sou homem de reações, como sabes: dei agora em não mostrar versos a ninguém; e aqui em São Paulo não há alma viva nem morta que lesse versos meus.” [3] Por outro lado, Álvares de Azevedo mostrava-se bastante irritado com o excesso de escritores e poetas entre os seus pares, razão pela qual não gostava de expor seus poemas.
De acordo com o histórico de Emílio Zaluar, nas Peregrinações pela província de São Paulo, [4] a Academia de Direito e o Palácio do Governo demarcavam o centro nervoso da cidade nos meados do século XIX. De um lado as fronteiras impostas pelo Governo Estatal, de outro , rejeitando as convenções do mundo oficial, os jovens acadêmicos procurando viver as diabruras e irregularidades que conheciam dos poetas e romancistas europeus. Desse modo, com a intenção de sacudir o marasmo do meio universitário, promoviam ruidosas reuniões, fundavam Sociedades, planejavam bailes e espetáculos teatrais. Era comum o confronto entre os bacharéis e a milícia. Na carta de 26 de maio de 1848, Álvares de Azevedo critica o Chefe de Polícia que jamais recrutava nem prendia os cacetistas[5] quando esses eram ricos e tinham sobrenome importante, como o Gomide, um cacetista de profissão, que andava armado e era reconhecido por todos. O poeta, todavia, mantinha-se distante desses jogos e brincadeiras perigosas mas indignado denunciava os desmandos que reinavam na justiça local que deixava um malfeitor livre para fazer o que bem queria: “Ora, valha-nos Deus! Que terra esta onde a polícia é feita por Gomides!”
Nos núcleos do bacharelismo paulista havia também o culto a Byron que levava os estudantes a exagerar e a fantasiar suas aventuras noturnas pelas ruas e bares da cidade. A correspondência, entretanto, não registra nenhum depoimento que confirme a versão de que Álvares de Azevedo fosse um byroniano à altura do mito criado em torno de sua figura. Ligado a esse tema, existe uma carta em que menciona que estava na moda tirar fotografias coloridas e, para aproveitar a ocasião, ele tirou uma foto em que aparece de preto com uma capa da mesma cor “à Byron”, que dá de presente ao Luís. Após a sua morte, essa imagem se vulgarizou passando a ser o retrato oficial do poeta. Assim, ele conta o fato que possivelmente originou a lenda de que não só se vestia como também agia como o mítico poeta inglês:
Não há estudante que se tenha retratado ou não pretenda retratar-se. Além disso é barato _ por 5$000 tem-se um retrato colorido em um quadro singelo _ sendo em chapa pequena. [...] O meu primeiro está muito parecido, segundo dizem _ até acho muito bonito _ e está à Byron _ de capa e tão romântico achou-se isto, que tudo agora quer tirar retrato de capa _ até tio José que aproveitou-se ( plagiato! ) da minha idéia no retrato que vai.
AZEVEDO, A (1942), p. 462-463
Desligado do meio acadêmico e estranhando o ambiente social passa, através das cartas, a desenvolver uma linguagem de forte poder persuasivo, intimamente comprometida com a negatividade existente na sua personalidade de poeta romântico, predisposto à melancolia e ao tédio. Muitas vezes ao escrever, ele se evade no tempo e no espaço. Não se trata de observar diretamente um lugar mas de criar um cenário escolhendo determinados elementos em função de seu valor sentimental ,para produzir irrealidades extraídas de uma alma em conflito. Em 20 de julho de 1848, ao retornar de um passeio a Santos, ele oferece ao amigo Luís a visão de São Paulo como uma cidade espectral, imersa num jogo nebuloso de luz e sombra. O narrador, espectador da cena, busca plasticamente na natureza cores e tonalidades para representarem a noite como misteriosa, perigosa e envolvente, como costuma ser nos romances góticos que tanto fascinavam os românticos. Contrastando com a fantasmagórica atmosfera natural surge a luz artificial dos lampiões a gás, formando um círculo de fogo que aguça a sensação de perigoso mistério. A impressão visual se conjuga com a percepção auditiva para produzir imagens assustadoras. O leve e sibilante barulho do vento e o canto de uma ave solitária são detalhes que compõem o restante do quadro:
Era noite quando voltávamos. O céu estava nublado e escuro. Só se via dum amarelo avermelhado a estrada, até uns vinte passos, perder-se no escuro das matas negras: parecia uma ponte em um lago de tinta. E além, lá ao longe, se levantava a cidade negra; e os lampiões, abalados pela ventania[...]. E do outro lado, à minha esquerda, uma barra vermelha se estendia, formando do lado do poente um segmento de círculo no horizonte e semelhava um reflexo de um incêndio imenso que alastrasse um lado do globo.
