AS MINORIAS LINGÜÍSTICAS DA ROMÂNIA
Bruno Fregni Bassetto (USP)
O projeto da União Européia, em fase de implantação, enfrenta dificuldades em vários setores, especialmente no setor lingüístico. O ideal de um poderoso bloco coeso esbarra na multiplicidade étnica e cultural, sedimentada durante séculos; seus idealizadores sempre tiveram plena consciência de sua existência, da necessidade inelutável de respeitar essa diversidade, sob pena de inviabilizar todo o projeto. Destarte, a 5 de novembro de 1992, em Budapeste. foi assinada a Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias, que deverá ser implantada convenientemente pelos diversos países, respeitando as características de cada grupo étnico. Essa tarefa não está sendo fácil, tanto que alguns países relutam em assinar a Carta.
Em vários países, posições antigas e arraigadas terão de ser mudadas e uma nova visão da questão deverá ser adotada, condição sine qua non para resolver o problema. A França, por exemplo, mantém uma tradicional posição de intransigência em relação ao reconhecimento das línguas regionais ou minoritárias, que remonta ao edito Villers-Cotterêts, de 1539, que determinou o uso exclusivo do francês em todos os atos judiciários, excluindo na época o latim e o provençal. A pressão exercida sobre as demais línguas do país tem sido considerável, principalmente sobre a langue d’oc, a língua não oficial de maior expressão desde o séc. XII, pressão muito sentida e contra a qual têm protestado inutilmente sucessivas gerações de falantes, poetas e escritores. Assim, explica-se porque a França só assinou a Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias no dia 7 de maio do corrente ano de 1999. Nesse contexto, também não é difícil compreender a atitude do atual presidente francês, Jacques Chirac, que hesita em tomar a iniciativa de alterar a Constituição para permitir a ratificação pela França da Carta, segundo informa o jornal Libération, de 14 de junho de 1999. Contudo, o ministro francês dos Assuntos Europeus, Pierre Moscovici, assinou a Carta a 7 de maio, sem dúvida com a anuência do Presidente Chirac sem a qual a assinatura de seu ministro não teria validade. Pouco depois, certamente por injunções políticas, o Conselho Constitucional sob a presidência de Chirac julgou a convenção contrária ao Art. I da Constituição: “A França é uma República indivisível.” Dever-se-ia obviamente alterar igualmente o Art. 2, que precisa que “a língua da República é o francês”. A batalha política, porém, está apenas começando; as agremiações partidárias estão divididas e os regionalistas occitanos, gascões, catalães, franco-provençais, bascos e bretões tudo farão para que a Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias seja ratificada. Dentro dos princípios que regem a constituição da União Européia, espera-se que a ratificação da Carta e sua efetiva aplicação venham a pôr um fim à discriminação multissecular contra as línguas ditas regionais ou minoritárias na França.
Complementando esses informes sobre as perspectivas algo confusas das minorias na França, note-se que os usuários do bretão, uma das línguas celtas, somam 850.000, os usuários do basco, chamado euskera nos documentos da União Européia, chegam a 680.000 somando-se os dos territórios francês e espanhol, os do occitano, a cerca de 2.700.000, e para o franco-provençal, os dados mais recentes apontam cerca de 50.000 falantes em território francês, 70.000 na Itália e 1.235.000 na Suíça, geralmente bilingües. Dentre essas minorias lingüísticas, segundo o Livro Vermelho das Línguas em Perigo da UNESCO, o franco-provençal é o que se encontra em situação mais difícil, em grande parte por obra de seus próprios usuários. Historicamente, o período de maior esplendor do franco-provençal situa-se nos séc. XI e XII, quando a cidade de Lyon foi o centro lingüístico e a capital da Gália. Posteriormente, seu território foi fragmentado, passando a pertencer a Estados diferentes; apenas a Savóia e Genebra continuaram independentes. Desde o séc. XIII, o francês se tornou a língua administrativa, jurídica, literária e das escolas em Lyon. Logo depois, o mesmo aconteceu