Gramática dos Pronomes-completo
Lúcia Maria de Jesus Parcero
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Este projeto de pesquisa apresenta uma proposta de estudo com fins de depreender a gramática dos pronomes complemento dos textos a serem editados pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Documento – NIPED - S450, projeto intitulado DOCUMENTOS – SALVADOR 450 ANOS – Contribuições à Historiografia Soteropolitana e ao Estudo do Português do Brasil (Cf. projeto coletivo)[1].
Sabe-se que muitos fatos lingüísticos que diferenciam o português brasileiro (PB) do português europeu (PE) já estavam na língua no final do século XVIII. Teyssier (1982:77) aponta expressões, em peças do teatro português, datadas de 1788 e 1818 que caracterizam a fala brasileira:
A primeira alusão à maneira de falar desse tipo de personagem aparece numa peça de 1788 (O Miserável Enganado). É necessário, no entanto, esperar O Periquito ao Ar ou o Velho Usuário, de Manuel Rodrigues Maia (...) para encontrar uma série de pormenores caracterizadores da língua do personagem: mi diga (diga-me), di lá (de lá) sinhorinho, emprego generalizado de você, etc.
Tarallo (1993:99) também assegura que os traços que caracterizam o PB
entraram para a língua no final de 1800 porque circunstâncias especiais aconteciam naquele momento da história externa (...) sem vias de dúvidas, entretanto, pode ser afirmado que o cidadão brasileiro já estava de posse, no final do século XIX, de sua própria língua gramática.
Embora recentemente muitas pesquisas venham sendo desenvolvidas sobre a formação do PB, dentre elas muitas no Programa para a História da Língua Portuguesa (PROHPOR), da UFBA, sob a coordenação da Profa. Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva, muito ainda se tem a fazer para escrever a trajetória do vernáculo brasileiro.
Dos vários aspectos que diferenciam a variante lingüística do PB da variante européia, esta pesquisa focalizará as modificações ocorridas no sistema pronominal, mais especificamente as que envolvem os pronomes-complemento dos textos a serem editados.
Diversos estudos têm apontado a entrada da forma pronominal você, como pronome pessoal de segunda pessoa, possivelmente a partir de 1800, como agente desencadeador das profundas modificações que resultaram no atual sistema pronominal do PB. Os Quadros 1 e 2 a seguir, apresentados em Kato (1994:222), mostram o paradigma pronominal antes e depois da introdução de você.
Função |
|
OD |
OI |
INDEF |
REFL |
Pessoa |
|
|
|
|
|
1a |
(eu) |
me |
me / para mim |
|
me |
2a |
(tu) |
te |
te / para ti |
|
te |
3a |
(ele) |
o/lo/ no |
para ele
lhe |
se |
se |
Quadro 1 – Paradigma pronominal antes da entrada de você[2]
Função |
|
OBJ |
OI |
INDEF |
REFL |
1a |
eu |
me |
para mim |
|
(me) |
2a indir.
|
você
|
você
te |
te
lhe |
(você) |
(se) |
3a |
ele |
0/ele/lhe |
para ele lhe |
0 se |
(se) |
Quadro 2 – Paradigma do PB após a introdução de você
Enquanto o Quadro 1 mostra uma correspondência biunívoca entre pessoa e pronome, o Quadro 2 apresenta a reestruturação, ocorrida no PB. Pode-se observar que à exceção dos pronomes de primeira pessoa, os demais se encontram em processo de variação e mudança lingüística.
Alguns fatos sintáticos são apontados por Kato (1994) e Cyrino (1993) sobre as modificações no quadro pronominal do PB:
1 – O clítico te, forma oblíqua de tu, apresenta-se em alternância com o pronome você em posição acusativa, como em (a) abaixo. Para Cyrino (1993:166) o preenchimento com o pronome forte em posição acusativa se estende aos pronomes de terceira pessoa quando o referente é [+ animado] como em (b). O clítico acusativo de terceira pessoa é também, segundo esta autora, o primeiro a desaparecer. A sentença em (c) mostra a categoria vazia na posição do objeto, fenômeno conhecido na literatura lingüística como objeto nulo.
a) Maria procurou você, mas não te viu.[3]
b) Maria procurou o Pedro, mas não viu ele.
c) Pedro viu o casaco barato, mas não o/Ø comprou.
2 – Ainda segundo Cyrino (1993:168) na primeira metade do século XVIII são atestadas sentenças do tipo:
a) João queria falar-lhe
b) João queria lhe falar
c) João lhe queria falar
Já no PB do século XX ela só encontrou o padrão do tipo como em (b ). O pronome deixa de ser móvel e se fixa ao verbo mais baixo
Contudo, como mostram os exemplos em (d/e) a subida do clítico subsiste em passivas, fato que pode ser atribuído à existência de concordância:
d) O livro lhe foi dado
e) As flores lhe foram dadas.
3 – Encontra-se também em processo de mudança a forma dativa lhe, que em alguns dialetos substituiu a forma acusativa com traço [+humano] da segunda pessoa indireta, como exemplificado em (a) e (b), ficando a terceira pessoa com a forma preposicionada para ela como em (c).
a) Eu lhe vejo
b) Eu lhe encontro na festa.
c) Pedro trouxe as flores para ela.