Eu parei o cavalo e admirei! [...] Parei e admirei esse espetáculo belo! Essas estrelas... E a brisa balsâmica embatia e sacudia, estremecendo as capoeiras e silvava nas árvores, nos oiteiros; e sozinha , por entre a mudez da noite que se aproximava, uma ave desconhecida descantava o seu hino de adeus ao dia que morrera nas trevas.
Idem, p. 493
Naturalmente, essa São Paulo, produto do pensamento, transmigra da correspondência para o espaço da ficção. Antônio Cândido lembra a descrição da vista noturna de São Paulo que aparece nessa carta e que, pouco tempo depois, ocuparia a cena inicial de Macário, em que a ação decorre à noite. Ambas as paisagens incluem naturalmente a imagem do produtor de sonhos que se imobiliza na contemplação do que vê como que mergulhado num mundo surreal, habitado por sombras e fantasmas. Ao comparar os dois textos, Broca Brito reconhece que o epistolar “é uma das melhores páginas de prosa do poeta, superior mesmo à transposição que dela fez no drama teatral”.[6]
A insistência de São Paulo como uma cidade abstrata, receptiva a outras dimensões, permaneceu na literatura brasileira, surgindo na obra de outros poetas em imagens de estranhamento. O arlequim de Paulicéia desvairada, prossegue no mesmo tom, evocando o “cinzento das ruas arrepiadas” da capital paulista, a “escuridão dum meio-dia de inverno”, a garoa “cor de cinza, muito triste, como um tristemente longo...” [7] Anos depois, frente à metrópole arrogante, um sentimento difuso emerge da alma de um imigrante que vinha “ de outro sonho feliz de cidade”, Caetano Veloso, que confessa: “Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto mau gosto/ Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”.[8]
Na correspondência de Álvares de Azevedo, a São Paulo do século XIX encarna o paradoxo de cidade-fantasma, miragem assustadora, cuja grandeza se dissipa no ar sombrio. Uma cidade que convidava mais ao spleen do que ao burburinho da vida acadêmica. Com ironia, Álvares de Azevedo denunciava a demora do Correio na entrega das cartas, as calçadas esburacadas que “quebravam os pés”, as ruas mal iluminadas que o obrigavam a “ficar em casa, por não ter sequer onde ir, e não achar prazer em andar correndo ruas, achando-se na maior insipidez possível, ansioso de deixar esta vida tediosa da mal ladrilhada S.Paulo”.[9] Aos seus olhos, o velho e o estagnado contaminavam o espaço público impedindo-o de viver com satisfação.
Com efeito, o passatempo dos jovens românticos limitava-se aos espaços fechados. Nas cartas do jovem estudante só há referência aos bailes e saraus domingueiros. Pela insistência com que são descritos e mencionados nas cartas, os bailes constituíam o eixo da vida social e sentimental do século passado e o estudante sentia-se aborrecido naquelas festas que lhe pareciam sempre iguais. Mesmo assim sua visão aguçada se detinha na descrição daqueles acontecimentos sociais, oferecendo uma interessante documentação do ambiente e do gosto burguês da época. Ele centra nitidamente as salas sempre bem iluminadas, o excesso de flores decorando o ambiente, o ar embalsamado de mil cheiros, a música alegre e sonora que lhe pareciam um incentivo velado à descontração e ao flerte. Indiferente àquelas pessoas elegantes ou pretensamente elegantes, ele flanava pelo ambiente. Sentia-se deslocado, não dançava apesar de estar entre pessoas conhecidas. Nas grandes damas, só reparava o excesso de jóias e flores. Sob o efeito das luzes artificiais, o narrador torna-se mais realista e menos romântico, um espectador sem afeto, irônico, cumprindo a promessa de satisfazer a curiosidade materna, escrevendo uma carta extraordinária em particularizar a moda que freqüentava aqueles salões. Ele é mestre em detectar o talhe dos vestidos, a textura da fazenda, as tonalidades preferidas, o requinte das jóias. O bom humor e a galhofa temperam os comentários:
No dia 11 aqui houve o baile Acadêmico[...]. Fui ao baile _ porém não dancei nem conversei com Madama nenhuma, porém achei e vi.
