A ECDÓTICA: ARTE E TÉCNICAS DA EDIÇÃO DE TEXTOS

José Pereira da Silva (UERJ)

 

Ecdótica, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,[1]  da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia, é a arte de descobrir e corrigir os erros de um documento escrito, preparando-lhe uma edição em que se procura estabelecer o texto perfeito.

Segundo este ponto de vista, a ecdótica se identifica com a edição crítica, na linha metodológica de Karl Lachmann, em cuja definição, informa o ilustre acadêmico e dicionarista, que "o texto é preparado mediante colação com o manuscrito ou com edição feita em vida do autor, correção dos erros tipográficos, modernização da maneira de compor e, tanto quanto possível, de particularidades ortográficas, registrando-se as variantes, notas e comentários, que constituem o aparato crítico."[2]

Considerada a Ecdótica "como técnica de editar um texto",[3] deveremos distinguir, aqui, os seguintes tipos de edições, das quais destacaremos algumas para melhor definir:  abreviada, anotada, atualizada, autorizada, clássica, compacta, corrente, crítica, crítico-genética, de bibliófilo, de luxo, definitiva (ou ne varietur), diamante (liliputiana ou microscópica), diplomática, diplomático-interpretativa, espúria (pirata ou fraudulenta), exegética, expurgada, fac-similar (ou fac-similada), fiel, integral, limitada, mecânica, popular, princeps (ou príncipe) e  virtual.

Apresentam-se, a seguir as definições simplificadas dos tipos de edições acima referidas e, na medida do possível, os comentários cabíveis para as que se consideram mais importantes do ponto de vista filológico.[4]

a) Edição abreviada é aquela cujo texto foi parcialmente suprimido, ou resumido em trechos ou passagens supostamente não essenciais à sua compreensão.

b) Edição anotada é aquela cujo texto se faz acompanhar de notas destinadas a esclarecê-lo ou atualizá-lo.

c) Edição atualizada é aquela cujo texto sofreu acréscimos e/ou modificações em relação à anterior, no sentido de pôr em dia a matéria tratada.

d) Edição autorizada é a que recebe aprovação expressa do autor ou detentor dos direitos editoriais, para distingui-la das fraudulentas.  Geralmente coincide com a edição definitiva, quando é autorizada após a morte do autor.

e) Edição clássica, que pode ser de um texto antigo ou moderno, é feita de modo que se torne correntemente aceita como modelo.  Tratando-se de texto recente, costuma coincidir com a edição definitiva.

f) Edição compacta é aquela em que, para reduzir o número de páginas, se adotam caracteres e composição cerrada.  Às vezes coincide com as denominadas edições de bolso ou com as edições populares.

g) Edição corrente é a mais comum, feita para o grande público, e que contém o texto puro e simples da obra.  Infelizmente, por causa da ganância, a maior parte das edições correntes não tem o devido rigor com a fidelidade e com a correção.

h) Edição crítica, também denominada edição exegética, é aquela em que se procura estabelecer o texto perfeito de uma obra.

Leodegário, depois de lembrar que a Crítica Textual é o núcleo especificamente filológico da ecdótica, diz que "a edição crítica é tida como operação absolutamente necessária ao perfeito entendimento de um texto, ou à sua completa interpretação filológica, segundo critérios que melhor possam aproximá-lo da última vontade consciente do seu autor."[5]  E, ainda na mesma página, relaciona as etapas específicas do trabalho do filólogo no estabelecimento de uma edição crítica:

a) Recensio;

b) Collatio;

c) Eliminatio codicum descriptorum;

d) Classificação estemática da tradição manuscrita (se houver) e da tradição impressa (textos não eliminados, após a examinatio);

e) Emendatio;

f) Constitutio textus, após a selectio;

g) Apresentação do texto reconstituído;

h) Aparato de variantes.

 

i) Edição crítico-genética, edição genético-crítica ou "edição crítica em uma perspectiva genética" é o resultado mais prático que se tem conseguido na edição de textos com a análise dos manuscritos, rascunhos e todo tipo de anotações que precederam a edição definitiva do texto pelo autor.

Como nos diz  Cecília Almeida Salles: "O interesse da Crítica Genética está voltado para o processo criativo artístico.  Trata-se de uma investigação que indaga a obra de arte a partir de sua fabricação, a partir de sua gênese."[6]

Descrevendo como foi preparada a edição de As Três Marias, de Rachel de Queiroz, Marlene Gomes Mendes nos diz que,

Tratando-se de uma edição genético-crítica, parte da descrição minuciosa dos manuscritos, com detalhamento das etapas da escritura, depreendidas através do estudo das rasuras, até a edição impressa.

Segue-se o texto completo da 3ª edição do romance, tomado como texto-base, acompanhado do aparato genético e das variantes das duas primeiras edições.

