A GRAMÁTICA DO TUPI ANTIGO
Nataniel dos Santos Gomes (UFRJ / SUAM)
Aos meus pais, pelo eterno cuidado e carinho.
Introdução:
Nosso objetivo neste trabalho é descrever alguns aspectos da gramática tupinambá, como: a ordem oracional nas orações independentes e dependentes, a ordem sintagmática, os sistemas de prefixos de pessoa e as classes de palavras.
1. A gramática Tupinambá
1.1. A sintaxe
1.1.1. A ordem das orações independentes
A ordem dos constituintes oracionais nas orações independentes parece ser livre. Tanto o sintagma nominal referente ao sujeito quanto o referente ao objeto podem ocorrer antes ou depois verbo. Parece que a ordem serve para definir funções pragmáticas e não gramaticais:[1][2]
1. ‘Pindobuçu viu o mar.’
a. Pindobusu o-s-epîak paranã. SVO
Pindobuçu 3-3-ver mar
b. Pindobusu paranã o-s-epîak. SOV
Pindobuçu mar 3-3-ver
c. paranã Pindobusu o-s-epîak. OSV
mar Pindobuçu 3-3-ver
d. o-s-epîak paranã Pindobusu. VOS
3-3-ver mar Pindobuçu
(Lemos Barbosa, 1957:67)
Conforme o exemplo 1, as ordens SVO, SOV, OSV, VOS são possíveis nas orações independentes. O verbo nesses contextos se apresenta com prefixos de pessoa referentes ao sujeito e ao objeto.
Nas orações independentes em que o sintagma nominal objeto pode ocorrer em qualquer posição, o prefixo de objeto de 3ª está sempre expresso no verbo. Um fato curioso o prefixo objetivo de 3ª pessoa é que, quando ocorre, libera o sintagma nominal de objeto que, nesses casos, não precisa ocupar uma posição fixa na oração.
No exemplo 2, o verbo está marcado com objeto de 3ª pessoa e a ordem do sintagma nominal objeto é livre:
2. a) a-î-pysyk îy
1sg.-3-apanhar machado
b) îy a-î-pysyk
machado 1sg-3-apanhar
‘Eu apanhei o machado.’
Os exemplos 3 e 4 mostram que o uso do nome e do pronome de 3ª segue uma distribuição complementar. Isto significa que em casos de incorporação nominal, o nome ocupa o mesmo lugar que o marcador objetivo de 3ª pessoa.
3 a) o-î-pysyk îy
b) o-îy-pysyk
îy o-î-pysyk
‘Apanhou um machado.’
4 a) itá a-î-potar
b) a-î-potar itá
a-itá-potar
‘Quero pedras.’
1.1.2. A ordem nas orações dependentes
Nas orações dependentes, a ordem é SOV:
5. Koriteî kunhã pitanga mo-mbak-i SOV
Depressa mulher criança acordar-dep.
‘A mulher acordou a criança depressa.’
6. Koriteî pitanga kunhã mo-mbak-i SOV
Depressa criança mulher acordar-dep.
‘A criança acordou a mulher depressa.’
Nessas estruturas, observa-se o seguinte: quando o objeto é um sintagma nominal, ele deve preceder o verbo, como mostram os dados 5 e 6. Quando, porém, o pronome objetivo de 3ª pessoa ocorre afixado ao verbo, o objeto nominal pode aparecer distante do verbo, localizado à esquerda do sujeito:
7. Koriteî pitanga kunhã i-mombak-i OSV
Depressa criança mulher 3-acordar-dep.
‘Depressa, a mulher acordou a criança’.
8. Koriteî kunhã pitanga i-mombak-i OSV
Depressa mulher criança 3-acordar-dep.
‘Depressa, a criança acordou a mulher’.
Nesses casos, o verbo está marcado com o pronome objetivo, e o sintagma objeto pode ocorrer deslocado. O marcador objetivo parece funcionar como um clítico pronominal. É como se fosse o próprio objeto na sua forma pronominal. Os sintagmas nominais de objeto que ocorrem junto com esses clíticos podem ser tratados como elementos topicalizados. Essas sentenças podem ser traduzidas como construções com deslocamento para a esquerda. O sintagma nominal aparece deslocado à esquerda da sentença e em seu lugar fica um elemento pronominal:
9. ‘Depressa, a criançai, a mulher a iacordou.’