A Condessa de Iguaçu e a Belisária eram as rainhas do Baile. [...] A Bella tinha o vestido cinzento que lhe fazia uma cinturinha de Sílfide. _ No colo numa volta só lhe corria o colar de finíssimas, digo grossíssimas pérolas. _ Não havia dizer _ as pérolas aí eram o enfeite ou o enfeitado. A Belisária não vão lá entender que estava mal vestida [...]. O seu vestido era de finíssima fazenda branca toda bordada de flores de seda verde _ era ela a rainha indiscutível , a senhora soberana, a sultana soberba ante a qual as outras todas eram múmias, odaliscas, sombras de uma beleza sem par, era a rosa sobressaindo entre os lírios e violetas.
Por falar em sobrecarregada de pedrarias _ lá estava a Sra. Marquesa com todo o seu luxo de brilhantes[...]. A Loloca e a Mariquinha estavam lá também muito bonitas. Mas aquelas duas moças meteram-se a andar com a Bella, donde se deduz o eclipse imenso tanto em beleza, como em riqueza de vestuário.
Idem, p.500-501
Os ângulos focalizados pelo missivista rivalizam-se em luxo e estilo, porém não contrastam entre si, pois os habituais freqüentadores desses bailes pertenciam à alta burguesia paulistana. Assim, brilhar e mostrar opulência era natural e moderno tanto que Álvares de Azevedo, moço bem nascido, apesar da versão finamente irônica mostra-se bem humorado quanto ao requinte excessivo e respeitador quanto às regras sociais vigentes, assistindo todo o desfile em silêncio.
Por outro lado, ciente da superficialidade que imperava naquele ambiente mundano, percebia o jogo de sedução e malícia que existia na movimentação proposital das damas ricamente trajadas e na troca aparentemente inocente dos raminhos de flores que iam do vestido de uma senhora à lapela de um cavaleiro com a sutileza volúvel de um vôo de beija-flor. O decoro familiar exigia respeito e, nesse caso, só o observador mais atento poderia servir como testemunha. A carta que relembra o baile Acadêmico faz a cobertura com grande imaginação: “ Se Vmcê. conhecesse a gente da terra poderia contar-lhe que namoros houveram ou não, dizer-lhe que o ramo que a Sra. D... trazia na cintura ou no colo tinha-lhe sido dado pelo Sr. A... ou B... contar-lhe que flores foram ganhas ou furtadas, etc .[10] Naturalmente, o inconformismo juvenil do poeta mantinha-o à margem desses rituais.
Com certo desencanto, Azevedo expressa o que pensa e o que sente. Sua vida íntima corre na contramão da tensão romântica. Não há desvarios byronianos, extravagâncias noturnas ou desatinos amorosos. Para as mulheres, ele reserva o seu mais selvagem desrespeito. Na verdade, tinha uma opinião grosseira sobre as moças que, por ventura, cruzassem seu caminho: eram todas umas bestas, que só abriam a boca para dizer asneiras. Em relação à Belisária, a estátua mais perfeita em tudo, costumava dizer que era uma estúpida que dizia: _ Nós não sabe dançá prôque, etc.[11] O espaço reservado à descrição das mulheres ou a simples menção de seus hábitos e atitudes vêm impregnados de humor e sarcasmo. Há mesmo um certo distanciamento do remetente em relação ao foco observado que se traduz em um discurso preconceituoso, carregado de ironias, que não perdoa nem mesma a figura da própria irmã:
Diga a Nhanhã que eu pretendia escrever-lhe, mas que como é tão preguiçosa de escrever, talvez seja também de ler e como tem tantos trabalhos, v.g. ir ao baile, ao teatro, pentear-se, etc., coisas que reconheço essenciais e trabalhosíssimas pode ser que não tivesse tempo para ler a carta.. Se a desculpa é má, será sempre melhor do que qualquer pretexto que ela tenha de mandar-me. Contudo dê-lhe um abraço que lhe manda o seu irmão e diga-lhe que não se esqueça dele.
