A LIRA E OS INFERNOS DA EXCLUSÃO - ORFEU NO BRASIL

 

Victor Hugo Adler Pereira (UERJ)

 

A partir das versões do mito de Orfeu que chegaram a nossos dias pode-se deduzir que esta divindade tinha como função, na estrutura mítica grega, mediar instâncias conotadas com a ordem e a desordem, com a harmonia e a desagregação, com a paz e a ferocidade.  A tradição lendária estabelece a sua dupla ligação com Apolo, de quem teria sido sacerdote, e Dioniso, a cuja religião teria se convertido.[1]  

Ao elaborar a sua versão do mito no drama Orfeu da Conceição, entre 1942 e 1948, o poeta e posteriormente figura de destaque na música popular, Vinícius de Moraes, deu ênfase às relações entre essas duas instâncias no quadro específico da cultura brasileira. A análise de alguns elementos que colocou em jogo nessa versão oferece interesse, não somente para se conhecer a perspectiva de Vinícius de Moraes quanto a alguns problemas de nossa cultura, mas também porque essa obra teve desdobramentos posteriores, servindo de base para a adaptação cinematográfica, na qual o escritor participou e que foi dirigida pelo cineasta francês Marcel Camus, como também para o recente filme de Cacá Diegues.  Procurei, por esse motivo, analisar neste trabalho como o drama original coloca em jogo elementos capazes de caracterizar um modo de interpretação da cultura do país, identificado com discursos influentes na vida intelectual na sua contemporaneidade. Relacionei este drama com as versões posteriores, que fizeram dele a sua matriz,  examinando constantes e variações e indagando sobre as relações destas com o panorama sócio-cultural e situações ligadas à recepção das obras.

 

Cultura brasileira entre as cordas e a percussão

Algumas circunstâncias ligadas à criação dessa peça, assim como à sua encenação, relatadas pelo próprio poeta-dramaturgo constituem-se em fontes imortantes para a compreensão do tratamento concedido aos problemas da cultura enfocados e do modo com que se articularam no texto dramatúrgico. Segundo depoimento de Vinícius, a inspiração para realizar o texto teria vindo de uma conversa, em 1942, com um escritor norte-americano, em que concluíram que o negro carioca era, nas palavras do autor “um grego em ganga - um grego ainda despojado  de cultura e do culto apolíneo da beleza, mas não menos marcado pelo sentimento dionisíaco da vida”.[2] Pouco depois, no mesmo ano, estando numa residência à beira mar, em Niterói - mais exatamente numa elevação sobre o Saco de São Francisco - o autor teve uma experiência decisiva que o levou a começar na mesma noite a escrever grande parte do texto. O relato dessa experiência pelo autor fornece elementos que, segundo percebo, serão bastante significativos na estruturação do texto dramatúrgico:

 

(...) pus-me a ler, por desfastio, num velho tratado francês de mitologia grega, a lenda de Orfeu - o maravilhoso músico e poeta da Trácia. Curiosamente, nesse mesmo instante, em qualquer lugar do morro, moradores negros começaram uma infernal batucada, e o ritmo áspero de seus instrumentos - a cuíca, os tamborins, o surdo - chegava-me nostalgicamente de envolta com ecos mais longínquos ainda do pranto de Orfeu chorando.[3]

 

Um elemento que se destaca, neste texto, é o contraste entre os adjetivos “infernal” atribuído a batucada e “áspero” aos instrumentos dos negros (todos de percussão) e o clima mágico e nostálgico de que se cerca Orfeu.  Destaque-se que a cuíca produz sua sonoridade pela fricção numa superfície lisa, num contato que não acredito seja adequadamente descrito como “áspero”; assim como não parece próprio designar como “áspero” o som do surdo, grave e pesado, retumbante...  Nitidamente o texto dramatúrgico reproduz o contraste de perspectivas quanto aos elementos associados ao negro e a Orfeu no texto dramatúrgico, e que se associam aos depoimentos de Vinícius sobre a gênese da criação da peça.

