A marcação lingüística do jogo temporal na estruturação de discurso-testemunho da história oral de Belo Horizonte.
Lilian Arão- PUC- Minas
1- Considerações preliminares
“Acho que isso aqui ... sei lá..., acho que tá bom ,né? ... É crescimento, né? Sabe qu’eu fico com pena... qu’eu tô breve... num tem escapula!... Que coisa bem feita, né?” (Informante do Projeto “Anônimos Notáveis” do CRAV)
Interpelado pela entrevistadora sobre o progresso, o protagonista do discurso a ser aqui considerado atiça-nos a curiosidade, que sempre moveu pensadores e homens comuns, em desvendar os mistérios que envolvem a noção de tempo. Ao dizer, em tom confessional, que “está breve”, o nosso informante nos remete ao estado fugidio e efêmero da vida, bem como à inexorabilidade da morte, que mostra o caráter irreversível do tempo (no caso, em sua face mítica, segundo Nunes, 1988). Não é injustificada, pois, a afirmativa contida no excerto acima: “Num tem escapula”.
A seguinte pergunta de Santo Agostinho resume, muito bem, no dizer do mesmo Nunes ( 1988:16), a nossa perplexidade:
“O que é por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa pergunta, já não saberei dizê-lo.”
Segundo Fiorin (1996:42), as reflexões sobre o tempo começaram com uma abordagem mítica, dando lugar mais tarde à reflexão filosófica, “que ao estabelecer bases de compreensão do tempo físico e ao perceber a sutileza e a complexidade da experiência temporal humana, desemboca na análise lingüística”, que constitui o interesse maior do presente trabalho.
Similarmente à linguagem, conhecida quando a praticamos e desconhecida quando a interrogamos, o tempo permeia a nossa vida, embora não saibamos defini-lo. De certa forma, a experiência individual bem como a social e cultural interferem na concepção que dele fazemos. Nunes (1988) apresenta um quadro teórico para diferenciar essas modalidades, afirmando que, da percepção do movimento exterior das coisas, remetemo-nos a um conceito de tempo físico, traduzido por padrões de medidas. A experiência da sucessão dos nossos estados internos leva-nos ao conceito de tempo psicológico, ou tempo vivido, caracterizado pela subjetividade, que, ao sabor de sentimentos e lembranças, engendra uma ordenação imprecisa. Além desses, mencione-se o tempo cronológico, considerado como o tempo dos acontecimentos, regulador de nossa existência cotidiana já que é ele que fixa o sistema de calendários. É um tempo socializado, que firma expressões temporais específicas de cada cultura, como, por exemplo, o tempo litúrgico, dos ritos e celebrações religiosas, ou o tempo político, que em nossa sociedade fixou a periodicidade das eleições presidenciais de quatro em quatro anos. Isso sem falar no tempo histórico, que diz respeito à duração das formas históricas de vida, ritmada por fatos diversos, que integra fases e períodos significativos: guerras, invasões, conquistas, descobertas, migrações, etc.
Por fim, temos, ainda, o tempo lingüístico que, na concepção de Benveniste (1974: 73), “está organicamente ligado ao exercício da palavra, definindo-se e ordenando-se como função do discurso. Esse tempo tem seu centro- um centro gerador e axial ao mesmo tempo- no presente da instância da palavra”. Trata-se de um tempo que não se reduz às divisões do tempo cronológico, mas, sim, que é ordenado pela enunciação, instauradora de um “agora”, que é reinventado a cada vez que o enunciador inicia uma instância discursiva, fazendo com que cada ato de fala seja um tempo novo, ainda não vivido. Dessa sorte, o tempo lingüístico estrutura suas próprias divisões, em sua própria ordem, independentemente do tempo cronológico e do tempo físico.
Segundo se pode constatar, falar do tempo é tratar de uma questão plural, já que seu conceito é multíplice. Esse termo, indubitavelmente, nos remete a dois planos de descrição: o da linguagem e o do mundo. Sublinhe-se, contudo, que as noções de ordem (sucessão, simultaneidade), duração e direção, tal como a de permanência, perpassam por todas as modalidades de tempo.
À luz de uma concepção de linguagem como atividade que se produz no ato da enunciação, este trabalho propõe um estudo da categoria de tempo, que se constitui, em termos externos, num dos pontos norteadores do indivíduo em relação ao universo circundante, e, no nível interno, ou seja lingüístico, à sua ação no interior da instância enunciativa, que, no caso em pauta, envolve uma narração oral de cunho histórico. Com esse estudo, pode ser que depreendamos alguma diferença no tratamento mais ou menos subjetivo do tempo, conforme o maior ou menor envolvimento do narrador.