Idem, p. 465
Por outro lado, compreende-se que há uma ânsia de amar, que se traduz na nostalgia de encontrar uma mulher ideal, ao mesmo tempo, sensual e ardente. Em suas palavras, uma Vênus lasciva que lhe concedesse uma hora _ uma só _ de gozo ou, uma forma alva de loura angelical, de olhar límpido e transparente como o azul do mar. Esse tipo de mulher fatal, misto de anjo e demônio, transita com igual desenvoltura das cartas para a poesia e vice-versa, deixando sempre o sentimento de incompletude, de desejo insatisfeito.
Algumas vezes, a situação é real e surge a oportunidade de concretizar o esperado, ainda assim, a atitude é de contemplação e distanciamento. Na carta de 11 de maio de 1848, Azevedo disserta sobre a beleza de duas jovens que o atraiam muito. Por discrição, talvez, ele as identifica por N. M... e D. Q... A aparência física de N. reproduz o conceito do belo perfeito e inatingível cantado pelos trovadores medievais. De longe, a mulher é a reencarnação maravilhosa de um anjo. A visão de D., ao contrário, é delicada, frágil e pálida. Sua debilidade física é tamanha que, segundo ele, é mulher para se colocar dentro de uma redoma de vidro e adorar-se de joelhos.
Na segunda descrição, a sensibilidade romântica azevediana descobria o belo na palidez e na fragilidade doentias. Postas lado a lado, N. e D. personificam, respectivamente, a beleza perfeita e a contaminada, o belo esplendoroso e o belo triste. Locuções engenhosas, que emergem de uma imaginação prodigiosa e, lá permanecem, pois o homem se evade voluntariamente, sem somar uma experiência mais concreta além daquela inspirada pelo sentido da visão. Categórico, ele concluí de modo platônico mas mordaz: “Contudo, Luís, não sinto que eu ame nenhuma delas. A N... pareceu-me anjo num momento de fascinação. A D... parece uma santa; e não poderia eu sentir amor por ela: as santas adora-se, mas não ama-se.”[12]
Nessa confissão pessoal e essencialmente subjetiva, o poeta perturba-se e mergulha nas profundezas da insatisfação para constatar que se sente arrastado pelos caprichos da imaginação. Seu tédio provém de uma ilusão irresistível que o arrasta perigosamente para o abismo de si mesmo. Ele reflete sobre suas perturbadas fantasias, com tremenda lucidez:
São sonhos _ sonhos Luís! É loucura abrir tanto as asas de anjo do coração a essas brisas enlevadas que, à tarde, vêm tão sussurrantes de enleio, tão impregnadas de aromas de beijos! É loucura! E contudo, quando o homem só vive deles, quando aí todas as portas fecharam-se ao enjeitado, porque não ir bater só e de noite ao palácio da fada das imaginações? (Idem, p.514)
Consciente de sua incapacidade para conciliar realidade e fantasia, Álvares de Azevedo opta por viver um exílio voluntário, confinado entre quatro paredes, concentrado em si mesmo. Completamente só, não desenvolvia afinidades com as pessoas à sua volta, preferia a inércia, deixando-se ficar num marasmo total como se o tempo não passasse: “Todos aqui me estranham este ano taciturno da vida e o peso da distração que me assombra. O meu viver solitário, fechado só no meu quarto, o mais das vezes lendo sem ler, escrevendo sem ver o que escrevo, cismando sem saber o que cismo”. [13]
Na verdade, na vida como na literatura, Álvares de Azevedo agia como um ultra- romântico, perdido em angústias e cultivando o sofrimento. A situação de isolamento registrada na carta lembra o Eu meditativo de “Idéias Íntimas”. [14] Ambos estranham o mundo exterior e preferem a solidão do quarto para viajarem em pensamento lentamente. Um e outro esmiuçam o próprio cotidiano, divagam. O resultado é um drama personalíssimo, onde pequenos movimentos compõem imagens de uma vida que teima em não ser vivida. O missivista passa para o destinatário a imagem de um ser predestinado a um infortúnio que, sem saber por que, estava disposto a cumprir: “é uma sina minha que eu amasse muito e ninguém me amasse.”