Transpondo a narrativa lendária para um morro do Rio de Janeiro e misturando a saga mística e mágica a uma intriga passional, o drama apresenta como motivação para  a morte de Eurídice os ciúmes que desperta em um pretendente decepcionado, que a apunhala sob a influência da magia de uma  vingativa ex-namorada do herói.  O texto não perde muito tempo na elaboração dos conflitos entre os personagens, apresentando um painel de relações que apontam muito mais para traços que podem ser atribuídos a uma cultura específica do que a características psicológicas individuais.    

   A peça Orfeu da Conceição se constrói como um diálogo entre a ordem e a desordem.  Esta dicotomia se dá, não somente no plano dos personagens, mas até mesmo numa espécie de estrutura sonora que acompanha o desenvolvimento do enredo.  O som do violão do Orfeu será apresentado sempre como um contraste a barulhos desordenados ou aos intrumentos de percussão, associados no texto à ameaça da violência ou do caos.  Os quadros de que se compõe o primeiro ato são entremeados por intervalos em que se apresenta a ação dramática são entremeados por momentos em que se revelam os barulhos da noite principalmente. No quadro de apresentação de  Orfeu, o herói surge brilhante no meio da escuridão da noite, referência à sua natureza apolínea, que se reforça com o diálogo anterior, em que seu pai, Apolo, lembra a sua mãe que foi ele que o orientou.  A caracterização do brilho de Orfeu, sua conotação com a harmonia e a ordem, apóia-se em referências sonoras, como se pode observar na rubrica seguinte:

 

Vozes de animais e trepidações de folhas, como ao vento, vencem por um momento a melodia em pianíssimo que brota do violão mágico. Orfeu escuta, extático. Depois recomeça a tocar, enquanto, por sua vez, cessam os sons natureza. Ficam nesse desafio por algum tempo, alternando vozes, até que tudo estanca, vozes, ruídos e música.[4]

 

No segundo ato, no Clube dos Maiorais do Inferno, a ordem e a harmonia instauradas pela música de Orfeu contrastam com os sons da percussão, representando duas forças de atração antagônicas sobre as mulheres que participam de um ritual carnavalesco orgiástico:

 

Requesta as mulheres, mas estas se desvencilham. Orfeu pega o violão e dedilha. Por um momento os sons dulcíssimos dominam tudo e o movimento cessa totalmente, até que as mulheres fascinadas, começam a seguir Orfeu em passadas lânguidas, medidas enquanto o músico se afasta de costas, em direção à porta de saída.  Mas quase no momento de sair, incutem, entre os acordes do violão, os ritmos pesados, soturnos, da batucada. Os dois sons coincidem por alguns instantes, enquanto as mulheres, indecisas, fluem e refluem ao sabor dos dois ritmos.[5]

 

Muito curiosa a situação construída nessa rubrica se a pensarmos à luz das informações do poeta-dramaturgo sobre a origem de seu texto.  O poeta teatraliza uma perspectiva valorativa sobre a cultura africana, e ao fazê-lo evidencia a dicotomia que fundamenta os seus comentários: na verdade, a música do instrumento de cordas se opõe, pela suavidade, ao sons da percussão.

Mais tarde, na última cena da peça, a rubrica indicará, ao final de uma briga que “logo depois, alguém começa a tocar um chorinho macio ao cavaquinho”.[6]   Como não interpretar essa oposição entre a suavidade e a dureza dos dois tipos de som como decorrência do contraste entre as duas culturas que próprio Vinícius estabelece ao mencionar o caráter primitivo da cultura negra, em atraso diante da européia?