na antiga Borgonha, atual Suíça Romanda, bem como na Savóia. Apenas na antiga República de Genebra, a variedade local foi a língua oficial, abandonada espontaneamente depois em benefício do francês, fato muito raro na România. Atualmente, o franco-provençal continua a ser usado na França (no Lyonês, na Savóia, norte do Delfinado, parte do Forez e do Franco-Condado), na Suíça (Suíça Romanda, nos Cantões de Neuchâtel, Vaud, Genebra, Friburgo e Valais) e na Itália (Vale d’Aosta). Certamente, essa dispersão por três países diferentes contribui bastante para a falta de união entre seus usuários, levando a uma acentuada fragmentação dialetal, verificada por todos os que estudam essa variedade românica. Não apresentando literatura apreciável, o franco-provençal, embora lingüisticamente muito bem caracterizado, é a língua românica que atualmente corre maior risco de extinção segundo também alguns especialistas como A. Meillet, André Martinet e, mais recentemente, Alain Cerri e Henriette Walter. Nos documentos da União Européia, o franco-provençal é raramente citado. Ao contrário dos três ramos do rético, das outras línguas minoritárias da França, da Espanha e da Itália, o franco-provençal não conta com uma instituição especificamente consagrada ao seu estudo e preservação, o que não deixa de ser lamentável.
Ainda em território francês, é preciso não esquecer o gascão, língua românica minoritária pouco conhecida, mas de longa história pela qual convém fazer uma rápida incursão. Embora aparentada com os falares vizinhos, do ponto de vista lingüístico é tão diferenciado que não poucos romanistas consideram o gascão uma língua autônoma. Ronjat o denomina, juntamente com o bearnês, “aquitano”. É falado na província histórica da Gasconha, no sudeste da França, como também no Vale de Aran, nos Pireneus, em território espanhol. O rio Garona é o principal ponto de referência nos limites lingüísticos entre o gascão e as demais variedades da região. Já os antigos provençais consideravam o gascão uma línguas estrangeira, tão estrangeira quanto o francês, o inglês, o castelhano e o lombardo, como se encontra nas Leys d’Amors (II, 388). Muitas de suas características são atribuídas ao substrato ibérico, próprio do território sul-ocidental da antiga Gália, fato que aproxima o gascão do aragonês, do castelhano e, sobretudo, do basco. No tempo de Júlio César e no século I d.C., os aquitanos, que ocuparam toda a vertente norte dos Pireneus, eram claramente distinguidos dos celtas e de outras populações celtizadas, das quais eram separados grosso modo pelo rio Garona, como aliás o diz claramente César (De Bello Gallico, I): “Gallos ab Aquitanis Garumna flumen dividit.” É sabido que a diversidade étnica era um dos fatores levados em conta pelos romanos na determinação dos limites das províncias; entende-se assim que a atual Gasconha tenha constituído inicialmente uma província à parte, denominada Provincia Aquitanea Tertia, depois Novempopulania, a província dos nove povoados, que na realidade eram onze, como costumam corrigir os próprios gascões. Posteriormente, foi chamada Vasconia, do povo vascão, de origem pirenaica, ancestral dos atuais gascões. Os vascões eram numerosos, tanto que no séc. VI fizeram muitas incursões pelo sudeste da Gália e mudaram até o nome da região: Wasconia > Gasconia > Gasconha. Durante longos períodos da Idade Média, a Gasconha constituiu um ducado, cuja característica mais marcante foi o isolamento, tanto territorial como político, fator que favoreceu a conservação de suas peculiaridades lingüísticas. Vários estudos mostram que o latim vulgar, introduzido na antiga Aquitânia, teve uma evolução bastante original, cujos limites, em relação aos demais falares do sul da França, são definidos pelo rio Garona. A razão dessa originalidade está no substrato ibérico, manifestado em um número considerável de empréstimos léxicos, alguns morfológicos e sintáticos, bem como em tendências fonéticas bem definidas. Notam-se também correlações claras, em vários níveis, entre o gascão e o aragonês, o catalão, o castelhano e particularmente o basco, sem dúvida o continuador do antigo ibérico.
