A INVENÇÃO ÓRFICA DE COCTEAU

 

A inesgotável recorrência de antigos mitos gregos ao longo da história da literatura e da arte pode ser estudada em perspectiva intrasemiótica, se se montam equações comparativas com obras organizadas a partir de um mesmo código, ou em perspectiva intersemiótica, se o tema gera obras em códigos diferentes. Orfeu admite ambos os tratamentos, já que serviu de mote para um sem-número de poemas, na tradição lírica greco-latina, e, com Jean Cocteau, passou da poesia ao cinema.

Da literatura órfica da Antigüidade, 87 hinos são-lhe atribuídos, o que o fez participar de duas tradições não exatamente divergentes, mas muito diferentes: por um lado, Orfeu se associa à poesia e à música; por outro, à religião esotérica de tempos remotos, associada à vida pós-tumular e à transmigração das almas (“ensomátosis”  e  “metempsýkhosis”).  Atribui-se tradicionalmente a ele a fundação dos Mistérios que levam seu nome - os mistérios órficos.

Literariamente, protagoniza a lenda do herói que, valendo-se de sua música encantatória, desce aos Infernos, para recuperar Eurídice, a representação antropomórfica de certa musicalidade inerente ao verso órfico.

Seja nas versões poéticas, seja nas liturgias órficas, o mito de Orfeu contém motivos através dos quais se pode ler privilegiadamente o imaginário antropológico do poeta / artista, seja na Grécia, seja nas épocas pós-clássicas.  Deste conjunto destacamos quatro (motivos):

a) a catábase do herói;

b) a complementaridade dos amantes;

c) o tabu das direções, e

d) o ritual do estraçalhamento (“diasparagmós”) pelas Bacantes.

No contexto artístico do século XX, Orfeu expande sua expressividade através da linguagem fílmica, linguagem que não só corresponde ao ser áurico da personagem tradicional, como confere com a dimensão utópica, nostálgica e dissidente da humanidade a que ele representa - a dos poetas.

Jean Cocteau, também poeta, ao passar seu texto à forma cinematográfica, faz mais do que reatualizar o mito grego: submete as propriedades do código verbal à retórica do movimento, da luz, das sombras e de um conjunto de recursos técnicos do cinema.

No Orfeu cinematográfico, de 1949, já não cabe a função místico-religiosa de que seu precursor grego se vê investido.  O filme constitui um dos mais arrojados experimentos do chamado cinema de poesia e se insere numa filmografia particularmente dedicada à pesquisa do extrato simbólico depositado nos mitos.

A predileção de Cocteau pela temática de Orfeu pode partir das controvérsias em torno do herói, na tradição lendária grega - trata-se de um caso de personagem que, pela religião oficial da “pólis”, era filho de Apolo e Clio, mas seu mais antigo e indiscutível prestígio provinha da genealogia popular, que o fazia filho do rei trácio Eagro e da musa Calíope.  É por essa vertente que Orfeu se vê associado aos cultos mistéricos e marcado por dois atributos importantíssimos: pelo lado paterno, é estrangeiro - o que o projeta numa chave de linguagem e de visão cultural qualitativamente diferente da que predominava a seu redor; pelo lado materno, é herdeiro do mais proeminente dos talentos, a eloqüência épica.

Através das duas genealogias, a oficial e a marginal (dos Místérios), podem-se constatar as dualidade do herói, situado entre a vida e a morte, o real e o sonho, a matéria e o espírito, o conhecido e o desconhecido, o visível e o invisível, os sons e o silêncio.

Acolhido pelo misticismo popular, Orfeu se manteve retirado do protagonismo trágico, tornando-se material poético por excelência, página em branco à mercê da livre escritura.

E, de fato, Cocteau concebe um roteiro original, aproveitando os significantes básicos do mito e reconteudizando-os com novos significados.

O filme se passa na França contemporânea.  Orfeu é um poeta em crise de popularidade, apesar de já ter alcançado o ápice da fama e ser considerado “glória nacional”.

Quando começa a ação, pontifica entre os intelectuais o jovem de 18 anos Jacques Cégèste, aclamado pela crítica e pelo público por um livro que contém apenas folhas em branco.