Na parte final, são fietas considerações a propósito do processo de escritura de Rachel de Queiroz, partindo de estatísticas realizadas sobre a tipologia das rasuras.[7]

 

j) Edição de bibliófilo é a que se destina a colecionadores, impressa em papel de qualidade, geralmente ilustrada, de tiragem reduzida e exemplares numerados e, quando possível, assinados pelo autor, ilustrador etc.  É uma edição de luxo, geralmente em formato grande e com margens amplas, às vezes composta com tipos especiais, ornada de ilustrações e, não raro, suntuosamente encadernada.

k) Edição definitiva é aquela cujo texto foi, pelo autor, considerado definitivamente estabelecido.  É também denominada edição ne varietur.  A edição autorizada pode ser assim considerada pelo detentor de seus direitos editoriais, quase sempre após a morte do autor.

l) Edição diamante, edição liliputiana ou edição microscópica, é aquela que tem um formato minúsculo, impressa com tipos de ínfimo corpo, aos quais outrora se dava, em geral, o nome de diamante.

m) Edição diplomática (segundo o Aurélio) é a que reproduz fielmente outra edição, mediante composição com tipos de desenho igual ou quase igual e do mesmo corpo, conservação das mesmas medidas e estilo tipográfico, ortografia, abreviaturas etc., e até dos erros de revisão porventura existentes.

Antônio Houaiss[8] diz que a "edição diplomática" é apresentação da leitura de um texto "por meio de nova composição tipográfica, que reproduza, com absoluta (é o desejo subjacente) fidedignidade, o texto sobre o qual se trabalha, isto é, que se quer editar.

Leodegário, na obra citada, p. 30, define a edição diplomática como "aquela que, por meios tipográficos, reproduz exatamente a lição de um manuscrito."

n) Edição espúria, edição pirata, ou edição fraudulenta é a que é feita sem consentimento do autor ou do detentor dos direitos autorais.

o) Edição expurgada é aquela de que se eliminaram as passagens tidas como inconvenientes por motivos políticos, éticos ou religiosos.

p) Edição fac-similar ou fac-similada é a que reproduz mecanicamente.  Até recentemente, isto só era possível através de fotocópia.  Hoje, pode-se copiar o texto para a memória do computador e depois reproduzi-lo em impressora, disquetes ou cds ou divulgá-lo, como imagem, pela Internet.

q) Edição paleográfica é a que transcreve fiel e exatamente um manuscrito, respeitando-lhe a grafia, pontuação etc., e colocando entre colchetes os acréscimos julgados necessários.

r) Edição príncipe ou edição princeps é a primeira edição de um livro.  Essa edição é, geralmente, muito valorizada pelo editor crítico.

s) Edição sonora de um texto, ultimamente bastante utilizada pelas igrejas para a difusão dos livros da Bíblia, através de padres, pastores ou locutores bastante conhecidos.  Os recursos e técnicas utilizadas são bastante diversos e exigem a integração do editor de textos com equipamentos e com profissionais de áreas bastante diversas daquelas com que até recentemente se defrontava.

t) Edição virtual é a que se transmite via Internet, podendo ser copiada, geralmente, para a memória dos computadores pessoais e reproduzida em papel ou disquetes com grande fidelidade, facilidade e a custos quase insignificantes.

 

CONCLUSÃO

 

Podem-se ainda relacionar muitos outros tipos de edição de textos ou descrever detalhadamente os processos de cada uma das modalidades apresentadas.  Mas é preferível esta forma sucinta de apresentação desse tópico para que haja tempo de se discutirem e aprofundarem as questões que mais interesse despertarem nos participantes da mesa e da platéia.

À disposição.

 



[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.  Novo dicionário da língua portuguesa.  [Rio de Janeiro]: Nova Fronteira, [1975], s. v.

[2] Id. ib.

[3] AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de.  Iniciação em crítica textual.  Apresentação de Antônio Houaiss.  Rio de Janeiro: Presença; [São Paulo]: EDUSP, 197, p. 17.

[4] Apesar da interferência na redação das definições abaixo, seguimos o que foi apresentado por Orlando da Costa Ferreira, colaborador especializado em Bibliologia e Artes Gráficas do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

[5] Op. cit., p. 16.

[6] SALLES, Cecília Almeida.  Crítica genética: uma introdução.  Fundamentos dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários.  São Paulo: EDUC, 1992, p. 18.

[7] MENDES, Marlene Gomes.  Edição crítica em uma perspectiva genética de As Três Marias, de Rachel de Queiroz. Niterói: EDUFF, 1998, p. 18.

[8] HOUAISS, Antônio.  Elementos de bibliologia.  Reimpressão fac-similar.  São Paulo : HUCITEC; [Brasília] : INL, 1983, p. 249.