ARGUMENTAÇÃO NO TEXTO ESCOLAR

Marísia Carneiro (UERJ)

 

A extensão do significado da escrita é ampla quando se relaciona essa prática à noção de letramento. Este nos faz incorporar diversas práticas leitoras e produtivas de textos porque seus determinantes são sociais e culturais. Os gêneros e os tipos de texto são construções condicionadas extralingüísticamente. As redações escolares, portanto, incluem-se  entre os gêneros  produzidos no contexto da escola, o que as faz submeter-se a condições de produção específicas desse cenário.

Nosso trabalho visa a apresentar resultados parciais da pesquisa que estamos realizando em textos  argumentativos produzidos por alunos da 8ª série do curso fundamental. Assumindo que a sala de aula é o espaço em que a escola, agência de letramento de iniciantes da escrita, patrocina determinações sociais e culturais conservadoras, introduzimos, na situação  da sala de aula  a variável filme publicitário a fim de apreender possíveis marcas da influência da televisão nesses textos. Estabelecemos como hipótese a influência da televisão na organização do gênero escolar  e no seu conteúdo.

Em primeiro lugar desenvolvemos sucintamente o conceito de argumentação no  qual  nos baseamos para efetivar as análises das redações. Referimos em seguida os traços marcantes do perfil dos alunos/autores para relacionarmos esse elemento da construção do discurso ( o enunciador) à prática que lhe é cobrada: redação de texto argumentativo. Feito isso, apresentamos sucintamente o método que nos serve de orientação e também, um exemplo de análise análise contrastiva  de uma  redação segundo  o modelo referencial adotado, a semiolingüística de Patrick Charaudeau (1992) , para então podermos indicar um aspecto que nos faz aproximar o tipo de texto reproduzido e o propósito e o dispositivo de construção do sentido do filme publicitário. Finalmente apresentamos dados quantitativos que nos  mostram tendências constatadas até este momento de nossa investigação, que está sendo desenvolvida com o auxílio de uma bolsista [1]de iniciação científica. 

O discurso argumentativo confunde-se com a própria história da democracia desde a época em que o sofistas ( sec. V/IV aC), dentre os quais se destacaram Protágoras e Górgias,  mestres da retórica e da oratória,   sustentavam a necessidade de se ensinar   a arte da argumentação àqueles que participavam da vida política.

São condições prévias da prática da argumentação as condições psíquicas e sociais dos interlocutores, isto é, um contato intelectual, e a constituição de uma “comunidade efetiva dos espíritos[2] “ cuja aproximação se dá por um sistema referencial comum, constituído de crenças, valores e propósitos.

Trazendo para nossas reflexões o conceito de argumentação do método de análise de Charaudeau, é indispensável situarmos esse conceito dentro do dispositivo comunicativo em que é compreendido o discurso nesse modelo: “ Um texto é o resultado de um ato de linguagem produzido por um sujeito numa situação de troca social contratual.[3]” O espaço externo e o interno do discurso são relacionados e integrados na medida em que o sujeito comunicante construído pelas especificidades histórico-ideológicas da situação se faz sujeito enunciador no interior do discurso manifestado no texto, articulando o dispositivo linguageiro de que dispõe, ou seja, o material lingüístico e o extralingüístico. O EU enunciador executa o projeto de fala  concebido a partir de um contrato de fala ( exterior ) constituído de  finalidade e de ponto de vista  próprios, de uma identidade dos participantes dessa troca, de um propósito e um dispositivo particular de troca.

No tipo de texto que analisamos os componentes situacionais são a não-presença dos parceiros, contrato de não-intercâmbio, contexto comum  e canal gráfico. Portanto, não há percepção imediata das reações do interlocutor, no caso, o leitor. O locutor não depende  deste, por isso pode planejar seu texto,  pode usar ou não, elementos do contexto e finalmente não utilizar da entonação, dos gestos e das mímicas. Apesar de as redações terem sido escritas na presença do professor,  o que aproxima  sob esse aspecto a situação de cada um, nada garante que o professor seja tomado como interlocutor do texto, como querem alguns intérpretes do gênero redação escolar.