Esse mal-estar e essa solidão que aparecem nessas linhas chegam à literatura na construção de personagens solitários e infelizes no amor. Macário e a Noite na taverna exemplificam uma imaginação exasperadamente dramática e ilustram uma visão da alma e do mundo do poeta e ambos trazem a idéia do destino como fatalidade implacável.
Mais grave ainda, confessava a sua responsabilidade pelos seus escritos, porque pressentia que: “se algum dia [eu] morresse moço ainda, na [minha] febre de ambiciosas esperanças,” suas cartas seriam testemunhas de sua história pessoal. Linha após linha, Álvares de Azevedo compõe o seu perfil tão de acordo com os heróis dos romances que, ironicamente, nutrem apenas ceticismo e não escondem sua insatisfação por estarem num mundo que não lhe diz absolutamente nada. Até o reconhecimento como artista era encarado com profundo desprezo: “Glórias da terra!... os aplausos da turba! Enfezados louros, o mais das vezes tressuados de sangue, salpicados do lodo do insulto e da baba da inveja.” Infeliz, descrente, melancólico, desencantado, ferino, o jovem se compunha na mais dramática fantasia byroniana: “Chamam-me frio, julgam que o egoísmo e o orgulho m’o gelara inteiro... o néctar , que se chama a alma, daquela ânfora maldita que se chama vida!”[15]
Par a par com os momentos de introspecção o missivista registra uma rotina de leitura e estudos intensos. Escrevia poemas e, quando os considerava bem feitos, enviava-os para que fossem lidos pela mãe ou pelo Luís. Uma vez ou outra, enumerava os afazeres do mês inteiro, como na carta de primeiro de março de 1950, em que conta a escrita de dois poemas e um romance ( o Livro de Fra-Gondicário), uma análise de Jacques Rolla de Musset e uns estudos literários sobre a marcha simultânea da civilização e poesia em Portugal.[16]
Não é de estranhar, portanto, que após esses momentos de intensa agitação intelectual sobreviesse um marasmo físico e mental que o transformava em um ser carente, vulnerável, dependente. Quando isso acontecia, o remetente se volta para o Luís, numa demonstração efusiva de carinho, que surpreende pelo tom fervoroso e passional com que se exprime:
Luís, há aí não sei que no meu coração que me diz que talvez tudo esteja findo entre nós. Será uma mentira, uma dessas gotas de fel que se embebem no cérebro como uma loucura? _ ou um pressentimento _ negro embora _ verdadeiro, como o primeiro pio da procela aos prelúdios do vendaval por mar alto?
Tudo talvez esteja findo. Minha amizade, Luís, talvez tenha de viver de novo daquele meu passado de dois anos de saudades. Saudade! Exprime a mágoa da separação, o desejo de tornar a ver-te, talvez um laivo de luz de esperança de porvir mais belo... não, Luís?