Dessa forma, interessa-nos detectar e examinar os recursos lingüísticos- discursivos, textuais, conversacionais e gramaticais- utilizados na expressão temporal, tal como processada num texto documental da história de vida de um cidadão nascido e criado em Belo Horizonte.
Para tanto, tomamos como “corpus” um dos inquéritos que integra o Projeto “Anônimos Notáveis” do CRAV, em que o informante, na época com 93 anos, narra sua história pessoal de vida e rememora fatos e eventos concernentes à história de Belo Horizonte. Num total de 1h40’, o texto vai sendo construído por um narrador que, com entusiasmo, fala sobre o Bairro da Lagoinha dos primeiros anos da cidade, a Praça do Mercado e os costumes da época, levando-nos a acompanhá-lo às festas, enterros, namoros, etc. De família pobre, ele cursou somente o primário, tendo exercido vários ofícios, sobretudo de tipógrafo na Imprensa Oficial.
Gravada em vídeo-cassete, a entrevista em questão se caracteriza como um diálogo de caráter assimétrico, que, nos termos de Castilho (1990: 122), consubstancia uma “situação de entrevista tematicamente orientada”, uma vez que a malha tópica vai sendo, em princípio, tecida por agenciamento de duas documentadoras do CRAV.
Lembrando com Nunes(1988) que “a arte de narrar oralmente cria um espaço e um tempo complementares à margem da atividade cotidiana”, cabe-nos mostrar, a partir de pistas presentes no enunciado, como se produz o tempo da enunciação e dos eventos/ fatos narrados no discurso-testemunho de um cidadão belorizontino de terceira idade.
2- Aspectos do jogo temporal e sua marcação no “corpus” em análise
Tendo em mente que toda narrativa é uma transformação correlacionada a um antes e um depois controlados, a partir da instância enunciativa, pelo enunciador, conclui-se que o tempo lingüístico relaciona-se com a ordenação dos estados e transformações narrados, cuja sucessividade não precisa ser necessariamente levada em conta. No caso do “corpus” aqui em exame, a entrevistadora busca estabelecer uma seqüência cronológica que compreende a infância, a adolescência, a fase adulta e a terceira idade do informante, buscando, de certa forma, reconstruir, em linha progressiva, a sua história pessoal e, com isso, a própria história de Belo Horizonte.
Valendo-se de formas dêiticas verbais e adverbiais, o nosso depoente constrói um discurso que segue, várias vezes, uma certa cronologia, conforme nos comprovam exemplos como o seguinte:
(1) Inf.: Essa ponte era na Lagoinha. Que eu fui crescendo, aí eu fiquei conhecendo as ruas do bairro, já com sete anos. Depois, eu cresci mais um pouco, aprendi a andar na cidade.
Contudo, por se tratar de informante idoso, a condução da documentadora e o respeito à cronologia dos eventos referidos nem sempre vigoram. Revela-nos bem isso a passagem a seguir, na qual a entrevistadora solicita maiores informações sobre o bonde.
(2) Entr.: E... e andava gente de todo jeito, né?
Inf.: Não andava... aí é que tava... aí vamos começá o seguinte... vou voltá à minha infância... prá entrá no bonde (...) tinha que ser calçado... não podia entrá descalço...
Outro mecanismo de ruptura com o tempo (passado) do evento é o uso do presente onitemporal, veiculado em comentários que traduzem verdades eternas, ou que se pretendem como tais quando o locutário utiliza um tempo que referencia um momento ilimitado, que não diz respeito a um acontecimento determinado, rompendo, assim, com uma seqüência cronológica prevista:
(3) Entr.: Quando fazia calor ( o paletó) não incomodava não?
Inf.: Não incomodava não. (...) A gente quando é moço, tudo tá bonito, não tem calor, não tem frio.
(4) Entr.: Eles ( família Melo Franco) eram ricos?
Inf.: Rico? Bota dinheiro nisso! É rico! E tem senadô pobre?
Do mesmo modo, o emprego de discurso reportado, ou seja, a incorporação de instâncias enunciativas produzidas por outro locutor, corta a cronologia pretendida pela entrevistadora, servindo para presentificar o evento/fato referido. O excerto abaixo, em que a documentadora procura saber mais acerca de como eram feitas as compras nas “vendas” de antigamente, nos fornece um bom exemplo disso:
(5) Entr.: Tinha mais confiança?