 

 

O embranquecimento como universalização

 

A dicotomia observada, na peça de Vinícius de Moraes, entre os sons desagregadores, agressivos e primitivos da música mais próxima da origem africana e a harmonia e suavidade da música européia apresenta afinidades com perspectivas bastante influentes na sua geração. Reproduz, até certo ponto, os termos com que o pensamento oficial, durante o Estado Novo, distinguia as raízes culturais brasileiras. Os traços da cultura popular deveriam ser reelaborados ou tornados “civilizados”, através de sua mistura com os aportes da tradição européia, para que adquirissem um dimensão universal.  Assim como Orfeu deveria com a sua música organizar o espaço simbólico da favela, o intelectual deveria se responsabilizar por essa tarefa civilizatória, ao distinguir o que merecia ser preservado do que era desprezível. O modelo na execução dessa tarefa era considerado Heitor Villa-Lobos.

Observe-se como amostragem do pensamento oficial na questão, o comentário abaixo, publicado em 1941 na revista Cultura Política, que se constituía no canal destinado pelas autoridades à exposição e debates sobre a cultura - considerada questão estratégica no Estado Novo como em outros regimes de tendências fascistas que lhe foram contemporâneos:

 

O samba que traz em sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico e arrítmico. Mas paciência: Não repudiemos esse nosso irmão pelos defeitos que contém. Sejamos benévolos, lancemos mão da inteligência e da civilização. Tentemos, devagarinho, torná-lo mais educado e social.  Pouco nos importa de quem seja ele filho... O samba é nosso; como nós nasceu no Brasil.  É a nossa música popular e para I. Otaviano “a música popular representa a alma do povo na sua simplicidade pura e encantadora.  Não toleramos os moleques peraltas, dados a traquinagens de toda a espécie.  Entretanto, não os eliminamos da sociedade: pedimos escolas para eles. A marchinha, o samba, o maxixe, a embolada, o frevo, precisam, unicamente, de escola. [7]

 

A perspectiva de que o samba deve ser aceito, porém necessita ser “civilizado” desmente a afirmativa de que “pouco nos importa de quem seja ele filho”.  Fica claro o desprezo pelas origens do samba, identificado com outros ritmos “moleques” ou “peraltas”.  Estes dois adjetivos são bastante comprometidos com uma determinada perspectiva sobre a manifestação cultural de origem africana.  O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda registra a origem da palavra “moleque” no idioma Quimbundo, e apresenta o sentido do substantivo como “negrinho” e do adjetivo como de “indivíduo sem palavra, ou sem gravidade”;  ou ainda: “canalha, patife, velhaco” ; e acrescenta que no Português do Brasil pode também significar  “menino de pouca idade”.[8]  A mesma fonte esclarece dois usos de palavra “peralta” no Brasil que parecem identificar o sentido desejado pelo autor do comentário citado:  “indivíduo ocioso, vadio”  ou “menino travesso, traquina”. [9]  Em ambas as palavras, coincide o sentido dicionarizado com as acepções ligadas à infância, à irresponsabilidade, mas também a possibilidade de se transformar em um comportamento socialmente negativo, chegando mesmo a conotar marginalização.  Os sentidos conotados ao samba e aos ritmos populares revelam a perspectiva vigente nas classes dominantes e que norteou a política cultural promovida pelo Estado Novo de “civilizar”  as manifestações populares e de, nos casos em que se suspeitasse da impossibilidade de transformá-las para que se adequassem aos códigos do sistema, proibi-las. Imprime-se, desse modo, uma tônica do tratamento que será concedido ao problema da herança cultural africana, considerada passível de uma suavização de seus aspectos considerados brutos ou elementos encarados como desagregadores.  A dureza com que se tratavam as manifestações consideradas indignas de entrar no “cadinho” da mistura, aparentemente tão brandamente requentado, transparece num acontecimento emblemático: o fechamento dos terreiros de candomblé pelo Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, então Capital da República, o renomado Filinto Müller, sob a acusação de que os pais-de-santo de estimulavam o surgimento de distúrbios mentais.  Nessa ocasião, conforme noticiava o jornal Diário Carioca de 1º de abril de 1941, uma autoridade policial fez questão de esclarecer que as sociedades espíritas legalizadas não sofreriam qualquer sanção. Este episódio demonstra a existência de um controle policial, baseado em tradições discriminatórias, sobre as manifestações religiosas afro-brasileiras.