Idem, p. 512
Nas palavras de Broca Brito, a amizade era um sentimento forte entre os românticos e cita, como exemplos, as afeições que uniram Rousseau e Bernarden de Saint-Pierre, Goethe e Schiller, Flaubert e Maupassant. Também no Brasil, a amizade exterioriza-se nas cartas que uniam Gonçalves Dias e seu amigo Teófilo, na cordialidade atenciosa de Araújo Porto-Alegre e Gonçalves de Magalhães. Além disso, Brito chama a atenção para o fato de que havia muito de exagero, de pose literariamente estudada no comportamento dos intelectuais da época.[17]
A proclamação dos sentimentos tão em voga no período romântico é uma presença constante nas cartas de Álvares de Azevedo. Uma maneira salutar de reconhecer que o ente querido estava longe e precisava saber da dor que sua ausência provocava. O destinatário, por sua vez, também demonstrava impaciência e protestava exigindo demonstrações explícitas de carinho. A uma dessas interpelações, Azevedo responde com a fala de um enamorado: “Luís: Queixa-te de mim. Dize-me que te esqueço. E contudo não tens razão. Fui e sou teu amigo. Enquanto aqui dentro do peito bater-me quente o coração, teu nome acordará nele uma pulsação, enquanto houver vida em minha alma, haverá nela uma lembrança tua”[18].
Excetuando o pequeno círculo de pessoas queridas, o poeta mostrava-se indiferente ao movimento da vida mundana ou política do país durante o Segundo Reinado. A acomodação parecia reinar nos ambientes sociais e acadêmicos e D. Pedro II, amigo das letras e de muitos intelectuais da época, investia na cultura, tranqüilizado pela bonança política e econômica, resultado do alto plantio de café. Talvez seja essa uma das razões pela falta de interesse do missivista em tratar de assuntos que envolvessem questões e personalidades públicas daquele tempo. No entanto, no interior da Faculdade de Direito existiam as agremiações políticas e filosóficas que proporcionavam aos estudantes não só uma oportunidade de engajamento intelectual como também uma modalidade de prática política por influência de uma postura mais engajada como acontecia na Europa de Victor Hugo.
Em uma das reuniões da Sociedade Acadêmica de Ensino Filosófico, Álvares de Azevedo escreve um discurso defendendo a criação de uma filosofia e uma literatura nacional. Também exigia o cumprimento da Constituição pelas autoridades que governavam o país que, entre seus artigos, assegurava a educação de base, melhoramento dos colégios e universidade para todos os brasileiros. Apesar da qualidade literária de seu discurso e a validade de seus argumentos, Álvares de Azevedo foi severamente criticado por seu pai que considerou seu pronunciamento liberal demais o que, de certo modo, poderia ser interpretado como uma atitude de oposição ao governo monárquico.
Submisso às reprimendas paternas, o missivista escreve uma carta explicando suas verdadeiras intenções. Nela tem o cuidado de amortecer o clamor inflamado de seu discurso, revendo os trechos que exprimiam uma certa antipatia ao Imperador e seu regime:
Meu pai e amigo:
As minhas idéias sobre política resumem-se em querer menos palavras e mais convicções, menos alarido de liberalismo e mais instituições asseladas dele. Não digo se a Constituição é boa ou má: ninguém até hoje pode dar opinião definitiva sobre isso. A Constituição tem sido atirada por todos e em todos os tempos para todos os lados, desde que não tem servido de instrumento para os partidos: e isso não foi só feito pela lei de 3 de dezembro. O que lamento é que a Constituição garanta instrução primária e que ela não se dê; que ela garanta universidades e que ninguém cure de realizar a máxima fundamental.
HELLER, B (1982), p. 92
Refletindo um jeito cordial de ser, o poeta expõe suas idéias com clareza mas sempre com muito respeito demonstrando uma forma de atuar no mundo. Jovem ainda, Álvares de Azevedo viveu em um ambiente romântico-burguês em fase de estagnação política, entre o indianismo de Gonçalves Dias e o engajamento literário de Castro Alves. Sua correspondência paralela à sua produção literária é contemporânea de um dos momentos mais estáveis do Segundo Reinado, sob a égide de Dom Pedro II. As agitações políticas e movimentos separatistas tinham ficado para trás com o período regencial e as guerras com o Paraguai, Uruguai e Argentina só ganhariam vulto a partir de 1860. No entanto, suas cartas refletem um jeito especial de sentir o cotidiano do país, afeito ao imediato, aliando preocupações rotineiras, críticas e informações impregnadas de humor e ironia. Até a confissão dos sentimentos mais íntimos trazem a marca de sua personalidade melancólica, zombeteira e masoquista.