No “Café des Poétes”, ponto de encontro da intelectualidade, Orfeu presencia o atropelamento e seqüestro de Cégèste, seu adversário de letras.  O corpo é levado num Rolls-Royce negro para um local ermo, e o próprio Orfeu é embarcado na viatura como testemunha.  No carro, o rádio emite frases incompreensíveis.  Ao chegarem ao local de destino, uma casa, Orfeu percebe que todos obedecem a uma dama.  A uma palavra sua o corpo de Cégèste se alça levíssimo.  Orfeu está em presença da Princesa da Morte.

Aturdido, Orfeu é levado para casa por Heurtebise, o motorista da estranha dama, que esconde o automóvel na garagem.   Neste ínterim, Orfeu se torna o principal suspeito do desaparecimento de Cégèste;  a Princesa da Morte se apaixona por Orfeu;  este descobre que o rádio transmite mensagens ininteligíveis, mas pelas quais ele se sente magnetizado, pois guardam toda a poesia de que ele se vê demitido;  Heurtebise se apaixona por Eurídice.  Esta, grávida, teme pela incriminação do marido.  Resolve ir à delegacia, mas, no caminho, é atropelada.  A Princesa da Morte vem apanhá-la - atravessam os espelhos.  Heurtebise convence Orfeu a tentar resgatar Eurídice do mundo dos mortos.

 

Até este momento, o novo enredo proposto por Cocteau já vinha pontuado por signos narrativos e discursivos da ordem do fantástico.  A partir daqui a história de Cocteau se emparelha com o mito grego.  Para reconstruir o mais importante motivo da saga órfica - a CATÁBASE - Cocteau  explora poeticamente a interação de signos verbais e não-verbais.  Acaba confeccionando o filme mais propriamente cinematográfico de sua filmografia.

A intenção de criar uma atmosfera insólita, em que o dado empírico se visse, no mínimo, ameaçado pelo ontológico, é sistematicamente perseguido, o que se confirma pela exploração da trucagem, dos close ups, das acelerações e retardamentos do ritmo de filmagem, das inversões de película e múltiplas interpolações de cenas, todos esses, recursos técnicos com que o tema da morte reconfigura a linearidade do discurso convencional e impõe suas próprias convenções.  Dito por outras palavras, a exploração vertiginosa do tema da morte regramaticaliza a cinética tradicional; submete seqüências previamente apresentadas na narrativa a uma nova sintaxe, ressemantiza imagens, de modo a torná-las signos de um sistema simbólico original, a serviço de uma estilística da soturnidade e, à tela, um verdadeiro altar órfico[i].

Além desses procedimentos formais, que não cabe aqui analisar, pois integrariam uma análise semiótica do discurso, a versão fílmica do mito de Orfeu é surpreendente pelas alterações profundas que imprime à lenda de referência.

O motivo da catábase, na versão fílmica, explora elementos da crença órfica, submetendo-os a geniais reformulações.  Assim é que:

·        o herói empreende não uma, mas duas idas ao mundo post-mortem, e é no retorno, sobretudo o primeiro retorno - a ANÁBASE - após o julgamento no Além-túmulo - que o discurso investe seus mais espetaculares recursos estilísticos, principalmente explorando o jogo das imagens espelhadas e o paralelismo simetricamente inverso das cenas da primeira catábase e da respectiva anábase;

·       o sacrifício que fundamenta a realização do mergulho nas trevas não cabe a Orfeu: aqui é a Princesa da Morte quem se sacrifica pela regeneração da veia poética de Orfeu.

Desta forma, o Orfeu-cantor, grego, que encantou a Senhora dos Infernos, Perséfone, e fez até as Erínias chorarem, não tem este poder de fascínio preservado, na personagem homônima de Cocteau.

O Orfeu moderno troca Eurídice pela Princesa da Morte, esta sim investida dos poderes da não-vida, da trans-temporalidade e do silêncio de que Orfeu carece para criar.

Ao contrário do mito, a trajetória de Orfeu conduz o protagonista da decadência à glorificação no amor intermediado pela morte.

Orfeu, na verdade, não contava nos planos da Princesa da Morte.  Esta, vindo arrebatar Cégèste, acaba sucumbindo ao amor por Orfeu.  Este, sofrendo a desativação de sua voz poética, em crise de silêncio, acaba por tornar-se espelho onde a própria Morte melhor se pode identificar.  O poeta, por sua vez, distanciado de sua função, associa-se ao “de-functus”, que cabe à morte recolher.

Cumprindo, aliás, a significação de que seu nome etimologicamente se reveste, Orfeu é tanto mais autêntico, quanto mais radicalmente atende à sua “orphné”, “obscuridade” onde medram. Indiferenciadas, pulsões de amor e de morte.