Como os outros falares da região, o gascão vem sofrendo a influência da língua oficial, o francês, percebida claramente já no séc. XVIII por Bernardau, ao responder um questionário do conhecido Abbé Gregoire. Importante é o testemunho de Montaigne, em Essais, II, 17, de 1580, em que fala de um gascão puro, nas montanhas, “singularmente belo”. Recuando ainda mais, encontramos o famoso descorte de Raimbaud de Vaqueiras, redigido em cinco línguas, entre as quais o gascão, ao lado do provençal, do francês, do italiano e do português. Modernamente, autores do porte de Carlo Tagliavini, B.E. Vidos, G. Rohlfs e Pierre Bec, não hesitam em atribuir ao gascão o status de língua, levando em conta principalmente suas características lingüísticas, provenientes da ação do substrato próprio favorecida por circunstâncias históricas singulares. Com a nova política em relação às minorias lingüística do após-guerra, o gascão vem apresentando uma notável floração de novos escritores, poetas e estudiosos, que se dedicam ao estudo da língua em todos os seus aspectos. Buscam fugir à influência francesas, começando por estabelecer uma ortografia mais consentânea com seu sistema fonológico e com a tradição latina. Já se percebeu essa preocupação básica em outros ramos das línguas românicas, uma vez que a uniformidade ortográfica é um meio eficiente para se chegar a uma, pelo menos, relativa unidade na diversidade dialetal Nesse sentido, destaca-se a revista PER NOSTE, que vem publicando tanto escritos em geral, como gramáticas, tratados de ortografia etc.
Em vista do exposto, o perigo que corre o gascão atualmente parece bem menor do que faz supor o Livro Vermelho da UNESCO. As crianças o aprendem nas escolas e as numerosas publicações lhes fornecem constantes subsídios para leitura e a conseqüente prática usual da língua. O total de falantes ascende a 250.000 em território francês e 4.800 em território espanhol. É estranho que o Informe Comunitário da União Européia não cite o gascão; certamente o motivo não está em não considerá-lo em perigo, mas em incluí-lo no conjunto do occitano, como aliás fazem muitos lingüistas e dialetólogos que não o estudaram mais detalhadamente. Ainda não há informes sobre a reação dos gascões a respeito da assinatura da Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias pelo governo francês em maio do corrente ano; certamente, porém, não deixarão de usar essa arma valiosa em prol de suas justas reivindicações. Entretanto, o aranês, uma variante do gascão encravada em território espanhol, no Vale de Aran nos Pireneus, é, ao lado do castelhano, em virtude da Constituição Espanhola, e do catalão, por causa do Estatuto de Autonomia da Catalunha, a língua oficial da região de 620 km2 e 7.011 habitantes (1986). O reconhecimento oficial do aranês foi obtido com muita luta, cujos primórdios remontam a 1220, quando o Vale foi incorporado ao reino de Catalunha e Aragão; até mesmo as medidas centralizadoras de Felipe V pouparam as instituições políticas aranesas. Em 1983, foram oficializadas as normas ortográficas do aranês, elaboradas por L. Alibert e pelo Institut d’Études Occitanes; em 1984, um decreto da Ministério Catalão da Cultura prevê subvenções automáticas para todas as publicações em aranês.
