Peculiaridades sintáticas da língua portuguesa falada no Brasil neste século
Evandro Eduardo Franklin Braga - (UERJ)
Este pequeno estudo tem como finalidade listar as peculiaridades sintáticas relevantes do português falado no Brasil neste século, bem como registrar o ingresso e permanência de algumas dessas peculiaridades na literatura e na escrita culta atual.
Inicialmente, é preciso lembrar que a estrutura de uma língua reside principalmente na sintaxe. É nessa parte da gramática que se encontram os maiores impasses e objeções no que diz respeito à aceitação das diferenças entre o português do Brasil e o português de Portugal.
Passemos, então, a documentar as referidas peculiaridades:
1 - Colocação pronominal livre: Me disseram, Poderia se sentar
Lê-se em João Ribeiro (1979, pp.52-3):
O brasileiro diz comumente:
- Me diga... me faça o favor...
É esse um modo de dizer de grande suavidade e doçura ao passo que o ‘diga-me’ e o “faça-me” são duros e imperativos.
O modo brasileiro é um pedido; o modo português é uma ordem.
Em “me diga” pede-se: em “diga-me” ordena-se. Assim, pois, somos inimigos da ênfase e mais inclinados às intimidades.
Desenvolvendo as observações de João Ribeiro, Cândido Jucá (pp.403-4), em sua Gramática histórica do português contemporâneo, faz as seguintes considerações:
Conhecendo somente a ênclise, é impossível aos portugueses começar a frase por um pronome pessoal atônico.
[...]
Se se trata de simples aviso, escrevemos: Aluga-se esta casa; se queremos prescrever, sentenciamos: Cumpra-se a lei; caso queiramos dar ordem, assim falamos: Ponha-se daqui para fora; para uma intimação violenta diremos: Passe-me os papéis.
Mas rogamos assim: Lhe diga, meu bem, onde está o dinheiro.
Em nossa literatura, podemos encontrar exemplos de colocação pronominal livre:
(1) “Guma pulou da cama, ainda não tinha se despido completamente. Se atirou porta afora [...] (Jorge amado, Mar morto, 45ª ed., Rio de Janeiro, Record, 1978, p.146)
(2) “Te beijo no cangote/ e quieta penso: [...]” (Marina Colasanti, Rota de colisão, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p.32)
2 - A preposição em com verbos de movimento: Cheguei na estação, Voltou na praia
Para Luiz Carlos LESSA (1976, p.81), o uso da preposição em com verbos de movimento é “sintaxe caracteristicamente brasileira, pouco importando que também a tenham usado em Portugal, há quatrocentos anos atrás.”
A construção em apreço é encontradiça nas literaturas modernista e contemporânea.
(3) “Quando Macunaíma voltou na praia se percebia que brigara muito lá no fundo.” (Mário de Andrade, Macunaíma, 23ª ed., Belo horizonte, Itatiaia, 1986, p.130)
(4) “Ontem, quando cheguei em casa, os canários estavam mortos, as tripas de fora.” (Carlos Heitor Cony, O ventre, 2ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p.166)
3 - O pronome reto em função objetiva: Vi ele, João fez ela entrar no quarto
Referindo-se ao fato sintático supradito, nos seus Dispersos, Mattoso Câmara (1972, pp.47-8), primeiramente alerta-nos: “O ensino escolar o condena [...].” Depois argumenta: “É, todavia, traço geral típico do português oral de todos os níveis sociais no Brasil; só o evitamos em certas situações nas quais aquele que fala sente toda sua responsabilidade de homem instruído e, mesmo assim, ele não chega sempre a eliminá-lo de todo.”
Nos textos literários sobejam exemplos desse fato sintático:
(5) “Dois anos no presídio, no meio dos criminosos, com o mar imenso cercando eles de todos os lados.” (José Lins do Rego, Usina, 6ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, p.3)
(6) “Amália: É o cancioneiro pátrio, é o Tabuleiro da Baiana, Os Quindins de Iaiá, a Lata de Leite, a Receita de Vatapá, o Doce de Coco, é o matar a fome erigido em cúpula da consumação amorosa, a velha cópula também conhecida como foda, exempli gratia, vou comer ela, papei ela todinha, [...]” (Antonio Callado, Reflexos do baile, 3ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p.28)
4 - O verbo ter empregado pelo impessoal haver: Tem pai que vale por dois, Você gosta de promoção? Aqui tem várias.
O emprego impessoal do verbo ter com sentido existencial, segundo Luiz Carlos Lessa (1976, p.83), é “uma sintaxe raríssima em Portugal”.