Essas referências ao contexto da formação de Vinícius de Moraes  e dos receptores contemporâneos à peça Orfeu da Conceição iluminam as dicotomias estruturadas no texto  a partir de dois tipos de musicalidade, mas também do confronto entre dois tipos de cultura: a afro-brasileira e a luso-brasileira.  Se o texto dramatúrgico endossa um discurso de ampla circulação na intelectualidade brasileira da época que representava os elementos afro-brasileiros da cultura como estigmatizados pelo atraso e conotados com o perigo de desagregação da harmonia social e os elementos de origem européia como “civilizadores”, não cabe discutir aqui se o desdobramento das atividades do famoso “poeta diplomata” confirmaram ou negaram a perspectiva que norteou a criação dessa peça.

 

 

Outras figurações da ordem

 

Outro elemento de problematização da dicotomia entre a ordem e a desordem, nessa peça, situa-se através dos traços com que Vinícius elaborou a sua versão da personagem Eurídice.  Na peça Orfeu da Conceição ela aparece como fonte do espírito de Orfeu. Diz o herói: “o que é que eu era/ antes de Eurídice? um feixe grande de ossos?/ um bocado de carne e pele escura?/ Dois pés e duas mãos? E o sentimento/  A idéia, o que eram? Nada! O nascimento / De Orfeu foi quando Eurídice nasceu!”[10]  Ou ainda, num monólogo adiante: “A existência/ Sem ti é como olhar para um relógio/ Só com o ponteiro dos minutos. Tu/ És a hora, és o que dá sentido/ E direção ao tempo, minha amiga? Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!”[11]  Além dessa associação de Eurídice com um princípio de organização da existência individual e do cosmos - que aliás reflete o que o próprio Orfeu representa para a comunidade - há um traço da caracterização dessa personagem que se mantém e reforça nas duas versões cinematográficas: é a sua inocência ou pureza que contrasta com a das mulheres do morro.  O contraste é radical, nesse sentido, com a própria mãe de Orfeu que tenta convencê-lo de que “casamento de pobre é amigação”.  A justificativa de base social revela-se, no entanto, premonitória quanto ao móvel da tragédia que se abaterá sobre o herói, pois declara que o casamento deste pode provocar o ciúme alheio (a causa do assassinato de Orfeu). Logo em seguida, Eurídice declara a Orfeu não querer ter relações sexuais antes do casamento, propondo: “Vamos fazer assim como Deus quer”.[12]  O contraste com a pesonagem Mira se estabelece e se reforça, com a idéia de que esta conota a desagregação e o despedaçamento, que se sabe ser o destino reservado a Orfeu nas mãos das bacantes.  Assim, em contraste com a função destrutiva destas, Orfeu declara a Eurídice:  “Namorada/ Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui/ Ficam os meus restos a esperar por ti/ Que dás vida!”[13]

O contraste entre esses dois tipos de mulheres passa a se relacionar a uma questão cultural nas duas versões cinematográficas, a de Marcel Camus e a de Cacá Diegues.  Na primeira, que ainda teve a participação de Vinícius de Moraes, Eurídice é caracterizada como uma moça que veio do interior e contrasta com sua prima, ultra-erotizada e com Mira, clichê de mulher espevitada e sensual.  No filme de Cacá Diegues, a amazonense Eurídice, ligada portanto ao Brasil mais preservado em suas origens, diferencia-se radicalmente de Mira, que pousa nua para uma revista masculina.  Nos dois  casos, esse contraste indica a perspectiva moralizante quanto ao comportamento feminino na favela, diante da pureza que ainda se preserva no interior - e muito mais o aspecto ameaçador que tomam essas mulheres guiadas pelo desejo sexual e marcadas por uma inserção no mundo social independente do parceiro. Indicam, além disso, a persistência da fantasia masculina de castração diante de mulheres que se coloquem fora dos limites do poder do ‘pater familias’.