Reatualizando a sizígia entre vida e morte, Orfeu revela o pacto conflitivo em que se gesta o poético.  Instaura-se nele a dialética do encontro: a separação da vida e de Eurídice é que lhes dá sentido.

Desdobramento irremediável disto é a deflagração de uma atmosfera de revolta e desobediência que assemelha os amantes a rebeldes, o amor a subversão.  Assim é que, nutridos pela sedução órfica,

·os mortos se apaixonam pelos vivos (a Princesa da Morte por Orfeu; Heurtebise, por Eurídice);

· os vivos se rebelam e entram, ainda com vida, pelos espelhos;

· a morte atua anarquicamente, perde o auto-controle, atingindo Eurídice, e se corrompe, devolvendo Orfeu, morto, à vida;

· a morte, dialetizada com “éros”, adere a um outro tipo de existencialidade, a que decorre do desejo: desliga-se do quadro da escatologia órfica, no que ela tem de decrepitude, de desolação e de repetitividade burocrática (elementos que se encontram no cenário do além-túmulo de Cocteau).  A morte anerótica, morte pela morte, apenas mumifica a doença, a obsolescência e a solidão.  Ao contrário, a morte órfica por excelência seria a última morte, aquela que se experencia no êxtase e na dimensão criativa - que liberta o homem dos retornos à vida e, num determinado momento, faculta à “psykhé”   o mergulho na Via Láctea.  Esta é uma morte traspassada pelo desejo como “de-sider-o”, não orientada para baixo, mas para o alto, para as estrelas, para a luz que nos guia e aquece, mas da qual estamos indefectível e necessariamente afastados.

A verdadeira morte para um órfico encontra correlato apenas no êxtase ou na dimensão criativa, (seja da poesia, seja da concepção decorrente da união de corpos), que eterniza a beleza, a reprodução, a transformação, a continuidade.

A Princesa da Morte devolve Orfeu a Eurídice, não porque renuncie a amá-lo, mas porque o quer ter por inteiro, na dimensão do amor humano, somente possível pela associação com Eurídice.

Em função do desejo da Princesa da Morte, Orfeu retorna à vida.  Mas retorna ainda impuro, imperfeito, como o homem que nunca deixara de ser.  E, por isso, descumpre o compromisso firmado no Hades: torna-se vítima do tabu das direções.  Vejamos como este motivo se liga ao da complementaridade dos amantes, neste mito.

Ironicamente, o herói que integra duas ricas genealogias se destina à solidão.  Observe-se que o nome Orfeu apresenta o mesmo radical de “órfão”, do indo-europeu “orbkho”, que em latim gera “orbus”, “carente de”, sinetes lingüísticos que remetem à própria carência do poético.  Orfeu, desta forma, é o poeta por excelência, errante, solitário, insulado na sua arte e, despossuído de Eurídice, devolvido à sua ORFANDADE.

Constituiria um erro interpretar o mito de Orfeu e Eurídice como uma história de amor, já que os amantes apaixonados são criações tardias, dos poetas alexandrinos.  Nele vem tematizado o poder mágico-misterioso da harmonia.  Com Eurídice, a poesia naturalmente melódica de Orfeu se torna sobrenaturalmente catártica, já que o programa mítico do herói se desloca do plano da audição transgressora de limites para o plano da visão restritiva, do olhar numa única direção.

Orfeu, que tudo pode, está proibido de encarar de frente Eurídice, o mistério da criação poética.  Pode descer para ele, atraí-lo para si, atrai-lo para o alto, mas desviando-se dele.  Este desvio é o único meio de se acercar dele, mas justamente o que Orfeu ambiciona é olhar na noite o que a noite dissimula.

Ocorre que, olhando para trás, Orfeu demonstra não estar preparado para a junção harmônica e definitiva com Eurídice, pois esta é para ele, ainda, a parte física e material de sua arte.

Para o mundo arcaico, olhar para frente é desvendar o futuro e possibilitar a revelação; olhar para a direita é descobrir o bem, o progresso; para a esquerda é o encontro do mal, do caos, das trevas; para trás é o regresso ao passado, às “hamartíai”, às faltas, aos erros, é renúncia à pura transcendência.

Transgredindo a sentença infernal e olhando para trás, Orfeu ratifica a verdadeira condição do homem, como ser-de-busca convocado a desvendar o mistério da existência.

