ESTUDO DAS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS
Karina Chrysóstomo de Sousa Nascimento (UFRJ)
Este trabalho pretende analisar as estratégias argumentativas presentes na peça “ O Oráculo” de Arthur de Azevedo.
Serão analisados os tipos de argumentos utilizados pelos personagens a fim de defender suas teses.
Os dados serão descritos de acordo com a tipologia dos argumentos de Chaïm Perelman (1982) e o conceito de concessão de Charaudeau (1992).
I- TIPOLOGIA DOS ARGUMENTOS
A argumentação tem como objetivo tentar obter a adesão do auditório para uma tese determinada, ao invés de oargumentador impor suas vontades por coação ou alienação.
Quando se lida com teses apresentadas no discurso argumentativo, elas têm como objetivo:
· provocar a adesão intelectual do auditório;
·ocasionar uma ação imediata.
A aceitação de uma tese depende da apreciação dos argumentos apresentados. O argumento é a arma fundamental do jogo argumentativo.
No discurso argumentativo, a escolha do tipo de argumento a ser usado para sustentar determinada tese desempenha papel importante na persuasão do auditório.
No seu livro Tratado da argumentação - a nova retórica, Chaïm Perelmanestabelece uma tipologia dos argumentos.
Segundo Perelman (1982), os argumentos são apresentados em forma de associaçãoou dissociação. O processo de associação baseia-se no princípio da solidariedade. Seu objetivo é aproximar os elementos estabelecendo entre eles uma relação de união. O processo de dissociação, ao contrário, tem como princípio básico a ruptura, a separação de elementos dentro de um conjunto. Seu objetivo é apresentar ao auditório os inconvenientes das relações estabelecidas indevidamente entre os elementos da argumentação. Através da dissociação de idéias preconcebidas, uma pessoa tenta superar as incompatibilidades e restabelecer uma visão coerente da realidade.
Este trabalho limitar-se-á a análise exclusiva do esquema argumentativo de associação.
Podem-se identificar três tipos de associação:
1. Argumentos quase-lógicos - seguem os padrões do raciocínio lógico, matemático e formal. Nesse grupo estão incluídos os argumentos de réplica (ataca uma regra, tornando sua incompatibilidade evidente), de reciprocidade (equipara dois seres ou duas situações, mostrando que expressões correlatas devem ser tratadas da mesma maneira), de transitividade (se A=B e B=C, logo A = C ), de inclusão (subordinação da parte ao todo), de divisão (enumeração das partes que compõem o todo) e de comparação.
2. Argumentos baseados na estrutura da realidade-dependem das relações objetivas entre os elementos da realidade. A realidade pode ser estruturada por associações de sucessão (argumentação baseada em fenômenos do mesmo nível ex:causa e efeito, fato e conseqüência, meio e fim) ou por associações de coexistência (argumentação baseada em elementos pertencentes a diferentes níveis ex: argumento de autoridade) .
3. Argumentos que visam a fundar a estrutura da realidade-a partir da análise de um caso particular estabelece-se um modelo geral. Nesse grupo, encontram-se os argumentos por exemplo, ilustração e modelo.
A argumentação pode ser vista como um jogo, no qual os argumentos são peças fundamentais para que a vitória seja alcançada.
II - ANÁLISE DO CORPUS
A peça “ O Oráculo “ de Arthur de Azevedo é uma comédia curta, em um ato, representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Recreio Dramático, pela Companhia Dias Braga, em 2 de abril de 1907.
Narra a história de um advogado rico, Nélson, que, após manter durante três anosum romance com a viúva Helena, pede conselhos ao comendador Frederico Pontes, “oráculo do amor “, para terminar com tal relação amorosa.
A partir desse enredo, destacam-se, nacomédia, duas cenas nas quais os personagens apresentam um discurso, eminentemente, argumentativo: cenas IV e VI.