10.‘Depressa, a mulheri, a criança a iacordou.’
É possível também ocorrer estruturas como 11 em que o sintagma nominal objeto está omitido. Dados como 11 parecem indicar que o marcador objetivo de 3ª pessoa é o argumento objeto, porque apenas a sua presença é suficiente para indicar a existência de um objeto de 3ª pessoa.
11. Koriteî kunhã imombak i
Depressa mulher 3-acordar-dep.
‘Depressa, a mulher a acordou.’
1.2. A ordem no nível sintagmático
1.2.1. A ordem nas construções genitivas
O sintagma genitivo apresenta a ordem genitivo-nome como ilustram os dados a seguir:
12. paîé kyse Gen. N.
pajé faca
‘a faca do pajé’
13. paîé pó Gen. N.
pajé mão
‘a mão do pajé’
1.2.2. A ordem adjetivo-nome
Quando o adjetivo ocorre dentro do sintagma nominal ele se posiciona após o nome, gerando a ordem N A:
14. itá tinga N A
pedra branca
‘pedra branca’
15. y puku N A
rio comprido
‘rio comprido’
1.2.3. A ordem nome-adposição:
Há posposições, portanto a ordem é N Po:
16. a-sem taba suí N Po
1-sair aldeia da
‘saí da aldeia’
Com exceção do sintagma envolvendo nome e adjetivo, os sintagmas do Tupinambá são de núcleo final: OV (nas dependentes); N Po e Gen N.
2. As classes de palavras
Para se identificar as classes de palavras utilizamos de critérios morfológicos, sintáticos e o semânticos (ou nocionais).
Segundo Basilio (1998:52):
Entendemos por critério morfológico a atribuição de palavras a diferentes classes, a partir das categorias gramaticais que apresentem, assim como das características de variação de forma que se mostrem em conjunção com tais categorias.
Para definir o critério sintático ela acrescenta (:53)
atribuímos palavras a classes a partir de propriedades distribucionais (em que posições estruturais as palavras podem ocorrer) e/ou funcionais (que funções podem exercer na estrutura sintática).
Além de propor os critérios morfológico e sintático para a identificação das classes de palavras, ela também é a favor do uso do critério semântico. Para ela, há uma ligação direta entre propriedades semânticas, morfológicas e sintáticas, como por exemplo, só as palavras que designam seres apresentam flexão de número e gênero.
Mas Radford (1990: 57) só utiliza dos critérios morfológico e sintático para o agrupamento das palavras em classes, uma vez que, segundo ele, o critério semântico, mais usado pela gramática tradicional, traz problemas. De acordo com este critério, verbos denotam ação, nomes denotam entidades e adjetivos denotam estado. Porém, como ele aponta, palavras como “assassinato” que denotam ação, são nomes e não verbos, “doença” denota um estado, que segundo o critério semântico seria um adjetivo, mas é um nome.
Segundo Radford (1998), a evidência morfológica para identificação de palavras está relacionado à morfologia derivacional e flexional.
Em geral, os morfemas derivacionais se agregam a palavras de uma determinada categoria. Em Português, o sufixo agentivo e instrumental –(d)or, como em o cantor, o ventilador, só se agregam a verbos.
A mesma restrição ocorre com morfemas flexionais que se agregam a palavras de categorias específicas. Por exemplo, o “s” do plural só ocorre com palavras que pertencem à categoria dos nomes.
2.1. Sobre os nomes
Em Tupinambá os nomes não possuem flexão de número, gênero ou grau. Eles apresentam flexão de tempo e prefixos possessivos.
Os nomes sempre terminam com vogal tônica ou em –a quando são átonos (Cf Lemos Barbosa: 1957, 43).