Embora Vinícius de Moraes tenha participado na adaptação cinematográfica de sua peça por Marcel Camus, diminuem ou desaparecem nesta os conflitos que, conforme procurei demonstrar, têm um papel central na estruturação do texto dramatúrgico original.  Talvez por uma influência de mitologias correntes sobre o Brasil na França, nos anos cinqüenta, Camus realiza um painel folclorizado da vida do morro carioca, o filme focaliza unicamente a comunidade negra e favelada, em poucos momentos aludindo a outras facetas da vida local. É curioso observar, nesse sentido, que as primeiras seqüências da narrativa fílmica visam a informar ao espectador de que é Carnaval, e que tudo na cidade gira em torno desse motivo durante alguns dias, justamente aqueles em que transcorrerá a ação.  A idéia de que há uma outra faceta da vida, moderna, na capital do país de então, apresenta-se pela imagem que sucede essas primeira seqüência: focaliza-se minuciosamente a fachada do prédio do então Ministério da Educação e Saúde, o Palácio da Cultura no Rio de Janeiro, construção que lembra a passagem pelo Brasil do arquiteto Le Corbusier e sua influência sobre nosso mais conhecido arquiteto, Oscar Niemeyer.  Sugere-se, desse modo, a ligação de uma parte da Capital do país com a modernidade, a ousadia, a pureza de linhas, em contraste com o ambiente anárquico e as relações descompromissadas, no amor e no trabalho que o filme continuará a exibir na parte da população pobre e negra.

“Carnaval é a festa do povo” , dizia um samba da Portela dos anos oitenta, quando já se fazia necessário alardear esse mote para que a realidade do comprometimento com os interesses financeiros e a mídia não desmentisse de vez a função social e mítica da festa.   O filme de Camus mostra o Carnaval de rua, nos anos cinqüenta, e a mobilização popular para o desfile das escolas de samba, luxuoso já e impactante, mas acontecendo ali junto às pessoas humildes - e apresentando seus iguais em fantasias elaboradas com capricho e bastante dinheiro. As cenas do desfile da Portela, a grande campeã daquela década e da Mangueira, documentam um momento inicial na maré de adaptação do Carnaval  aos ventos modernizantes do Brasil, tangidos por uma política populista. O  Carnaval fazia ainda parte do calendário do Rio, a capital da República, e de muitos outros centros urbanos, não somente como a festa do povo, mas a festa da raça.  Essa diferença está, de modo sutil, presente no filme de Camus.  O filme é um documento ou painel antropológico - apesar do tratamento do enredo que às vezes beira o piegas e a abundância de clichês quando a câmara abandona o passeio pelas cenas espontâneas do cotidiano para focalizar situações encenadas.  Nesses passeios da câmara, impressiona o modo com que  se deixa fascinar (ou pretende fascinar o espectador europeu) com os rostos da gente negra e mestiça, das pessoas comuns que, somente porque era Carnaval, brincavam nas ruas, nos bondes, fantasiadas ou em trajes de trabalho, riam, dançavam juntas - em tempos  em que se cultivava, no senso comum e no discurso oficial, a confraternização social e racial emblemática da capital, considerada um modelo para o resto do país...  As implicações do sentido ritual do Carnaval não se perdem de vista em vários detalhes no desenvolvimento da narrativa fílmica que procura acentuar o dionisismo que Vinícius dizia ter descoberto na cultura negra.  O  final do filme deixa clara essa intenção, com a retomada do ciclo de Orfeu pelo menino que herda seu violão e o samba com que os meninos festejam essa espécie de ressurreição.  