Na cena IV, ao pedir conselhos ao comendador, Nélson, primeiro, exalta suas qualidades e seus feitos :
“ Eu sei bem que o comendador é um dos brasileiros que mais têm viajado(...) Sei também que muitos rapazes inexperientes recorreram aos seus conselhos (...) e que eles alcançaram tudo quanto pretendiam. “ ( p.82).
Confere, dessa forma, a Frederico Pontes uma comenda em assuntos de amor. A autoridade é atribuída a Frederico Pontes em virtude de sua competência e tradição.
Todo discurso de Frederico Pontes sobre o caso de Nélson baseia-se no uso da argumentação por autoridade (argumentum ad vericundiam), através da qualo prestígio de uma pessoa ou grupo é utilizado para conquistar a aceitação de uma tese.
Assim, o comendador detém esse poder que lhe é conferido, através de sua comenda pelo poder vigente e, também, pelo próprio Nélson, que se coloca, imediatamente, na posição inferior de discípulo.
Contudo, Frederico Pontes divide sua autoridade com Balzac :
“ (...) foi esse grande psicólogo, Balzac, quem fez de mim em questão de amor, não um oráculo, mas um conselheiro modesto.”(p.82)
Desse modo, sedimenta seu poder, já que alcançou esse status através da leitura de um clássico, o que demonstra cultura e tradição (elementos importantes para a sustentação de uma autoridade).
Após a apresentação do problema, o comendador começa a levantar suas hipóteses sobre o motivo que levou Nélson a se desinteressar de Helena:
§ “Tem ciúmes dela ? “
§“ Ela possui alguma enfermidade ou defeito físico?”
§ “É feia ? “
§ “Tem mau gênio? “
§ “(...) é tola, vaidosa, presumida (...)? “
§ “É devota? Anda metida nas igrejas? “
§ “Abusa do piano ou é desafinada ?”
§ “(...) gosta de outra mulher ? “
Contudo, Nélson rejeita todas as hipóteses, apresentando, como argumentos de refutação, fatos que descrevem a rotina de Helena. Seus argumentos são baseados em associações de coexistência, através das quais as afirmações sobre uma pessoa são justificadas pela maneira como essa se comporta. São o caráter da pessoa e suas intenções que dão significado a seu comportamento. Tais argumentos levam-nos a concluir que Helena é a mulher perfeita, logo não merece tamanha ingratidão.
Frederico Pontes, finalmente, depois de várias especulações a respeito do assunto, escolhe sua tese: “O meu amigo aborreceu-se dela, porque não lhe descobriu defeitos .” ( p.83 )
Novamente, Nélson refuta a tese do comendador, enumerando seus próprios argumentos:
Arg. 1 à “ O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que devia.“(p. 83)
Arg.2 à “A viúva tem uma filhinha (...) é conveniente fazer com que mais tarde nãoobrigue a mãe a corar “ ( p.83)
Os dois argumentos acima baseiam-se na relação de causa e efeito, através da qualsão relatadas as causas de determinado fato.
Não sendo convencido por esses supostos argumentos apresentados por Nélson, Frederico Pontes contesta-oscom uma frase de efeito, o que lhe confere mais poder : “ O amor não conhece escrúpulos nem conveniências. “ (p.83). Observa-se em toda peça que a utilização de frases de efeito é uma característica marcante desse personagem. Através desse recurso, o autor enfatiza o papel de“oráculo do amor “ desempenhado pelo comendador.
Finalmente, Nélson apresenta seu verdadeiro argumento que, como os anteriores, se baseia na relação de causa e efeito : “ Esta ligação pode prejudicarseriamente o meu futuro.” ( p.83)
Consciente do argumento que motivou a decisão do advogado, Frederico Pontes sugere a aplicação da seguinte estratégia : questionar a fidelidade de Helena, para que , ao se sentir culpada, a própria se incrimine. Segundo o comendador, o sucesso de tal procedimento estaria garantido, já que “não há mulher por mais virtuosa,por mais amante,que não tenha alguma coisa de que a acuse a consciência .” (p.85) - argumento de transitividade que pode ser desenvolvido através do seguinte silogismo :
A = Toda mulher éinfiel
B= Helena é mulher
C = Logo, Helena é infiel
A estratégia apresentada pelo comendador a Nélson não é considerada ética, de acordo com a Teoria da Argumentação, pois, através de supostos argumentos, levanta-se falso testemunho a respeito da conduta moral de outra pessoa.
