A PRODUTIVIDADE DA RAIZ INDO-EUROPÉIA *PEL-
Josenir Alcantara de Oliveira
Esta comunicação originou-se quando se teve por meta o acompanhamento da produtividade semântica e fonética do lat. plico,# “dobrar”, na língua latina, nas línguas românicas e em algumas línguas indo-européias. |
Por se estar convencido de que qualquer introspecção etimológica hodierna, no âmbito das línguas indo-européias, tem que fazer do indo-europeu o seu terminus a quo ou o seu terminus ad quem, sob pena de essa introspecção parecer superficial ou de realmente sê-lo, rasteou-se a tradição do estabelecimento da raiz indo-européia do lat. plico#, para, em primeiro lugar, compreender-se o escopo fonético-semântico que tal tradição tem atribuído a essa raiz do vocábulo em tela, e, em segundo lugar, para apresentar uma quantidade significativa das metamorfoses da unidade formal-semântica dessa raiz indo-européia.
Na esteira da tradição, verificaram-se algumas posturas teóricas no estabelecimento da referida raiz, das quais três são as mais difundidas: 1) a que, como a de SKEAT, estanca o lat. plico# na forma indo-européia *plek- “dobrar”, sem perceber que ela não se trata de uma raiz, mas, sim, de uma raiz ampliada do sufixo –ek-; 2) a que, como as de POKORNY, ROBERTS & PASTOR, remete o lat. plico à forma indo-européia *plek-, sugerindo, hesitantemente, que tal forma seja uma ampliação sufixal do i.-eur. *pel- “dobrar, curvar, flexionar”; e 3) a que, como a de The American Heritage ,remete o lat. plico à forma indo-européia *plek-, reconhecendo, seguramente, que tal forma trata-se da raiz indo-européia *pel- ampliada sufixalmente.
Embora essas três posturas identifiquem, a partir de *plek-, o lat. plecto, “trançar”, como cognato do lat. plico, é a firmeza da última que viabiliza fonética e semanticamente o desvelamento de outros cognatos, o que implica, necessariamente, na ampliação tanto dos fenômenos fonético-morfológicos quanto da teia semântica que emana da raiz indo-européia *pel-.
Não se afastando do âmbito da língua latina, constata-se que essa raiz i.-eur. *pel- está sujeita à ação do Ablaut[1], sendo o seu grau reduzido, i.-eur. *pl-, a única forma captada pela tradição, na produção de cognatos. A terceira postura teórica da tradição reconhece - ainda que, às vezes, indiretamente - que essa base formal-semântica, i.-eur. *pl-, mostra-se receptiva a apenas quatro ampliações sufixais no Latim:
1) i.-eur. *pel- > *pl-o- > lat. du-pl-u-s, tri-pl-u-s, multi-pl-u-s etc.
2) i.-eur. *pel- > *pl-ek- > lat. pl-ic-o
3) i.-eur. *pel- > *pl-ek-to- > lat. pl-ec-t-o
4) i.-eur. *pel- > *pl-ek-so- > lat. pl-ex-u-m, -pl-ex: du-pl-ex, tri-pl-ex etc.
É digno de nota o fato de que, enquanto a tradição atrela o sufixo que expressa quantidade, -plus, ao i.-eur. *pel-, ela negligencia atribuir a mesma raiz ao advérbio lat. plus “mais” - < i.-eur. *pel«- “encher”. Tal atitude só é compreensível quando se deixa de resgatar os seguintes elos semânticos:
“dobrar” > idéia de “dobrar, por mais de uma vez, a quantidade de algo” > “mais quantidade ou intensidade” > “muito”
Apesar dessa negligência, há de se reconhecer que a reconstituição fonética de todos os vocábulos supra transcorreu sem qualquer quebra da projeção de correspondência fonética entre o indo-europeu e o latim, como se pode ver: i.-eur. p – lat. p; i.-eur. l – lat. l; i.-eur. k – lat. k; i.-eur. s – lat. s. Quanto ao aspecto semântico, a própria transparência da afinidade entre os vocábulos arrolados supra basta, por si, para que se perceba que eles formam um todo ideal.