17. Oka ‘casa’
18. Aîó ‘bolsa’
Para expressar o plural, o Tupinambá usa o sufixo que se traduz como “muitos” (etá). Esse sufixo é, na verdade, o verbo “ter muitos”.
Os nomes possuem uma marca para futuro e outra para passado, rama e pûera, respectivamente.
19. a)ybá ‘fruta’
b) ybá-rama ‘futura fruta
fruta-fut.
c) ybá-puêra ‘ex-fruta’
fruta-pass.
Há também dois tempos compostos: ram-bûera (passado-futuro) e pûer-ama (futuro-passado).
20. a) t-atá ‘fogo’
b) t-atá-ram-bûera ‘ex-futuro fogo’.
Fogo-fut.-pass.
c) t-atá-pûer-ama ‘o futuro ex-fogo’
Fogo-pass.-fut.
Os nomes também possuem morfemas negativos específicos: o sufixo eym(a),que quando ocorre antes da partícula de tempo, se posiciona antes desta.
21. a) xe r-eymbagûama
1 poss.-criação-fut.
‘minha futura criação’
b) xe r-eymbab-ey-gûama
1 poss.-criação-neg.-fut.
‘a que não será nossa criação’.
Os nomes também podem apresentar prefixos de posse:
22. xe-kó ‘minha roça
1 poss.-roça
23. nde-ruba ‘seu pai’
2 poss.-pai
Os nomes e as palavras nominalizadas funcionam como núcleos de sintagmas nominais que podem exercer o papel de sujeito ou objeto:
24. Kunhã o-manó ‘A mulher morreu’
mulher 3-morrer
25 a. a-ker ‘eu dormi’
1-dormir
b. xe-ker pe ‘no meu dormir’
1 poss- dormir em
Note-se que em (26 b) o verbo “dormir” em sua forma nominalizada é o núcleo do sintagma objeto da posposição.
2.2 Sobre os verbos:
O verbo no Tupinambá vem sempre acompanhado por um ou mais elementos pronominais, possui um morfema de negação específico e não apresenta marcas de tempo.
2.2.1. Os marcadores de pessoa
O Tupinambá é uma língua classificada como pertencente ao tipo ativo/não-ativo (Leite e Vieira, s.d.), isto é, os sujeitos do verbo intrasitivo-ativo, como “correr” e “nadar”, são expressos pela mesma forma que os sujeitos dos verbos transitivos, enquanto que os sujeitos do verbo intrasitivo não-ativo, como “ser gordo” e “estar cansado”, recebem a mesma marca que os objetos do verbo transitivo.
26. a-î-pysyk
1sg-3-segurar
‘Eu o segurei.’
27. a-bebé
1 sg-voar
‘Eu vôo’
28. xe-pysyk
1sg-segurar
‘Ele me segurou’.
29. xe-maenduar
1 sg.-lembrar
‘Eu me lembrei.’
Há, então, duas séries pronominais: (i) a ativa que é usada para indicar os sujeitos ativos; e (ii) a não-ativa que é empregada para expressar o sujeito do verbo não-ativo e o objeto. O quadro abaixo ilustra as séries pronominais:
|
Série I (ativa) |
Série II (não-ativa) |
||
|
A |
As |
O |
So |
1 sg. |
a- |
a- |
xe- |
xe- |
2 sg. |
Ere- |
Ere |
nde- |
nde- |
1 incl. |
Îa- |
Îa- |
îande- |
îande- |
1 excl. |
Oró- |
Oró- |
oré- |
oré- |
2 pl. |
Pe- |
Pe- |
pe- |
Pe- |
Em Tupinambá, quando o sujeito é de 3ª pessoa e o objeto é de 1ª ou de 2ª pessoas, o verbo fica marcado com o prefixo cujo referente é mais alto na hierarquia (hierarquia referencial):
30. Ore-pysyk ‘Ele nos segura.’
1 excl.-segurar
Quando o objeto é de 3ª pessoa, todavia, tanto os prefixos referentes ao sujeito quanto ao objeto (de 3ª) ficam expressos no verbo:
31. a-î-pysyk ‘Eu o segurei.’