Inf.: Tinha, né? Hoje não tem não. Hoje, se pobre precisá duma coisa fiada..., não tem não! “Ó..., me dá ai um quilo de arroz fiado!” (...) “Ó, não posso não!” Se chegá um rico... “Pode levá um saco.” Precisa nem de pagá. Isso tudo é assim, viu? É a vida.
Tais subversões, esclareça-se, não conferem ao texto oral uma desorganização, mas servem de aproximação do tempo enunciativo, no qual o tempo cronológico se pluraliza pelas linhas de existência dos personagens, dimensionando os acontecimentos e suas relações. Na célula dialogal a seguir, temos um cruzamento temporal de presente avaliativo- apreciativo do progresso de Belo Horizonte e a remissão a estados anteriores:
(6) Entr.: (...) O que o senhor desejaria que fosse essa cidade pro futuro?
Inf.: Ah... é muito difícil..,. porque ela tá crescendo demais .né?... Que eu vi essa cidade nascê, sete anos depois dela criada... que foi (pra ser) a capital. Eu nasci e vim acompanhando, nesses noventa anos, esse crescimento, uma coisa fantástica, fora de série! Porque tá crescendo depressa..., porque São Paulo tem quatrocentos ou quinhentos ano... é aquele São Paulo..., Rio de Janeiro..., mas Belo Horizonte tá crescendo dimais... muito depressa!
Na busca de uma interação maior com sua interlocutora, nosso informante obtém o efeito de presentificação através de confrontos entre o passado e o presente, com valorização constante daquele:
(7) Entr.: E como é que era o namoro?
Inf.: Olha, o namoro, a gente, não era muito fácil as moça saí com a gente não. (...) Hoje as moças já saem, não fala, nem volta né? Sai e não volta.
Outro confronto temporal é feito através de uma indagação à documentadora acerca de algum local, objeto, costume, etc., desconhecidos, ou não mais usados, hoje.
(8) a- Inf.: Aí eu fiquei rapazinho. Aí, cê sabe, o rapazinho... comecei a usar bengala. Cê sabe o que é usar bengala?... Não sabe, né?
b- Inf.: Ocê sabe quantos anos tem isso? Mais de oitenta... mais de oitenta...
c- Inf.: Cê já viu bonde?
Lembrando com LE VEN (1998:21) que “a história de vida é re-presentação, um refazer de uma vida (...) em que narradores dão sentido a sua própria vida e também ao complexo das relações sociais num período da história”, depreendemos, na e pela ação narrativa memorialística do testemunho de vida aqui considerado, aspectos da história de Belo Horizonte. Assim é que as lembranças de sua infância nos reporta ao bairro Lagoinha, por onde transitavam as carroças de pedras vindas da pedreira Prado Lopes, ao uso das palmatórias, às brincadeiras de rua, às famosas e aterrorizantes enchentes do Arrudas, etc. Por sua vez, o relato da adolescência nos conduz a lojas como a Guanabara, ao “footing” da Afonso Pena, a cinemas como o Odeon, onde as moças iam com chapéus enormes, que atrapalhavam a visão da platéia. A menção à fase adulta nos faz rever a luta pela sobrevivência, a procura de emprego, os velhos métodos tipográficos da Imprensa Oficial. Por fim, na terceira idade do nosso informante, ouvimos-lhe as reclamações quantoo ao progresso e registramos o seu saudosismo em relação ao passado.
Vê-se, pois, que, mesmo enfocado brevemente, o documento testemunhal aqui examinado constitui-se numa fonte de riqueza inegável para o conhecimento da vida que pululava em tempos idos de Belo Horizonte.
3- Conclusão
Concluindo, assinale-se que, na tessitura oral da sua história de vida, o informante, cujo discurso analisamos, deixa transparecer o aspecto paradoxal da temporalidade: se, por um lado, o tempo se esvai inexoravelmente, por outro, se deixa aprisionar e reter pela memória dos que se dispõem a reconstruir-lhe a passagem.
Numa construção textual solidária, os documentos de história oral permitem-nos, pois, apreender sentidos, valores e crenças sociais das comunidades humanas. Nas palavras de LE VEN (1998: 21), ela “envolve os indivíduos e grupos que dela participam como sujeitos que vão se fazendo num ‘acontecimento’, onde situações e sentimentos individuais tomam a dimensão do humano, do homem individual que se torna universal”.
4 – Bibliografia
CASTILHO, Ataliba T. de. Português falado e ensino de gramática. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 25, nº 1, p. 103- 136, 1990.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação; as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
LE VEN, Michel Marie. Dazinho: um cristão nas minas. Belo Horizonte: CDI, 1998.