Diante da constatação dessa compatibilidade formal-semântica entre o terminus a quo e os termini ad quos, confirma-se que a terceira postura teórica da tradição é a que mais se aproxima da descrição da produtividade total da i.-eur. *pel-.
Tal descrição, porém, seria mais lata se a tradição tivesse considerado o fenômeno do Ablaut a que os sufixos, como a raiz, estão sujeitos, e se tivesse se dedicado a reconstituição da cadeia semântica. Por isso, observando-se as propostas fonéticas de KRAHE, KURYÉOWICZ, BEEKES e de outros indo-europeístas, e reconstituindo-se a cadeia semântica perante a plausibilidade fonética, propõe-se que se considerem como cognatos do lat. plico os seguintes vocábulos:
1.Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl-ek- > *pl-ok- > *pl-ak- > lat. placo, “acalmar”, placeo, “agradar”, placenta “bolo de forma chata”.
1.Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “achatar” > “objeto de forma chata, plana” > “abater, reduzir” > “acabar, extinguir” > “acalmar”
O lat. placo, antes de significar “acalmar”, significa “dobrar, curvar”, como em, por exemplo, “aplacar a ira dos deuses” e “os deuses serão implacáveis contra a cidade”. Nesses dois exemplos, da idéia de “dobrar, curvar”, chega-se à idéia de “abater, reduzir”, podendo se ir à idéia de “acabar, extinguir”. Nessa seqüência, é somente como efeito do abatimento da ira, ou até mesmo da extinção dela, que o suplicante tem a sensação de ter agradado – lat. placeo, “agradar”, através de suas preces, seus pedidos - os deuses, o que implicaria, necessariamente, em ter lhes causado algum prazer - < lat. placerem.
2.Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl-ek- > *pl-ok- > *pl-ak- > *pl-ag- > lat. pla(ga, “rede para caça”
2. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar, flexionar” > “trançar, entrançar” > “objeto entrançado”
3a. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > pl-et- > *pl-ot- > *pl-at- > lat. platus, “chato”, platanus, “uma árvore (de folhas largas ou de casca lisa)”
3b. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl-on- . *pl-an- > lat. planus “plano, chato” , pla#num, “campo (= planície, não agrícola)”.
3. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar, curvar sobre si mesmo” > “achatar, prensar, comprimir, condensar, formar camada, lamina” > “tornar plano, chato, fino, raso, liso” > “qualquer lugar, região ou objeto plano”
4a. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl-en- > lat. plenus “cheio”
4b. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl-et- > lat. pletum (supino de pleno “encher”
4c. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > pl-edh- > *pl-eb- > lat. plebs
4. Reconstituição semântica: “dobrar” > idéia de “dobrar, por mais de uma vez, a quantidade de algo” > “aumentar” > “encher, preencher” > idéia de “abundância, multidão, povo, nação”
5. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pel- ek- > *pel-ok- > *pel-ak- > *pel-ag- > lat. pelagus “mar (poét.)”
5. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “achatar” > “objeto de forma chata, plana” > “imagem do que está nivelado” > “calmo”
6. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pol- > *pal- > *pal-m- > lat. palma “palma (da mão)”
6. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar, curvar sobre si mesmo” > “achatar” > “objeto de forma chata, plana”
7. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pal- > lat. palla, “veste de ator, mantilha usada por senhoras”, paludamentum “veste militar”, pallium, “manto”.
7. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar, flexionar” > “trançar, entrançar” > “objeto entrançado”
8a. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pol- > *pal- > lat. pala, “pá < instrumento curvo, côncavo”.
8b. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pol- > *pal- et- > *pal-ot- > *pal-at- > lat. palatum, “céu da boca < região curva, em forma de abóbada”.