O preço pago pelo citaredo por sua desobediência, por querer ver com seus próprios olhos, é deparar-se com a carência de que todos somos constituídos.  Mas, para Orfeu, o que lhe falta se encontra em Eurídice, cujo nome não gratuitamente se liga a “éuris”, dando a idéia de plenitude, e “díke”, o acerto, a justiça, enfim, o sumo bem, a harmonia da lira órfica, a sonoridade da música de Orfeu.

A Eurídice do filme, não constituindo rigorosamente o par antinômico da sua rival, mantém com ela uma relação que atualiza o padrão arquetípico de duas deusas que retiram da mitologia do além-túmulo os elementos fundantes desta especial relação entre amor e morte, amor na morte, amor pela morte: Deméter e Perséfone.  Deméter, a nutridora, é a mulher transformada pela maternidade; Perséfone, aquela que empreende a catábase reveladora do pacto amoroso, desce aos Infernos adolescente e dele retorna mulher.  Ambas integram a simbologia da penetração nas profundezas do Hades, lugar aonde se vai e do qual se volta transformado.

Ocorre que, na versão de Cocteau, é a Princesa da Morte quem se modifica: habitante das trevas, a transformação se dá quando vem à luz, através da anábase que a coloca face a face com Orfeu.

O destino do poeta, no mito grego, é ser estraçalhado pelas Bacantes, que não admitiam a atenção exclusiva de Orfeu por Eurídice, nem o desprezo que todas as mulheres passaram a dele receber, depois da morte da amada.  A vingança se dá nos termos dos sacrifícios dionisíacos mais sangrentos, violência jamais esquecida pelos órficos, em cujos templos não se admitiam mulheres.[ii]  No filme, Orfeu é morto entre homens e pelo disparo acidental de uma arma de fogo.  As Bacantes, entretanto, estão presentes, em meio à confusão armada e ao círculo ditirâmbico com que Cocteau refez a cena grega.

Orfeu, poeta à procura de seu poema, assume o enfrentamento da morte com a mesma obstinação com que deseja decifrar o seu próprio enigma: o de “ser de linguagem”.

Por isso, Orfeu atira-se ao desconhecido.  Nele descobre que o sentido é a morte do mistério.  Buscá-lo na sua integralidade implica excluir o pensamento do homem, colocar-lhe um ponto final.  Assim se reencontram mito e mistério, partícipes da mesma etimologia.

Esta idéia, que os órficos da Antigüidade vivenciaram ritualisticamente, o protagonista de Jean Cocteau reproduz, assimilando a morte como matéria poética, prodígio que se confirma na irrupção do mito através das Idades - seja na solidão da leitura, seja na umbrosa projeção de um filme como o Orfeu.



[i] Tais observações se extraem de cenas tais como:  REGRAMATICALIZAÇÃO DA CINÉTICA TRADICIONAL:  o enquadramento do símbolo do Rolls-Royce, uma mulher alada, na seqüência do seqüestro do corpo de Cégèste, que tem valor adverbial, por projetar a trama num outro espaço, que já não é mais Paris, ou as tomadas de cena em planos oblíquos, assinalando as ações transgressivas.  NOVA SINTAXE : as repetições de cenas sob novo ritmo de filmagem ou em progressão invertida (o que seria o mesmo de dizer, “rodadas para trás”), a interpolação da longa narrativa da primeira catábase, que é cortada pela continuidade do quadro do carteiro, como se tudo não passasse de um sonho.  RESSEMANTIZAÇÃO DE IMAGENS:  mergulho no espelho, não como gesto narcísico, mas penetração no outro absoluto de nós mesmo, a morte, ou o reflexo da face na poça d’ água, inferindo retorno à vida (o que confere, entretanto, com a teologia órfica).

 

[ii] Como tudo é transformação, na perspectiva órfica, o estraçalhamento de Orfeu também o é.  Não nos esqueçamos de que patrono do orfismo é Dioniso-Zagreu, que foi despedaçado e devorado pelos titãs.  Indignado, Zeus transformou os titãs em cinzas, das quais se geraram os homens.  Por aí os órficos explicavam a natureza dúplice dos homens: bons, pela herança do menino Dioniso; maus, pela herança titânica.  A morte de Orfeu reedita, pois, transformada, a desdita do primeiro Dioniso (primeiro, porque é salvo da morte por seu pai, Zeus.  Mas isso já é outra história...).