Assim, o comendador encerra sua conversa com Nélson, exerce seu papel de oráculo, ou seja , aquele que, por sua sabedoria, é designado aaconselhar os mais jovens e retira-se de cena.
Helena, após ouvir toda conversa entre o comendador e seu amado,retira-se da casa e volta a procurarNélson na cena VI , fingindo não ter escutado nada.
Ao encontrá-lo, em casa, Helena, aparentemente nervosa, exige que lhe sejam dadas algumas explicações sobre seu sumiço: “ (...) que quer isto dizer ? “ (p.87). Antes de escutá-las, ela mesma formula suas hipóteses, já apresentadas anteriormente pelo comendador ao aconselhar Nélson:
§ “ Disseram-te mal de mim? “
§ “ Já não me amas? “
§ “Amas outra ? “
Nélson, orientado por seu oráculo, aproveita o momento e inicia seu discurso, na esperança de despertar na viúva sentimentos de culpa e inconformismo.
Contudo, o inesperado ocorre: Helena, ciente do plano, assume o papel de mulher infiel, invertendo o jogo. Agora, ela detém o poder da situação, ela “dita as regras do jogo “, enquanto Nélson se torna, apenas, uma peça que passa a ser facilmente manipulada. Ele é o verdadeiro culpado.
Em seu discurso, Helena utiliza uma estratégia semelhante a usada por Antônio, no Júlio César de Shakespeare (ato III, cena II). Tanto Helena como Antônio invertem a orientação argumentativa da estratégia concessiva.
A argumentação concessiva, segundo Charaudeau (1992), estabelece dois movimentos argumentativos básicos :
a) Reconhecimento da verdade de X
b) Invalidação do valor de X , direcionando o raciocínio para uma conclusão inversa a X, no caso Y.
Exemplificando:
X = Pedro estudouàpassou de ano
(logo)
MAS
Y = não passou de ano à conclusão inversa a X
Conclui-se que em enunciados do tipo: X mas Y, o argumento principal é o segundo, Y, que direciona o ouvinte para a conclusão desejada, tese.
No discurso de Antônio, no Júlio César, ele inverte essa estratégia concessiva, a fim de induzir os ouvintes a vingar a morte de César. O imperador tinha sido assassinado por Bruto, que havia conquistado a multidão para sua causa. Dessa forma, a colocação do tipo “ Bruto é honrado, mas César é fiel e justo “seria perigosa, apesar de concessiva, uma vez que a população enfurecida se voltaria contra o orador. Foi preciso, portanto, inverter a ordem das proposições, colocando a verdadeira tese do texto em X, para que seu objetivo fosse alcançado. Assim, ao longo do seu discurso, os argumentos a favor de César são constantemente renovados :
§César era fiel e justo
§César trouxe vários cativos para Roma
§César chorava diante dos pobres
§César recusara por três vezes a coroa
Ao passo que, o argumento, aparentemente, anti-César - Y - é uma repetição da frase: “ Mas Bruto disse que ele era ambicioso e Bruto é muito honrado.” Tal repetição faz com que argumentativamente Y perca seu poder persuasivo.
No discurso de Helena, repete-se essa estratégia usada por Antônio. Com o objetivo de mascarar sua real intenção, convencer Nélson de que ela é a mulher certa, Helena apresenta um arsenal de argumentos que ratificam a proposta de que ela é uma mulher indigna.