1 sg.-3-pegar
Observe-se que a série ativa só é usada com verbos. Já a série não-ativa se agrega a nomes, verbos posposições.
2.2.2. Tempo
É interessante notar que no Tupinambá, a noção de tempo não é expressa morfologicamente. A mesma forma verbal pode expressar presente ou passado:
32. a-î-pysyk ‘eu pego’ ou ‘eu peguei’
1 sg.-3-pegar
2.2.3. A negação
A conjugação negativa dos verbos é formada a partir da afirmativa através do acréscimo do morfema descontínuo nda ...i.
33. nd’a-bebé-i ‘não voei’.
Neg.-1sg-voar-neg
Note-se que a negação verbal nda...i é diferente da negação nominal eym.
2.2.4. A distribuição do verbo
O verbo ocorre como núcleo de predicado. Qualquer item lexical pode se verbalizar no Tupinambá mediante o acréscimo do prefixo mo (transitivizador).
34. a) abá ‘homem
b) mo-abá ‘fazer filho’
trans.-homem
c) kunhã a-mo-abá ‘Eu fiz a mulher ter filho’.
Mulher 1sg-trans-filho
Mo- não é um afixo derivacional que se agrega a uma classe de palavras específica, já que pode ser afixado a nomes, verbos intransitivos e até advérbios. Apesar de ter a função de um transitivizador, mo também é um verbalizador.
2.3. Sobre os adjetivos
É interessante notar que as palavras do Tupinambá que correspondem ao adjetivo em Português funcionam como verbos não-ativos. Nestes casos, eles recebem marcas de pessoa da série não-ativa, referentes ao seu sujeito.
35. xe-katu ‘sou bom’
1 sg.-bom
Ele apresenta também o mesmo tipo de negação que a dos verbos ativos. Essas palavras podem ser utilizadas para modificar os nomes, ou seja, como complemento atributivo.
36. y piranga ‘rio vermelho’
rio vermelho
Nesses casos, os adjetivos possuem uma morfologia específica.
2.4. Sobre as posposições.
Em relação às posposições, percebemos que elas são invariáveis e ocorrem com sintagmas nominais ou prefixos de pessoa referentes (série não-ativa) ao seu complemento.
37. xe-pupé ‘em mim’
1 sg-em
3. Conclusão
Após fazermos a descrição de alguns aspectos do Tupinambá, tais como: a ordem das palavras, os prefixos pessoais e as classes de palavras; pudemos ver as certas particularidades da língua: a ordem oracional, os nomes possuem marcas de futuro e passado, qualquer item lexical pode ser verbalizado, existe um morfema de negação que pode ser descontínuo, e a classe de pronomes.
5. Bibliografia:
BASILIO, Margarida. Teoria lexical. 5 ed. São Paulo: Ática, 1998.
EDELWEISS, Frederico G. Estudos tupi e tupi-guaranis: confrontos e revisões. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1969.
GOMES, Nataniel dos Santos. Observações sobre o Tupinambá. Monografia final do Curso de Especialização em Línguas Indígenas Brasileiras. Rio de Janeiro: Museu Nacional / UFRJ, 1999.
LEITE, Yonne; VIEIRA, Marcia Damaso. Línguas tupi-guarani: estrutura ativa e suas cisões. /mss/ /s.d./
LEMOS BARBOSA, A. Curso de Tupi antigo. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.
RADFORD. A. Syntactic theory and the structure of English: a minimalist approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
_____ . Transformational gramar: a first course. New York: Cambridge University Press, 1990.
RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Análise morfológica de um texto Tupi. Separata da Revista “Logos”, ano VII, nº 15, Curitiba: Tip. João Haupt & Cia, 1952.
_____ . Descripción del tupinambá en el período colonial: el arte de José de Anchieta.Colóquio sobre a descrição das línguas ameríndias no período colonial. Ibero-amerikanisches Institut, Berlim.
_____ . Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. 2.ed. Loyola. São Paulo, 1994.
_____ . Morfologia do verbo tupi. Separata de “Letras”. /s.e./ Curitiba, 1953, nº 1.