Enquanto na França as minorias lingüísticas até agora não obtiveram conhecimento oficial, na Península Ibérica, pelo que se viu em relação ao aranês, a situação se apresenta mais favorável, principalmente em virtude da combatividade dos usuários das línguas minoritárias. Como os falantes do provençal ou occitano na França, os usuários do catalão na Península Ibérica têm uma longa tradição de luta por seu idioma, ao qual têm demonstrado particular aferro. Historicamente, podemos remontar à guerra civil de 1701 a 1713, depois da qual o castelhano foi imposto como língua oficial, embora os tribunais e as escolas continuassem a usar o catalão até 1858. Em 1931, o catalão recobrou o caráter de língua oficial em seu território, perdendo-a novamente logo depois da guerra civil de 1936 a 1939, quando sofreram dura repressão por parte do Generalíssimo Francisco Franco, levando-os a juntar-se aos bascos até em atos de terrorismo. Voltou a recuperar o caráter oficial em 1978 com a implantação da monarquia parlamentar do rei Juan Carlos. Essa longa trajetória de lutas por sua identidade lingüística e cultural imprimiu nos catalães um apego extraordinário a sua língua, tanto que o informe comunitário, “Produção e Reprodução dos Grupos Minoritários da União Européia”, encomendado pela Comissão Européia, considera o catalão como uma das línguas minoritárias que apresentam maior vitalidade. Em um universo máximo de vinte e oito pontos, a língua da Catalunha alcançou vinte e sete, embora apresente vigor decrescente nas regiões de Valência, nas ilhas Baleares, em Aragão e no Russilhão; em Alghero, na Sardenha, o catalão se mantém como a língua falada por seus 22.000 habitantes, ainda que praticamente todos sejam bilingües. Por outro lado, o Principado de Andorra, com seus 468 km2 e 65.877 habitantes, usa o catalão como língua oficial, constituindo-se numa garantia de sua perpetuidade, em que pese a presença do francês e do castelhano.
Entretanto, representantes das principais minorias lingüísticas da Península Ibérica, isto é, da Galiza, Euskadi (País Basco) e Catalunha, reuniram-se em Barcelona em julho de 1998 e firmaram a Declaração de Barcelona, documento em que fazem reivindicações de diversas naturezas com vistas à constituição de um Estado Espanhol Plurinacional. Ressaltam a contribuição histórica dessas comunidades para a grandeza e cultura do país e tomam posição perante a nova situação criada pela globalização e pela organização da União Européia, que consideram “uma realidade iniludível para nossos povos, pelo que, a partir de nossas instituições nacionais, estamos obrigados a estar presentes nas instituições européias representativas e a utilizar todas as vias, sejam diretas sejam hoje através do Estado Espanhol, que permitam defender as aspirações e os interesses dos povos catalão, galego e basco, tanto no campo político como no econômico, lingüístico e cultural” (2.1.§ 3º).
No aspecto específico que nos interessa aqui, a Declaração de Barcelona, com notável senso do valor da língua como reflexo da cultura e da representatividade de uma etnia, exige o “reconhecimento da oficialidade lingüística na Europa do catalão, do euskera e do galego, tendo além disso em conta que este último e o português formam parte do mesmo sistema lingüístico e, por isso, poderia ser usado imediatamente em qualquer instância européia. A cultura expressa nessas línguas deve gozar das mesmas facilidades de produção, expansão, difusão e publicidade de que gozam as culturas associadas às línguas oficiais dos Estados”.
Através da referência dessa citação, patenteia-se a consciência de que o galego está muito mais ligado ao português do que ao castelhano. Em relação ao galego, segundo o Informe Comunitário Produção e Reprodução dos Grupos Minoritários da UE, a situação é bastante satisfatória, somando vinte e um pontos de um máximo possível de vinte oito, relativos ao grau de ameaça de extinção. Talvez seja por isso que não consta entre as línguas em perigo na Europa no Livro Vermelho da UNESCO. A longa história da língua galega e uma consideração serena de sua situação atual no quadro das línguas ibéricas permitem um otimismo moderado quanto à sua perenidade. Inicialmente, segundo tese aceitável de Xavier Frias Conde, o galego-português representou um tronco lingüístico do qual se originaram o galego e o português; esse galego-português foi o veículo de expressão literária dos cancioneiros desde a primeira metade do século XIII. Posteriormente, porém, vicissitudes políticas separaram em dois ramos a língua comum. Enquanto o português acompanhava seus falantes em direção ao sul e absorvia outras influências, como a do moçárabe, o galego integrava um país, cuja língua oficial era o castelhano. Desse modo, a língua dos poetas da chamada Escola Gelego-Castelhana e dos escritores em prosa do século XIV em diante apresenta diferenças consideráveis, que não mais se confunde com o português. O fato de ocupar um território, cuja língua nacional não é a sua de origem, explica as inevitáveis influências castelhanas. Enquanto os escritores, mais conscientes de seu próprio idioma, evitavam cuidadosamente os castelhanismos desnecessários, o povo os assimilava com facilidade. Como o catalão, o galego sofreu restrições no decurso da História, sobretudo sob o regime do Generalíssimo Franco, sendo-lhe impostas as mesmas restrições, citadas acima, que ao catalão. Entretanto, as resistências opostas pelos galegos a tais imposições não foram tão fortes nem tão radicais quanto as dos catalães, divididos aqueles como estavam e, de certo modo, ainda estão, em duas correntes bem distintas. Enquanto uma procura aproximar-se o mais possível do castelhano, outra, mais conservadora, quer revitalizar suas raízes galego-portuguesas. Não é difícil perceber que os primeiros encaram a questão de modo mais político, enquanto os segundos contemplam mais os aspectos lingüísticos, sob cujo ângulo está inseparável e estruturalmente muito mais ligado ao português.