Bibliografia Consultada
ANDRADE, Mário de. Amor e medo. In: ________. Aspectos da literatura
brasileira. 6.Ed., São Paulo: Martins, 1978, p. 197-230
AZEVEDO, Álvares. Cartas. In: ________. Obras completas de Álvares de
Azevedo. 8. Ed., Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1942, p. 435-538. Tomo 2
BRITO, Broca. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos: vida literária e ro- mantismo brasileiro. São Paulo: Polis, 1979
CAMILO, Vagner. Riso entre pares: poesia e humor românticos. São Paulo: Edusp/
Fapesp, 1997
CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987
_______________ . Formação da literatura brasileira. 6. Ed., Belo Horizonte: Ita-
tiaia, 1981, Volume 2
GUINSBERG, J. O romantismo. 3. Ed., São Paulo: Perspectiva, 1993
HELLER, BÁRBARA, BRITO, Luís Percival Leme de, LAJOLO, Marisa. Álvares
de Azevedo. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982
[1] Trecho da carta de 1 de março de 1850 ao amigo Luís Nunes. Cf. AZEVEDO, A. Cartas. (1942), p.513.
[2] Na nota 1, do volume das Cartas, pode-se ler: Luís Antônio Da Silva Nunes era do Rio Grande do Sul. Bacharel pelo Colégio Pedro II. Estudou em São Paulo de 1850 a 1853, bacharelando-se em Pernambuco. Presidiu a Bahia e a Paraíba e foi deputado pelo Espírito Santo. Advogou no Rio de Janeiro. Editou o Conde Lopo, em 1886. Idem, (1942), p.457.
[3] Cf. Cartas, p.476.
[4] Informação retirada do livro de Broca Brito.Cf. “Na São Paulo de Álvares de Azevedo”. (1979), p. 207.
[5] A cacetada era um hábito da vida acadêmica daquele tempo. Quando havia uma briga, os cacetistas desafiavam seu oponente para um duelo em que as armas eram a espada ou a pistola. As conseqüências, muitas vezes, resultavam na morte de um estudante. O trecho entre aspas se encontra na p. 469 das Cartas.
[6] A referência a Antônio Cândido está no primeiro capítulo de A educação pela noite e outros ensaios.( 1987), p.10-23. Cf. BROCA, Brito. (1979), p. 207.
[7] Trechos retirados dos poemas “Paisagem N. 1, N.2 e N.3, respectivamente, que se encontram em Paulicea desvairada. Cf. ANDRADE, Mário. Poesias completas. 5.ed., São Paulo: Martins Editora, 1979, p.37, 45 e 48.
[8] Caetano Veloso “Sampa”. Do disco Circuladô. 1992.
[9] Observações feitas na Carta de 7 de julho de 1849. Ler: p.496.
[10] Trata-se da carta de 27 de setembro (de 1849), p. 502
[11] Carta de 8 de agosto de 1848. Todos os trechos em itálico, ao longo do trabalho, pertencem ao próprio missivista.
[12] Cf. p. 457-458. Também os trechos em itálico foram retirados dessa Carta de 11 de maio de 1848, endereçada ao amigo Luís.
[13] A carta datada de 1 de março de 1850. O poeta está no Rio. Trata-se de uma confissão dolorosa como se o missivista prenunciasse a própria morte.
[14] Vagner Camilo, no capítulo “Devaneios de um estudante solitário”, lembra que as cartas de Álvares de Azevedo para o amigo Luís traziam, muitas vezes, embutidas descrições e vivências que seriam recriadas na obra do autor. Cf. 1997, p.75-96.
[15] Trechos selecionados da longa e última carta escrita para o Luís em 1 de março de 1850. Cf. p. 513.
[16] Cf. Página 512.
[17] Sobre o assunto pode-se ler em BRITO, B. (1979), p.86.
[18] Carta de 19 de abril de 1849. Ler p. 488.