No decorrer do seu discurso, percebe-se a defesa da tese :
“ Eu te amo, mas não sou digna de ti . “ (p.88)
Os argumentos apresentados pela própria Helena, que aparentemente são contra ela, despertamo sentimento de culpa do advogado:
“(...) foi a tua frieza , o teu despreendimento, o pouco caso com que afinal começaste a tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei , e que tantas lágrimas me vai custar. Tu nunca me compreendeste...nunca estimaste o incomparável tesouro que havia aqui.” ( p. 88 )
Todos esses argumentos são usados como justificativa para a traição, o que, aparentemente, confirma a conclusão de que Helena é uma mulher indigna. Contudo, comotais argumentos são baseados no sentimento de culpa de Nélson, Helena se redime de ser indigna ou culpada, existe, portanto, um só culpado, Nélson. Helena é, apenas, uma vítima do seu descaso, logo, pode ser considerada uma mulher digna que ama, verdadeiramente, o advogado.
Os argumentos a favor de Helena são fortes e incontestáveis, pois ela argumenta através de suas ações:
“ (...) Por ti segreguei-me da sociedade, sacrifiquei o futuro de minha filha, enterrei a minha mocidade, porque imaginei que o teu amor compensasse tudo isso !“ (p. 88)
Esses argumentos são decisivos para acentuar a culpa de Nélson e, conseqüentemente, provar o amor de Helena , elevando-a ao pedestal de mulher digna, já que seus atos são louváveis, portanto, merecedora do amor do advogado.
Pode-se classificar esse tipo de argumentação como: uma argumentação concessiva “às avessas “, uma vez que a fórmula original é invertida.
Na frase: Eu te amo, mas não sou digna de ti
X = Eu te amoà sou digna de ti e mereço seu amoràtese de Helena
(logo)
Y =mas não sou digna de ti ànão mereço seu amor
(logo)
Dessa forma, Helena consegue inverter o jogo armado, conquistando, mais uma vez , o amor de Nélson que, finalmente, marca a data do casamento.
III- CONCLUSÃO
Analisando o corpus, percebe-se a importância da escolha do tipo de argumento para a defesa da tese de cada personagem.
Pode-se observar, no texto, o uso de tipos variados de argumentos: argumento por autoridade, baseado em associação de coexistência, baseado na relação de causa e efeito, de transitividade e por evidências.Todos eles pertencem ao esquema argumentativo de ligação, que visa a estabelecer uma relação associativa entre os elementos da realidade. Por isso, os argumentos apresentados, na peça, são estruturados a partir da relação objetiva de Nélson e sua amante.
É importante destacar, na peça, a importância da utilização da argumentação concessiva “ às avessas “ para a defesa da tese de Helena. Através desse recurso, Helena consegue iludir seu adversário, no caso Nélson, convencendo-o a fazer o que ela quer. Esse tipo de estratégia possui grande efeito argumentativo, pois ao esconder sua verdadeira intenção, o argumentador consegue manipular mais facilmente seu adversário.
Ressalte-se que qualquer tipologia textual só pode ser feita em termos de dominância, já que dificilmente se apresentam textos puros. Nesta peça, combinam-se seqüências argumentativas e narrativas. Pode-se considerar que, aqui, temos a argumentação à serviço da narração.
VII - BIBLIOGRAFIA :
1- ARAÚJO, Antônio Martins de. Teatro de Arthur Azevedo. Rio de Janeiro: Funarte, 1995.
2- FÁVERO, Leonor & KOCH, Ingedore Villaça.Lingüística textual: Introdução.São Paulo: Cortez, 1983.
3- GAGO, José Maria Paz.La estilística. Espanha: Síntesis [sd ]
4- GUIRAUD, P. & KUENTZ, P. La stylistique.Paris: Klincsiek,1978.
5- RANGEL, Flávio& FERNANDES, Millôr.Liberdade, liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
6- PERELMAN, Ch. The realm of rhetoric. London:Notre Dame, 1982.