Atualmente, a imensa maioria dos habitantes da Galiza, composta pelas províncias de A Coruña, Lugo, Orense e Pontevedra, bem como nas zonas de fronteira lingüística com as províncias vizinhas de Oviedo, León e Zamora, falam o galego. No campo, geralmente se manteve o monolingüismo galego; as cidades apresentam um panorama mais castelhanizado, embora o galego seja o meio de comunicação no âmbito privado, segundo ficou demonstrado pelo Mapa Sociolingüístico Galego, elaborado desde 1991 pelo Seminário de Sociolingüística da Real Academia Galega. Quanto ao número de falantes, divergem os dados, mesmo os fornecidos pela Internet. Conforme o Mapa Sociolingüístico Galego, de um total de 2.659.578 pessoas, entendem o galego 2.455.000 e 2.100.000 o falam. O Informe Comunitário da União Européia dá um total de 2.420.000 falantes, assinalando ainda que “o fomento das línguas na Espanha, nos últimos anos, tem sido muito grande”, só comparável ao observado na Bélgica e na Suíça, países que têm mais de uma língua oficial em seu território.
Da mesma forma que o catalão, o galego foi reconhecido como a língua oficial da Galiza pela Lei de Normalização Lingüística, de 1983, como uma espécie de lei complementar da Constituição Espanhola de 1978. Um legislação bastante complexa detalha os direitos dos cidadãos de usar o galego nas administrações locais, na justiça, nas escolas, nos meios de comunicação de massa; destaque-se a obrigatoriedade do ensino do galego e da literatura galega em todos os níveis de ensino não universitários. Tudo aponta, portanto, pelo menos do ponto de vista institucional, para uma nova era de florescimento para essa língua românica tão próxima de nós. Podem os castelhanos pressioná-la para que se aproxime deles na ortografia e em outros aspectos periféricos; genética e estruturalmente, porém, o galego estará sempre muito mais perto do português. Atualmente, a união por ideais e reivindicações comuns com os catalães e os bascos, consolidada no Primeiro Encontro Tripartite, em Barcelona, em julho de 1998, no qual representantes dos três grupos étnicos e lingüísticos assinaram a firme Declaração de Barcelona, seguido do Segundo Encontro, em Bilbao em setembro, e do Terceiro, em Santiago em outubro do mesmo ano, permite prever um futuro mais seguro e tranqüilo para essas minorias lingüísticas, ainda que com muita luta.