 

 

A cidade partida

 

Ao adaptar a peça de Vinícius para o cinema, Cacá Diegues, consoante às transformações ocorridas no país e na cidade, enfatiza a problemática relação que se estabelece, já naquele texto seminal de Vinícius, entre a cultura do morro e os elementos, digamos assim, universais (na versão do poeta diplomata) ou globalizados (para o cineasta da atualidade).   A peça de Vinícius e, principalmente o filme de Camus poderiam ser utilizados para endossar a afirmativa de Zuenir Ventura em seu livro Cidade Partida, de que “muita gente acredita que o melhor do Rio ocorreu por volta dos anos 50, os anos dourados”.  E acrescenta ele: 

 

Uma parte da cidade oculta já tinha ocupado os morros, mas as favelas de então, mais do que ameaça ou problema, eram vistas de longe como um acidente pitoresco. “Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu”, constatava uma famosa música de Herivelto Martins, em 1942.[14] 

 

O filme de Cacá Diegues vai mostrar a ruptura dessa mitificação e marcar a origem econômica e as repercussões sociais e existenciais de um conflito constante entre as duas faces da cidade do Rio de Janeiro.  Afinal, como o rufar de um surdo, repercute neste filme, a partir da peça de Vinícius uma ênfase nos traços da força um tanto ou quanto brutal, já agora não propriamente da cultura negra, mas da cultura de exclusão e violência desenvolvida na favela.

Também neste filme recente, a presença de Orfeu na comunidade, diante da qual apresenta certos traços culturais distintivos, é um elemento harmonizador.  Nesse caso, a diferença situa-se pela posse e utilização de Orfeu dos recursos da tecnologia mais avançada. Cacá Diegues ressalta, com essa caracterização, o caráter do que se concebe como civilizatório associado à relação de Orfeu, ao contrário da comunidade, com algo que pode ser denominado de universal (que se traduz na atualidade por globalizado).  O cineasta - nesses tempos em que se retomam projetos de atualização do Brasil ao chamado primeiro mundo -  sublinha o contraste entre o atraso e pobreza do morro, e que Vinícius dizia constatar na “cultura negra”, e a mentalidade de Orfeu, apresentado como alguém que incorpora às suas origens e suas ligações com a cultura local os gadgets da tecnologia atual.   Ao contrário da suavidade da dança dos meninos que, ao  provocarem o surgimento da manhã, anunciam um futuro harmônico, na versão de Camus, o encerramento do filme de Cacá Diegues, com as imagens impactantes de um monumental desfile de escola de samba, em que a batida do funk foi incorporada à bateria, aponta para uma nova versão do projeto anterior de universalização da herança cultural negra, indiciando o seu caráter conflitante.

O aspecto didático e exemplar da presença de Orfeu junto às crianças faveladas, que se mistura à perspectiva da reencarnação e ao mito de Dioniso, no primeiro filme, toma na versão de Cacá Diegues a forma de uma pergunta quanto aos conflitos sociais no Rio de Janeiro.  Neste filme, o menino com pendores artísticos oscila entre o modelo de Orfeu e o de seu antagonista, um traficante de drogas. Ao mesmo tempo que o diretor resolve esteticamente com uma solução de impacto a afirmação de uma positividade pela apresentação da força de renovação da música, sem fronteiras culturais, deixa um travo de dúvida no espectador diante do poder desagregador dessa mesma abolição de fronteiras que se traduz nas favelas pelo papel que vem assumindo na distribuição da droga (uma instância do puro dionisismo?).

Um dos poderosos “achados” na versão de Diegues do mito foi a representação do inferno como um depósito dos dejetos do consumo, como um “ferro-velho” nas franjas do morro ou um lixo onde se despeja aquilo que não serve mais.  É também o lugar onde os dois rivais, o rei da música e o do tráfico, brincavam na infância - conotando o passado, portanto, a um depósito de restos ou de lixo.  De modo semelhante, no filme Orfeu (1950) de Jean Cocteau, o inferno é caracterizado pelo motorista  de Heurtebise, a Princesa da Morte, como a “ruína dos hábitos dos homens”.  Portanto, o inferno de modo semelhante nos dois filmes caracteriza-se como um depósito do passado - será este certamente um sinal de que a  ameaça vem do arcaico ou do passado na história pessoal e dos grupos humanos.  Reflete-se também, nesse caso, a admoestação contida na lenda originária quanto ao perigo de se olhar para trás.