Clóvis MONTEIRO (1959, p.140), em seu Português da Europa e português da América, cita um escritor nortista, Bia Mendes, já falecido, que resolveu mostrar que as particularidades gramaticais do português do Brasil não eram mais que reminiscências do falar indígena. Bias refere-se, em primeiro lugar, ao caso do verbo ter como impessoal. No seu entender, expressões como tem homens são meras traduções literais de frases do tupi, como orecô apgauaitá. Para Clóvis Monteiro, tal hipótese é descabida.
Alerta-nos Sílvio ELIA (1976, p.84): “O hábito é pan-brasileiro e se encontra arraigado tanto na linguagem popular, quanto na familiar.”
Celso CUNHA (1985, p.127), em sua Nova gramática do português contemporâneo, diz que “o uso de ter impessoal deve estender-se ao português das nações africanas.”
A seguir, dois exemplos do fato sintático sobredito presentes em nossa literatura:
(7) “No meio do caminho tinha uma pedra” (Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo, Rio de Janeiro, Record, 1999, p.34)
(8) “-Tem coisa na história dessa mulher - insistiu Serpa [...]” (Fernando Sabino, Martini seco, 5ª ed., São Paulo, Ática, 1991, p.19)
5 - Emprego da preposição em, ao invés de a, exprimindo proximidade: Sentou na mesa para jantar, Ele estava na janela
Segundo Luiz Carlos Lessa (1976, p.87), “[...] a preposição em denotando contigüidade, proximidade, é de tal forma freqüente no português americano, que, conforme nos lembra Nascentes em O Linguajar Carioca, Camilo Castelo Branco a empregou quando quis imitar a fala de um brasileiro, fazendo-o dizer que alguém estava na janela, ao invés de à janela.”
Na literatura, podemos encontrar exemplos desse fato sintático:
(9) “Os moleques [...] ficaram na porta impacientes [...] (Aníbal Machado, O piano in: A morte da porta estandarte e outras histórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 1965, p.191)
(10) “Existiam outras pessoas na mesa mas eu não tinha coragem de olhá-las.” (Rubem Fonseca, A coleira do cão, São Paulo, Círculo do Livro, p.149)
6 - Construção gerundial em vez de infinitivo e preposição a: Estar estudando, Vinha chegando
Os brasileiros empregam mais o gerúndio do que o infinitivo, de acordo com os tipos clássico e arcaico.
Em Portugal, segundo Francisco da SILVEIRA BUENO (1958, p.308), existem as correspondentes: Estar a estudar, Vinha a chegar.
Vejamos dois exemplos da referida construção, um encontrado na literatura modernista, e o outro, na literatura hodierna:
(11) “Quando foi de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração medonha.” (Mário de Andrade, Macunaíma, 23ª ed., Belo Horizonte, Itatiaia, 1986, p.57)
(12) “Minha paralisia acabou e, animado pela mudança da voz, eu disse: ‘Estava dando uma olhada lá e achei ele num canto; é da senhora?’” (Luiz Vilela, O violino in: O violino e outros contos, 3ª ed., São Paulo, ática, 1993, p.13)
7 - Construção comparativa ao verbo preferir: Prefiro mais vinho do que conhaque
Em Portugal, teríamos a correspondente: Prefiro vinho a conhaque.
“Todos fazem acompanhar preferir de mais ou de antes: prefiro antes de morrer do que fazer isso.” - diz-nos Francisco da SILVEIRA BUENO (p.308).
Em sua obra Sobre a norma literária do Modernismo, Raimundo BARBADINHO NETO (1977, p.52) afirma que
A gramática, debruçando-se tão-somente sobre a etimologia do verbo, mas sem atentar para o benefício semântico que os advérbios com este verbo. Há uma maior participação do indivíduo que fala, ao enunciar que “prefere antes” ou que “prefere mais” uma coisa entre duas à sua escolha. Quem simplesmente anuncia que “prefere uma coisa a outra”, numa como aceitação passiva, pouco se lhe importa que os acontecimentos se realizem ao revés de sua preferência.
8 - Uma única regência para o verbo assistir: Assisti o filme, A doutora assistiu o paciente
Alerta-nos Francisco da Silveira Bueno (1958, p.308): “As duas regências do verbo assistir: assistir a (estar presente, tomar parte em) e assistir o (prestar socorros) estão reduzidos a esta última apenas: F. assistiu o jogo, o médico assistiu o doente.”