A aplicação efetiva da Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias da União Européia exigirá sem dúvida muito empenho por parte dos responsáveis na Itália. Como adverte Andrea de Vecchi, “muitas daquelas variedades, que são chamadas “dialetos”, na realidade são línguas autônomas com características bem diferenciadas”. Aliás, a história da Península Itálica torna fácil compreender que o Ethnologue, do conhecido Summer Institute of Linguistics, em sua 13ª edição de 1996, enumere 33 línguas no território italiano, embora algumas ali sem maior expressão, como o albanês e o grego ao sul, o bávaro, o címbrio e o móqueno (germânicas) ao norte, o esloveno e o servo-croata (eslavas) no nordeste. As demais são consideradas dialetos italianos por romanistas, mais por razões práticas que lingüísticas. A Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias, porém, não faz distinção entre língua e dialeto, seguindo a tendência atual de reconhecer a individualidade lingüística de cada variedade, sem levar em consideração outros critérios que não os estritamente lingüísticos. Sob esse aspecto, merece destaque o movimento denominado Romania Minor, divulgado pela Internet, cujos propósitos estão sintetizados na Apresentação em 18 línguas: “Queremos apresentar um novo projeto sobre as línguas românicas minoritárias. Aqui encontrareis informações como a sua localização geográfica, os seus dialetos, qual é sua situação atual, uma breve gramática de cada uma das línguas, textos literários etc.”
As páginas posteriores desenvolvem esse projeto sobre a Língua Piemontesa, Língua Lombarda, Língua Siciliana, Língua Sarda Logudoresa etc. O resumo gramatical apresenta os fatos mais marcantes e exemplifica com a tradução da oração dominical. Como se vê, a proposta da Romania Minor enquadra-se no espírito da Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias, tendo dado valiosos subsídios sobretudo ao governo italiano, por sinal muito atento e sensível ao problema lingüístico na Península, mesmo antes da Carta. Na Itália, estatutos especiais direcionam a promoção e a valorização das línguas regionais ou minoritárias. Como exemplo, vejamos alguns dados da Legge Regionale, n.º 26, de 25 de outubro de 1997, relativa à cultura e à língua da Sardenha, que entrou em vigor a 1º de janeiro do ano passado. Consta de 27 artigos, o primeiro dos quais diz o seguinte:
“1. A Região Autônoma da Sardenha assume a identidade cultural do povo sardo como bem primário a ser valorizado e promovido e indivisível em sua evolução e em seu crescimento, o pressuposto fundamental de qualquer intervenção com vistas a ativar o progresso pessoal e social, os processos de desenvolvimento econômico e de integração interna, a edificação de uma Europa fundada sobre a diversidade das culturas regionais.
2. Para tal fim, garante, tutela e valoriza a livre e multiforme expressão das identidades, das necessidades, das linguagens e das produções culturais na Sardenha, de conformidade com os princípios inspiradores do Estatuto especial.” (Art. 1. Finalità)
Complementando e explicitando essa visão, o Art. 2 declara a paridade da língua sarda em relação à italiana, em todos os seus aspectos, de acordo com o pluralismo lingüístico consagrado pela Constituição Italiana e por outros Atos internacionais, sobretudo a Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias e a Convenção Européia pela Proteção das Minorias Nacionais, de 1º de fevereiro de 1995. A lei inclui nesse acervo museus, bibliotecas, antigüidades, obras de arte, arquivos, centros de documentação públicos ou privados, produção editorial da e sobre a Sardenha, monumentos históricos, arquitetônicos, antropológicos, paisagísticos e ambientais.
Por outro lado, reconhece que a Sardenha não dispõe de unidade lingüística e por isso estende as mesmas atenções ao catalão de Alghero, ao sassarês e ao galurês, duas variantes do sardo, bem como ao tabarquino, variedade lingüística de origem genovesa, das ilhas do Sulcis, San Pietro e San Antiocho, no extremo sul ocidental da Ilha.
No plano geral, estabelece a organização funcional da Região Autônoma, os escalões administrativos, as escolas, determina as fontes de financiamento dos empreendimentos culturais, a distribuição de bolsas e os valores para as diversas atividades, geralmente em bilhões de liras - tudo muito bem detalhado.
Tomamos o sardo, dentro do universo italiano, como exemplo precisamente por ser uma língua românica de grande interesse lingüístico para a Filologia Românica por seu caráter tão arcaizante em relação às outras línguas românicas. Caso esse respeito pelas minorias lingüísticas for consubstanciado por Leis Regionais, como a que foi sucintamente comentada, e caso forem elas devidamente aplicadas, o receio de extinção de tantas línguas minoritárias ou regionais, manifestado pelo Livro Vermelho da UNESCO entre outros, certamente desaparecerá; ao contrário, haverá uma grande floração lingüística, literária e cultural, como aliás esperam os próprios legisladores.