 

 

Os “Orfeus” e seus temores

 

As ambigüidades entre a representação positiva e negativa do progresso, do passado, do negro, do pobre, renovam-se do texto de Vinícius até o filme de Cacá Diegues, realizado mais de quarenta anos depois, demonstrando que o poeta-diplomata apenas articulou um conjunto de questões relativas ao negro e ao pobre no Brasil, cujas formulações ainda não superaram determinados tópicos.  O mito de Orfeu surgiu como um modelo capaz de aglutinar alguns desses tópicos centrais.  Essas versões que  dele se realizaram muito mais do que retratar a situação do negro ou do favelado são um testemunho das representações e dos preconceitos depreciativos que se transformam em temores dos intelectuais brasileiros.  Denuncia-se a presença já nos chamados “anos dourados”  de uma ameaça velada de conflagração social, em plena capital do país,  desmentindo a afirmativa de Zuenir Ventura de que, naquela época, “o mundo dos ricos e o mundo dos pobres se olhavam sem medo ou ódio”[15] na Cidade Maravilhosa. Nossos Orfeus temiam que a já imensa parcela de marginalizados imprimisse sua marca diferencial, despedaçando, como as bacantes enfurecidas, a mítica integração racial e cultural que tentaram construir com suas sínteses intelectuais e artísticas.

Em texto de 1957, em que relata a sua experiência como empresário da montagem da peça Orfeu da Conceição, declara: “Pois a verdade é que a relação de um empresário, sobretudo quando este empresário é também autor da peça, com os demais elementos que a compõem reveste-se de um caráter paternal”.[16] Em outro texto, denominado “Comunicado aos artistas”, confessa-se espantado ao ver as ameaças do elenco negro de abandonar as representações da peça que empresariou diante da falta de pagamentos.  Ao divulgar a certeza de que seria impossível saldar as dívidas com os contratados, afirma o poeta:  “Sei que todos precisam de dinheiro. Mas sei também que abandonar o barco neste momento é dar armas aos falsos homens de teatro no Brasil e aos detratores do homem de cor brasileiro e da sua capacidade de ser civilizado”.[17]  O tom dessa admoestação, a pressão  sobre o elenco negro para que, pela docilidade, obediência e renúncia a seus direitos, ganhasse a confiança da sociedade, deve ser cotejado com a declaração do autor no prefácio da peça de que, com esta, estava realizando uma homenagem à cultura negra no Brasil.

Esses elementos que apontam de modo evidente para a tradição paternalista e outras estratégias de acomodação social na relação entre a intelectualidade brasileira e as classes subalternas.  Talvez, por isso, o interesse pela figura de Orfeu revele muito mais  o modo com que esses intelectuais representam sua posição na sociedade brasileira: a de mensageiros da luz, da sabedoria e da ordem recebidas da tradição cultural européia; em conflito com o temor de que as manifestações populares, sem a sua tutela, venham desembocar na desordem e agressividade,  capaz de dilacerar o tecido social brasileiro, tão instavelmente costurado. 

 



[1] TRINGALI, Dante. “O orfismo”. In: Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. Org. Sílvia Maria S. Carvalho. São Paulo: Editora UNESP, 1990. p. 15.

[2] MORAES, Vinícius de. “Orfeu da Conceição”(Radar da batucada - texto de apresentação da peça). p.47.

[3] _______. Ibidem. p.47-48.

[4] _______. Ibidem. p. 58.

[5] _______. Ibidem. p. 92.

[6] _______. Ibidem. p. 105.

[7] Salgado, Álvaro F.. Radiodifusão, fator social. Cultura Política. Ano I, nº 6. Rio de Janeiro, agosto de 1941. p. 90-91.

[8] Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p.937.

[9] _______. Ibidem. p.1066

[10] _______. Ibidem. p. 65.

[11] _______. Ibidem. p. 69.

[12] _______. Ibidem. p. 65.

[13] ______. Ibidem. p. 68.

[14] Ventura, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1994. p.17,18.

[15] ______. p.18.

[16] ______. Ibidem. p.118.

[17] ______. Ibidem. p.114.