Nesse sentido vamos apresentar o que é generalizado entre os estudiosos dessa  atividade escolar. É unanimidade entre eles diferençar a produção de texto em que o sujeito enunciador, isto é, o autor , tem consciência de seu propósito, o que dá a seu texto a propriedade da  produtividade, mostrando  efetivamente ter sido criado segundo uma intenção comunicativa: ele quer dizer algo a alguém. Por outro lado, há simplesmente as redações escolares, textos que não refletem qualquer compromisso com o princípio da intencionalidade e com possíveis interlocutores/leitores. É mais uma evidência de que a “redação escolar”  é um gênero à parte. gênero:   a “redação escolar”.

Agora, particularizando nosso conceito de argumentação,  segundo o modelo aqui adotado, assumimos que o modo de organização argumentativa relaciona a asserção de partida  (premissa), a asserção de chegada  e a  asserção de passagem (argumentos ou provas).

Exemplificando, esse tipo de relação, encontramos em textos da  seção de esportes do jornal O Globo, que pode ser lido por muitos alunos da 8ª série, o seguinte:

1.   Se o Botafogo está disposto a vencer o Vasco amanhã no peito e na raça, o coletivo de ontem à tarde foi mesmo o mais indicado para exercitar sua estratégia.  [14/8/99]

A partir do momento em que o comportamento de um jogador  - ou de qualquer  cidadão - interfere na vida de outras pessoas em locais públicos, por bem ou por mal, me parece que deixa de ser privado.  [14/8/99]

 

Esses exemplos salientam em primeiro lugar a relação de causalidade implicativa  que se identifica entre as duas asserções:

 

Asserção de partida (A1) :  

 

Se o Botafogo está disposto a vencer o Vasco amanhã no peito e na raça...

 

Asserção de chegada (A2):

 

...coletivo de ontem à tarde foi mesmo o mais indicado para exercitar sua estratégia.

 

   Asserção de partida (A1):

 

A partir do momento em que o comportamento de um jogador - ou de qualquer cidadão - interfere n a vida de outras pessoas em locais públicos, por bem ou por mal,...

 

Asserção de chegada ( A 2):

 

...me parece que deixa de ser privado.

 

Por conseguinte podemos representar a relação de causalidade implicativa,  característica da lógica argumentativa, da seguinte maneira:

Se   (A1)    então    (A2).

No modelo da argumentação outro tipo de relação de causalidade é a explicativa. Veja-se o exemplo também extraído do mesmo jornal:

 

3.   Não sou dos que se interessam pela vida particular dos jogadores, há coisas mais estimulantes para o espírito ( pelo menos o meu),...

 

Asserção de partida (A1):

 

Não sou dos que se interessam pela vida particular dos jogadores,...

 

Asserção de chegada (A2):

 

(porque) há coisas mais estimulantes para o espírito ( pelo menos o meu)...

 

A representação da relação de causalidade explicativa  se faz assim:

 

Se  (A1)    porque   (A2)

 

Aplicamos esse modelo nas redações que analisamos, adaptando-o ao texto. Identificamos a asserção de partida (A1) na abertura  do texto, considerando, num sentido amplo, a asserção, neste caso, como o conjunto de proposições que serve como a premissa da argumentação; a asserção de chegada, da mesma maneira, identificamos na conclusão do texto, e os argumentos ou provas intermediários, usados para  sustentar essa relação (A1) e (A2) , identificamos como asserção de passagem.

Os procedimentos adotados para coletar  o material de análise foi propor uma redação aos alunos de duas turmas de 8ª série, em duas etapas constituídas de duas fases: a primeira fase sem exibição prévia de  filme publicitário, a segunda com exibição  prévia de filme publicitário. Da primeira etapa participaram todos os alunos das turmas; na segunda etapa, apenas os alunos selecionados segundo o critério da habilidade de redigir texto argumentativo completo ( A1   ®   A2, intermediado pela asserção de passagem) .