Este projeto específico, de caráter diacrônico, se propõe a depreender o sistema dos pronomes-complemento na tentativa de responder aos seguintes questionamentos:
· Como está organizado o paradigma dos pronomes complementos na gramática dos textos editados?
· Há variação no uso desses pronomes?
Pretende-se, com esta pesquisa, acrescentar dados dos textos a serem editados aos já existentes para que se possa avançar mais um pouco no conhecimento do percurso das mudanças ocorridas no PB. Pretende-se ainda, na medida do possível, buscar fatos extralingüísticos, para uma melhor compreensão da evolução do PB nesses 500 anos de história.
Para isso, se efetuará uma análise descritiva e quantitativa, considerando-se as diferentes funções sintáticas dos pronomes-complemento, tradicionalmente conhecidas como objeto direto, objeto indireto, complementos preposicionados, atribuídas pelos casos latinos, nomeadamente o acusativo e o dativo, observando-se a posição dos clíticos em geral.
Serão também analisadas as expressões com os verbos querer, poder, dever, bem como as construções passivas, que, conjuntamente com os outros elementos detectados na análise, esboçarão um quadro geral de ocorrências dos pronomes-complemento, contribuindo assim, para futura elaboração de uma gramática descritiva do português dos séculos XVIII e XIX escrito no Brasil.
Além disso, são objetivos específicos da pesquisa:
a) Efetuar a leitura de uma parte das atas do livro 266 do período de 1828-1831, arquivadas na Fundação Gregório de Matos.
b) Levantar todas os complementos pronominais e suas variantes, considerando-se as diferentes funções sintáticas, tradicionalmente conhecidas como objeto direto, objeto indireto, complementos preposicionados atribuídos pelos casos latinos (acusativo, dativo), observando-se a posição dos pronomes utilizados em relação ao verbo ou expressão verbal.
c) Tornar disponível um corpus eletrônico para posterior interpretação e/ou análise formal dos fatos lingüísticos descritos.
O corpus será constituído de sentenças raízes e encaixadas com pronomes-complemento. A distinção de pessoa gramatical norteará a organização dos dados que serão analisados considerando-se a animacidade do complemento, o tipo de preposição e o tipo de verbo, interpretados com base em um programa eletrônico especialmente desenvolvido para este fim, que permitirá que esses resultados possam servir de elemento de análise para futura formalização teórica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CYRINO, S. M. L. Observações sobre a mudança diacrônica no português do Brasil: objeto nulo e clíticos. In ROBERTS, Ian & KATO, Mary A. (orgs). Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
FLEXOR, Maria Helena. Abreviaturas – manuscritos dos séculos XVI ao XIX, 2 ed. São Paulo: UNESP/Arquivo do Estado de São Paulo, 1991.
KATO, Mary A. Português brasileiro falado: aquisição em contexto de mudança lingüística. ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE O PORTUGUÊS. Lisboa. p. 209-237. 1994.
KROCH, Anthony. Reflexes of grammar in patterns of language change. Language Variation and Change. 1: 199-244, 1989.
LIGHTFOOT, David. The Development of Language: acquisition, change, and evolution. Maryland: Blackwell. 1999.
LOBO, Tânia. A colocação dos clíticos em português: duas sincronias em confronto. Lisboa, 1992. Dissertação em Lingüística Histórica – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
MARTINS, Ana Maria. Clíticos na História do português. Lisboa, 1994. Tese de Doutorado em Lingüística Histórica – Universidade de Lisboa.
MARTINS, Ana Maria. Mudança sintática clíticos, negação e um pouquinho de scrambling. Estudos lingüísticos e literários, Salvador, n. 19 p. 129-161.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas trecentistas: elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa: INCM, 1989. (Estudos Gerais. Série Universitária).
PARCERO, Lúcia Maria de Jesus. Fronteamento de constituintes no português dos séculos XV, XVI e XVII. Salvador, 1999. Dissertação em Lingüística Histórica. Universidade Federal da Bahia.
RIBEIRO, Ilza. A sintaxe da ordem no português arcaico: efeito V2. Campinas, 1995. Tese de Doutorado em Lingüística – Universidade de Campinas.
RIBEIRO, Ilza. A obra pedagógica de João de Barros; a sintaxe da ordem nas sentenças encaixadas. Estudos lingüísticos e literários, Salvador n. 19, p. 217-237, 1997.
RIBEIRO, Ilza. A mudança sintática do PB é mudança em relação a que gramática? In ATALIBA, T. de Castilho (org.). Para a história do Português brasileiro, vol 1: Primeiras idéias. São Paulo 1998.
SAID ALI, Manuel. Gramática histórica da língua portuguesa. 3 ed. melhorada e aumentada de lexicologia e formação de palavras e sintaxe do português histórico. São Paulo: Melhoramentos, 1964.
TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Traduzido por Celso Cunha. 2 ed. Lisboa: Sá da Costa, 1984.
[1] O referido projeto tem como objetivo geral proceder à edição semi-diplomática das atas manuscritas da Câmara de Vereadores de Salvador, constantes dos livros dos seguintes períodos: de 1787-1801, de 1801-1816 e de 1816-1826 e de 1828-1831.
[2] Dos quadros 1 e 2 foram retiradas as colunas referentes aos pronomes possessivos.
[3] Muitos dos exemplos aqui apresentados se encontram em Kato (1994) e em Cyrino (1993).