Situação confortável verifica-se também na Suíça, onde há tempo são reconhecidas as quatro línguas do país: alemão, francês, italiano e rético ocidental. No contexto suíço, o rético ocidental é a língua minoritária; é dito ocidental, porque existem o central, ou dolomítico, e o oriental, ou friulano. Embora falado por apenas 1% da população, em torno de 52.000 usuários principalmente no Cantão dos Grisões ao sul, o rético ocidental, designação pela qual essa língua românica é conhecida entre nós, enquanto os próprios usuários a denominam romontsch ou rumantsch, donde a forma aportuguesada romanche, foi reconhecido como a quarta língua nacional, depois de um plebiscito já em 1938. A Ligia Romontscha ou Lia Rumantscha, de Coira, tem sido a responsável pela defesa e afirmação dessa variedade românica, tendo conseguido unificar a ortografia em 1998, como primeiro passo de um plano mais amplo de unificação.
Já o rético central ou dolomítico situa-se em território italiano e parte no austríaco, merecendo as mesmas atenções do governo italiano que as outras minorias lingüísticas. Situa-se no maciço dos Dolomitas dos Alpes Em 1998, romanistas, escritores e interessados, austríacos em sua maioria, chegaram a um acordo no estabelecimento de uma norma ortográfica comum, mais simples, da qual foram eliminados os numerosos sinais diacríticos usados até agora, que mais confundiam que ajudavam. A responsável foi a Chesa dl Ladins (“Casa dos Ladinos”), correspondente à Lia Romantscha dos grisões. Quanto ao número de falantes, o informe Produção e Reprodução dos Grupos Lingüísticos Minoritários da UE calcula em 56.000, embora haja discordância quando se cotejam diversas fontes.
O rético oriental é mais conhecido por friulano e encontra-se em território italiano, com influências a leste, particularmente na Península da Ístria. Até o século passado, era usado nas regiões de Trieste e de Muggia. Hoje, o vêneto se lhe sobrepôs, da mesma forma que se infiltrou ao longo do vale do rio Piave, separando o ramo oriental do central, como a infiltração de população de língua alemã em grande parte dos vales dos rios Ádige e Isarco havia quebrado a ligação entre as variedades central e ocidental. Entretanto, ao contrário das duas outras variantes, existe documentação consideravelmente antiga em friulano e uma tradição literária ininterrupta, que nunca perdeu o caráter vernáculo. Na poesia, o friulano conta com uma das mais belas poesias líricas populares da Itália, além de muito rica, comparável às do galego. Já no séc. XVI começou sua fase propriamente literária, com grandes nomes nos séc. seguintes, como Ermes de Colloredo (1622-1692) e Pietro Zorutti (1792-1867), e que continuou sem interrupção até nossos dias, tornando o friulano literariamente uma das minorias lingüísticas mais prestigiosas da Península. Quanto ao número atual de falantes do friulano, as estatísticas variam bastante, indo de 350.000 a 720.000, cerca de 53% da população da Região Autônoma denominada Friuli-Venezia Giulia, enquanto 4,3% falam o esloveno.
Juridicamente, porém, ainda se fez pouco de prático. A Lei Regional de 1996 do Parlamento da Região fixa os mesmos objetivos estabelecidos em relação ao sardo, de proteção e de promoção da língua e da cultura friulanas, segundo os ideais da União Européia. Contudo, toda a documentação oficial ainda é feita em italiano e o ensino do friulano nas escolas continua problemático, pois falta-lhe ainda um estatuto definido.