Uma outra constatação que esses exemplos extraídos de seção esportiva  de um jornal de grande circulação mostra  é que se os nossos alunos têm contato com o modo de organização argumentativa no seu dia-a-dia, é inevitável  que  que produzam  textos  argumentativos.

Quanto à variável filme publicitário introduzida na situação em que os textos da segunda fase foram produzidos há dois aspectos a considerar: a construção do discurso, sobretudo o propósito persuasivo fundamentado no referencial ideológico dominante  que é usado para manipular as crenças, os interesses e os gostos do consumidor, e a  dependência desse propósito ao ideológico ao da Sociedade Ocidental , isto é,  o etnocídio:

“...é um processo de destruição da diferença cultural exercido pela nossa sociedade.[4]

Esse projeto ideológico da planetarização da economia teve origem na  Revolução Industrial.  Desde então a corrida pela produtividade  aperfeiçoou as formas do assassinato das diferenças étnicas,  o que resultou, afinal , na redução do outro ao mesmo, identificando os indivíduos por semelhanças que os aglutinam, como pessoas, a um mesmo grupo, como, por exemplo, o grupo dos adoradores do mito Xuxa.

As análises   das redações, conforme o projeto que está em andamento nos dão dados que  avaliamos quantitativamente para  em momento posterior interpretarmos seu sentido, tendo em vista  a lógica do totemismo que visa à  construção de sociedades  etnocidárias onde a ênfase está no pólo relacional ( tribal) e não no pólo individual. No mundo das produções publicitárias, segundo Rocha ( 1995: 171) :

evidentemente, estamos longe da sociedade de ideologia e credo individualista. No mundo projetado de dentro dos anúncios, todos são pessoas. Vivem um universo social marcado pela relação e pela hierarquia. Universo de recusa da ideologia individualista.

Esse princípio constitutivo  das sociedades modernas, que se repete dentro de cada anúncio, nos serve para classificar  os grupos sociais  segundo o  produto que é consumido por eles. Assim  consumimos determinados produtos para fazer parte de um determinado grupo social. Nos anúncios todos se conhecem e se falam; elabora-se o indivíduo empírico enfatizando-se  a dimensão da pessoa. [5]

Nos textos argumentativos  produzidos pelos jovens da 8ª série vamos apreender os sinais  da presença desse projeto de sociedade totêmica, interpretando-os como evidências  da influência da televisão na redação de alunos  do curso fundamental.

Trata-se de análise contrastiva para verificar comparativamente  se há, no segundo texto,  algum sinal dessa  influência, tendo em vista a exibição do filme publicitário introduzido como variável na situação de sala de aula. Nos casos apresentados acima foi exibido o filme da Wellaton em que a Xuxa  tenta persuadir jovens consumidoras a usar a tintura que vai torná-las “loiras” como as ” paquitas”. A partir desse  filme publicitário propusemos uma atividade de redação às turmas da 8ª série sobre o tema vaidade.

A seguir apresentamos um modelo de análise das redações escolares que constituem o nosso corpus de investigação. No exemplo  reconhecemos  as três partes  do modo de organização argumentativo, evidentemente produzido por iniciantes que ainda não conhecem  de todo a técnica de construção desse tipo de texto:

 

Turma:801

 

TEXTO PRODUZIDO ANTES DA EXIBIÇÃO DO FILME

 

Estando bem, vale tudo!

 

 

ASSERÇÀO DE PARTIDA

 

A vaidade é importante, mas tem de ter seus limites, as pessoas não tem que levar a aparência com o principal, pois a embalagem pode até fazer uma propaganda, mas no fim das contas, o que vale é conteúdo.