8c. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pel-w- > lat. pelvis “pélvis < pelo formato curvo”
8. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar, flexionar” > “o que tem forma dobrada, curva”
9a. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl- > *pl-er- > *pl-or-o > lat. ploro “chorar”
9b. Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl-ek- > *pl-ok- > *pl-ak- > *pl-ag- > *pl-ang- (nasalização) > *plango, “lamentar(-se)”
9. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar, curvar sobre si mesmo” > “achatar” > “objeto de forma chata, plana” > “como a palma da mão” > “golpear-se com a palma da mão” > “chorar, lamentar-se”
Dentre os autores que contemplam o indo-europeu em seus estabelecimentos etimológicos, é consenso que o lat. prex, “prece”, não tem nada a ver com o lat. plico e sues cognatos, apontando como sua raiz o i.-eur. *prek-, da qual emanam ainda, segundo esses teóricos, o lat. posco, postulo, precor. Fixando-se no lat. prex, percebe-se que ele tem afinidade formal com o lat. supplex e -plex, desde que não se olvide que o rotacismo é um fenômeno comuníssimo nas línguas indo-européias, como segue: i.-eur. *pel- > pl- ek-s- > pr-ek-s- > lat. prex.
Além dessa plausibilidade fonética, é de suma importância o fato de que tanto o lat. prex e o lat. supplex gravitam em torno do mesmo campo cultural: o religioso. Nessa esfera religiosa, o indivíduo, numa postura de reverência e humildade, dobra-se, curva-se – ajoelhando-se ou prostrando-se - diante da divindade para lhe perguntar sobre o seu futuro incerto e para lhe pedir êxito em suas atividades, em sua vida. É partindo dessa breve introspecção histórico-antropológica que se entende, neste estudo, que aumenta a plausibilidade de o i.-eur. *pe(l- “dobrar, curvar, flexionar”, ser a raiz do lat. prex. Eis o que se propõe como evolução semântica do lat. prex:
10. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar-se, curvar-se, para pedir, perguntar algo aos deuses ” > “pedido, pergunta, oração, prece”
A tradição demonstra ainda dificuldade de lidar com a polissemia dos homógrafos. Vítimas dessa dificuldade são: lat. plecto e plaga.
Enquanto o lat. plecto “trançar, entrançar” faz parte da cadeia semântica 2., o lat. plecto “golpear, bater” deriva semanticamente da cadeia 6, tendo como motivação a “palma (da mão)”, instrumento empregado no autoflagelo. Assim, essa segunda acepção do lat. plecto pode ser resultado da seguinte concatenação semântica:
11. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar, curvar sobre si mesmo” > “achatar” > “objeto de forma chata, plana” > “como a palma da mão” > “golpear-se com a palma da mão”
A única diferença formal entre o lat pla(ga “rede (para caça)” e o lat. pla#ga “ferida; praga” é que o sufixo –ag- - < -ak- - deste sofreu alongamento vocálico, isto é, encontra-se no grau alongado.
No tocante ao aspecto semântico, o lat. pla#ga, “ferida; praga”, é desdobramento da cadeia anterior, ou seja:
12. Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar, curvar sobre si mesmo” > “achatar” > “objeto de forma chata, plana” > “como a palma da mão” > “golpear-se com a palma da mão” > “ferida” > “estado de calamidade, praga”
Não se poderia encerrar esta comunicação sem se falar da limitação das correspondências fonéticas propostas pela tradição. Observando-se a sua prática fonética, pode-se deduzir que a tradição descreveu apenas aquelas correspondências de maior freqüência, negligenciando as de menor freqüência. No caso em questão, quase todos teóricos estabelecem uma correspondência unívoca entre o i.-eur. p e o lat. p.
Por um lado, reconhece-se, seguramente, que tal correspondência é predominante no vocabulário latino, por outro lado, pela afinidade fonética e pela afinidade semântica, propõe-se que o i.-eur. p pode ser associado, direta ou indiretamente, a outros sons, os quais se chamam sons homorgânicos. Sendo assim, observa-se que o i.-eur. p poderia, virtualmente, ter mais seis possibilidades, além da freqüência maior, das quais cinco se mostram produtivas a partir da afinidade fonético-semântica, como se vê infra:
1)i.-eur. p > lat. O (apócope) – não se tem verificado no latim, como ocorre no irlandês.
2)i.-eur. p ~ x > lat. x ~x (assimilação)
2) Reconstituição fonética: i.-eur. *penkwe- “cinco” > *kwenkwe- > lat. qui#nque “cinco”, qui#ni# “cada cinco”
3) i.-eur. p > lat. p > lat. b – não se tem verificado até aqui.