Entramos, por fim, no balcano-romance, cujo representante único é o romeno. A questão do moldavo, considerado por lingüistas russos como uma segunda língua românica no Oriente, praticamente evaporou-se; nas páginas da Internet, por exemplo, consta que o idioma oficial da Moldávia é o romeno e não o moldavo, postulado de caráter político com muito pouco de lingüístico. O não reconhecimento internacional como língua oficial do país e o esfacelamento da União Soviética colaboraram para que a questão se resolvesse sem maiores conseqüências. Para completar o panorama da situação românica nos Bálcãs, falta mencionar o megleno-romeno, cujos 300.000 falantes se autodenominam vla]i e ocupam um território ao norte da Grécia e ao sul da Macedônia e da Bulgária, no vale do rio Meglena; o aromeno, também denominado mácedo-romeno, é falado no norte da Grécia (50.000), na Albânia (10.000), na Macedônia (50.000) e no sul da Bulgária (40.000). Essas duas variantes sofrem, há décadas, forte influência do grego e seus falantes são bilingües em sua quase totalidade. Mais distante, no nordeste da Península da Ístria, em território atualmente croata, o ístrio-romeno, com seus parcos 2.000 falantes no máximo, todos bilingües, é o dialeto romeno mais ameaçado de extinção, segundo o Livro Vermelho das Línguas Ameaçadas da UNESCO (1996). Também o aromeno está sob tal ameaça, mas, segundo recentes pesquisas, por sua própria incúria. Perfazem um exemplo do que se denomina nação remanescente: não desenvolveram uma consciências nacional, não têm literatura escrita nem mitos nacionais, como os albaneses ou os macedônios, nem lutam pelo reconhecimento de sua língua e de sua cultura. Dentre as variantes do romeno, apenas o mácedo-romeno obteve reconhecimento e status oficial na Macedônia e na Albânia. Resta esperar para saber como a Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias será considerada e aplicada nos Bálcãs. Algumas minorias, que não se empenharem por algum reconhecimento oficial, certamente se tornarão ainda mais vulneráveis em sua própria existência em nosso mundo globalizado.
Deste passeio pelo mundo europeu das minorias lingüísticas, fica a impressão, razoavelmente fundada, de que novos tempos se descortinam para os usuários das línguas minoritárias no Velho Continente. Em particular, os mais combativos, que durante tanto tempo têm lutado pelo reconhecimento de sua identidade étnica, lingüística e cultural, dispõem atualmente de instrumental jurídico de caráter internacional para alcançar tais objetivos. Caso a União Européia se concretize em todos os campos, Estados de plurilíngüismo oficial e institucionalizado, como a pequena Suíça com seus quatro idiomas oficiais, ou a Bélgica, com três, serão mais numerosos no território europeu.
Apontamos acima algumas das dificuldades enfrentadas pelas minorias, apesar dos documentos oficiais. Há, contudo, um modelo, que pode ser copiado, o sistema implantado na Bélgica. Há cerca de quinze séculos o país vinha enfrentando problemas étnicos e lingüísticos entre neerlandeses (56,4% da população), de língua germânica, e valões (41%), de língua românica. Por muito tempo o francês foi a única língua oficial; mas em 1932, o neerlandês foi declarado oficial em Flandres, o francês, oficial na Walônia e o alemão, na região de Eupen e Saint Vith (1,5%), enquanto a região da capital Bruxelas adotou o bilingüismo. Posteriores reivindicações, sobretudo por parte dos neerlandeses, levaram à fixação de limites claros entre as etnias, consagrando o monolingüismo de Flandres, da Walônia e de Eupen-Saint Vith e do bilingüismo da região de Bruxelas, em 1962. Com o correr do tempo, os problemas surgidos foram sendo solucionados por meio de leis específicas, que regulamentaram o uso dos idiomas na administração, no parlamento, no judiciário, no exército e nas jurisdições militares, perfazendo um código que permite a convivência harmônica entre os vários idiomas. Por suas características abrangentes e equilibradas, modificadas e atualizadas sempre que necessário, a solução belga pode ser um ponto de referência para os países às voltas com problemas de minorias lingüísticas, cuja solução se tornou uma condição fundamental para o êxito do sonho da União Européia. A Carta Européia das Línguas Regionais ou Minoritárias constitui um passo importante nessa direção; resta esperar que ela seja devidamente aplicada e produza os frutos esperados.