 

 

 

 

ASSERÇÃO DE PASSAGEM

 

A vaidade em excesso acaba se misturando, com a futilidade e com a alienação, não que eu seja conta as pessoas vaidosas, acho bem melhor do que as pessoas deslechadas, (...) mas acredito que a preoculpação tinha que ser maior com a inteligência, com os sentimentos e com a índole de cada um.

 

 

ASSERÇÃO DE CHEGADA

 

As pessoas tem é que se sentir bem consigo mesmo, sendo vaidosas ou não, estando felizes, acredito que vale tudo.”

 

 

TEXTO PRODUZIDO LOGO APÓS A EXIBIÇÃO DO FILME

“Seguindo os conselhos dos ídolos.”

 

 

 

ASSERÇÃO DE

PARTIDA

 

A vaidade das meninas hoje, parte muito da influência da televisão, elas estão sempre, com intensão de copiar seus ídolos.

 

 

 

ASSERÇÃO DE PASSAGEM

A Xuxa tem uma presença marcante neste comercial, por ser linda e muito famosa, e isso age na cabeça das jovens, como, se usarem o produto indicado por ela ficarm tão lindas quanto ela, ou de suas paquitas.

 

Cada frase trabalha com o inconsciente das meninas talvez por serem extremamente sonhadoras.

 

A possiblidade de se sentir  linda com a linha de produtos que a Xuxa indicou para as suas paquitas, mexe com as meninas, apesar de saberem que aquilo é tudo programado e talvez elas nem usem os tais produtos, mas nesse jogo da vaidade vale tudo para ficar bela.

ASSERÇÃO DE CHEGADA

Æ

 Quanto à estrutura argumentativa, constatamos, neste exemplo,  que:

1. O primeiro texto é  argumentativo completo, isto e, manifesta o fechamento de um pensamento lógico centrado na causalidade :

                   A1  porque A2

2. O segundo texto é argumentativo incompleto, isto é, manifesta o desenvolvimento de um pensamento lógico, mas sem relação de causalidade porque não há a asserção de chegada. 

Esta é a tendência que observamos em todas as redações analisadas ( 100 ) : na segunda etapa, cai  o número de textos argumentativos  completos, em que  a relação de causalidade entre asserção de partida e de chegada. O que não é novidade para todos que conhecem as análises que se fazem dos efeitos da telvisão sobre o comportamento dos jovens : passivos, abúlicos, acríticos.

Quanto ao conteúdo semântico, constatamos, no primeiro texto a marca da ideologia centrada no indíviduo, notadamente pelas expressões “ o que vale é o conteúdo “;  preocupação tinha que ser maior com a inteligência, com  os sentimentos e com a índole de cada um “, na asserção de passagem ; e  a expressão “sentir bem consigo mesmo  na expressão de chegada. No segundo as expressões “ copiar seus ídolos ” na asserção de partida , e “age na cabeça dos  jovens  sugerem a ideologia da transformação dos espectadores em pessoa, dentro do comportamento totêmico.

Por tudo isso acreditamos que nossa pesquisa  servirá como alerta aos professores do nível médio incumbidos de levar os alunos a praticar a argumentação em suas práticas de redação: a influência da televisão no sentido de desarticular o dispositivo lógico nas mentes dos nossos alunos, que na sua maior, mais de 70%, assistem a programas de televisão num período diário de 2 a 8 horas. O que fazer então? 

 

BIBLIOGRAFIA

CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et  de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

-----. Les conditions d’une typologie des genres télévisuels d’information. In:  Révue  Réseaux. nº 81. Paris: CNET, 1997.

ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho. Comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.

 

 


[1] Lilian de Souza e Silva do curso de Português - Latim da Graduação do IL da UERJ.

[2] Parelman & Olbrechts-Tyteca, 1999: 16.

[3] CHARAUDEAU, 1997: 85.

[4] ROCHA, 1995: 125.

[5] ROCHA, 1995: 167.