4)i.-eur. p > lat. p > lat. b > lat. v
4a) Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pol- > *pal- > *bal- > *val- >*val-k- > *val-g- > lat. valgus “que tem os pés curvos”
4a) Reconstituição semântica: “dobrar, curvar, flexionar” > “o que tem forma dobrada, curva”
4b) Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pol- > *bol- > *vol- > lat. volo “voar”
4b) Reconstituição semântica: “dobrar, curvar, flexionar” > “locomover-se, no ar, com uma série de flexões dos membros” > “voar”
4c) Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *per- (rotacismo) > *ber- > *ver- > *ver-t-o > lat. verto “girar, torcer”
4c) Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “dobrar, curvar em torno de si mesmo” > “torcer, girar, virar, rodar”
5)i.-eur. p > lat. p > lat. *ph > lat. f
Embora seja um daqueles teóricos que propõem o i.-eur. *plek- como raiz do lat. plico, DEVOTO capta bem a plausibilidade da correspondência entre o i.-eur. p e o lat. f, ao apresentar o i.-eur. *p(h)lek- como raiz do it. flettere, cujo significado, “flexionar”, faz parte do núcleo semântico do i.-eur. *pel-. Sendo assim, tem-se a seguinte concatenação fonética:
5a) Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pl- > *pl- > *phl- > *fl- > fl-ek-t-o > lat. flecto “flexionar”
5b) Reconstituição fonética: i.-eur. *pel- > *pol- > *pal- > *phal- > *fal- > *fal-o > lat. fallo, “enganar”.
5b) Reconstituição semântica: “curvar” > “fazer mudar de trajeto” > “desviar (da verdade, do fim esperado positivamente)” > “ser falso, falhar”
5c) Reconstituição fonética: *pel- > *pl- > *phl- > *fl- > *fl-ak- > *fl-ak-o > lat. flacco “ser mole, frouxo”, flaccidus “frouxo, mole, flácido”
5c) Reconstituição semântica: “dobrar, curvar” > “cair parcialmente” > “tornar-se flácido”
Desde que se tome a perspectiva vertical de um objeto flexível, o ato de “dobrar” pode ser identificado com o de “cair”, o qual ocorre de forma parcial ou total. No primeiro caso, depara-se com uma queda, uma dobra, de parte do objeto flexível. Desse modo, uma orelha flácida é uma orelha caída, isto é, parcialmente dobrada.
Embora a apresentação da produtividade da unidade formal-semântica da raiz indo-européia *pel- não cesse aqui, crê-se que o número das reconstituições fonético-semânticas efetuadas nesta comunicação foi significativo bastante para se extraírem as cinco seguintes conclusões principais:
1) Alguns teóricos confundem raiz, *pel-, com radical, *plek-, por não identificarem os sufixos e seus respectivos Ablauts, o que não deixa de afetar o Ablaut da raiz;
2) Sensível predomínio da fonética sobre a semântica que se manifesta na não-reconstituição da cadeia semântica;
3) Por não se dedicar a reconstituição semântica, a tradição faz da polissemia homonímia, como em lat. plaga e plecto;
4) A não-contemplação das homorgânicas, quando a afinidade é evidente, é um dos responsáveis pelo não-reconhecimento de muitos cognatos, como lat. flecto e valgus;
5) Fica patente que a produtividade de uma raiz só pode ser alcança pela manutenção da unidade formal-semântica, considerando-se: na fonética, todas as possibilidades projetadas pelas homorgânicas; e, na semântica, tanto os elos lógicos que compõem a cadeia quanto os elos culturais, como em lat. prex.
Embora o objeto desta comunicação esteja longe de se esgotar, é digno de nota que, ao término dela, sobrevém a sensação de que a reconstrução fonética, a reconstrução semântica, enfim, o estabelecimento etimológico é bem mais do que uma mera especulação lingüística, é, antes de tudo, uma releitura da visão de mundo e de homem entre os quais o étimo - ora obscuro, ora embaçado, ora claro – é uma das sendas para aqueles que desejam desvelar a si próprio e ao seu mundo.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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DEVOTO, G. - Avviamento alla Etimologia Italiana. Firenze, Felice le Monnier, 1989.
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THE AMERICAN HERITAGE. Ed. Em CDRom, Compact Disc, Home PC, Abril Cultural, São Paulo, s/d;