A seguir, dois exemplos da referida construção encontrados na literatura modernista:
(13) “[Ricardo] assistia o gado sair para o pastoreador [...]” (José Lins do Rego, O moleque Ricardo, 7ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1966, p.189)
(14) “O jeito que [a maioria desses nazistas] têm é [...] assistirem a volta triunfante dos pracinhas vivos.” (Rachel de Queiroz, A donzela e a moura torta, Rio de Janeiro, José Olympio, 1948, p.162)
9 - A ordem completamente direta: Um semeador saiu para semear, Nesta oficina se fazem consertos
Em Portugal, segundo Francisco da Silveira Bueno (1958, p.308), teríamos as equivalentes: Saiu um semeador a semear, Fazem-se consertos nesta oficina.
Para Serafim da Silva NETO (1963, p.243), “é outro o boleio da frase, a construção mais direta, a inversão menos freqüente”.
Em nossa literatura, é fácil encontrar abono para o fato sintático em apreço:
(15) “O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações.” (Graciliano Ramos, Vidas Secas, 30ª ed., São Paulo, Martins, 1972, p.153)
(16) “Os relógios vicejavam estrelados em suas corolas de cor.” (Ferreira Gullar, Crime na flora, Rio de Janeiro, José Olympio, 1986, p.46)
Algumas das referidas peculiaridades tendem a entrar nos textos escritos contemporâneos de nível culto.
Eis alguns exemplos que comprovam tal afirmação:
(17) “Ao chegar na porta da casa, Rubens viu o motorista Bonifácio com o capitão Cláudio Vasconcelos e mais dois homens.” (Jornal do Brasil, 18 abr. 1999, p.28)
(18) “[...] 200 pessoas que estiveram no estádio ficaram animadas. Teve até queima de fogos ao final do coletivo.” (Extra, 19 jun. 1999, p.3)
(19) “[...] o apoiador rubro-negro, que reviu todos os 39 gols do time no Carioca na fita que o extra venderá amanhã [...], e se emocionou ao assistir novamente o golaço.” (Extra, 26 jun. 1999, p.1)
(20) “Scheila Carvalho namorou um rapaz que preferia tomar chope e jogar futebol com os amigos do que ficar com ela.” (Manchete, 26 jun.1999, p.10)
Pelo fato de existirem outras construções sintáticas brasileiras, ampliaremos este trabalho em breve.
À guisa de conclusão, transcrevemos um pensamento de Serafim da Silva Neto (1963, p.265): “O essencial é que os professores [...] não esmoreçam no bom combate. Não no combate cego e desatinado, preso à servil imitação d’antanho, surdo às realidades da evolução - mas no combate bem orientado, que leva em conta os fatos da língua (o grifo é nosso) e não esquece a distinção entre a língua escrita, que é escolha e disciplina, e as línguas faladas, livres ao sabor das paixões.”
Referências bibliográficas
AMADO, Jorge. Mar morto. 45ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1978.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record,
1999.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 23ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.
BARBADINHO Neto, Raimundo. Sobre a norma literária do Modernismo. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1977.
CALLADO, Antonio. Reflexos do baile. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
CÂMARA Júnior, J. Matoso. Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1972.
COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
CONY, Carlos Heitor. O ventre. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo.
2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ELIA, Sílvio. Ensaios de filologia e lingüística. 3ª ed. Rio de Janeiro: Grifo, 1976.
FONSECA, Rubem. A coleira do cão. São Paulo: Círculo do Livro.
GULLAR, Ferreira. Crime na flora. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
JUCÁ Filho, Cândido. Gramática histórica do português contemporâneo. Rio: Epasa.
LESSA, Luiz C. O modernismo brasileiro e a língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Grifo, 1976.
MACHADO, Aníbal. A morte da porta estandarte e outras histórias. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1965.
MONTEIRO, Clóvis. Português da Europa e português da América. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Acadêmica, 1959.
QUEIROZ, Rachel de. A donzela e a moura morta. Rio de Janeiro: José Olympio,
1948.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 30ª ed. São Paulo: Martins, 1972.
REGO, José Lins do. O moleque Ricardo. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.
_____ . Usina. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
RIBEIRO, João. A língua nacional e outros estudos lingüísticos. Petrópolis: Vozes;
Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1979.
SABINO, Fernando. Martini seco. 5ª ed. São Paulo: ática, 1991.
SILVA Neto, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 2ª ed.
Rio de Janeiro: INL/MEC, 1963.
SILVEIRA BUENO, Francisco da. A formação histórica da língua portuguesa. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Acadêmica, 1958.
VILELA, Luiz. O violino e outros contos. 3ª ed. São Paulo, Ática, 1993.