CONTINUIDADE E MUDANÇA NA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL
Sebastião Josué Votre (UFF)
O propósito deste trabalho é oferecer evidência para uma abordagem pancrônica da variação, mudança e continuidade sintática e semântica, a partir de análise contrastiva de diferentes sincronias na trajetória do latim arcaico ao português brasileiro contemporâneo. A análise focaliza, sobretudo, construções sintáticas complexas, com quatro verbos cognitivos em português e latim: achar, pensar, saber e ver, em que o objeto direto é uma oração, desenvolvida ou reduzida. Prestamos atenção também para os mecanismos morfológicos, com ênfase para a morfologia derivacional. Os dados do corpus Discurso & Gramática e do teatro latino e português arcaico, bem como a Carta de Pêro Vaz de Caminha, servirão como fonte de referência sobre sintaxe e semântica dessas construções. Qualitativa, a abordagem procura oferecer pistas de tendências, sem buscar comprovação quantitativa das mesmas.
Inicialmente, apresentamos alguns postulados para uma análise situada dos processos de mudança e das marcas de continuidade, seguidos de questões norteadoras da pesquisa, bem como hipóteses de trabalho, pressuposto teórico e método, para por fim nos ocuparmos da sintaxe e semântica da combinação de cláusulas desses quatro verbos.
Os postulados que ora adotamos para análise de variação, continuidade e mudança supõem uma abordagem plural, pancrônica, uniformitária, com espaço para complexidade, fragmentação e dissipatividade das unidades sintáticas e léxicas. Há um espaço privilegiado para abordagem situada dos fenômenos da língua, que se propõe contingente e não-essencialista. Nesse contexto, damos atenção simultânea para continuidade e mudança, com questionamento da unidirecionalidade da mudança, e com assunção crítica da proposta derivacionista (que prevê caminho unidirecional da etimologia à pragmática). Elaboramos a proposta de um princípio de extensão imagética instantânea, e não desenvolvida na linha do tempo. Segundo esse princípio, as tendências presentes num momento da história da língua atuaram no passado, atuam no presente e continuarão a atuar da mesma forma, indefinidamente. A hipótese de trabalho é que a faculdade metafórica da linguagem opera de modo instantâneo, no sentido de que todas as suas virtualidades e potencialidades se tornam disponíveis na mente das pessoas que interagem na comunidade discursiva, ancoradas no contexto situacional de cada interação. Portanto, em vez de falarmos em derivação de sentido, estaremos enfatizando relações entre diferentes níveis de abstração dos sentidos, sem garantir qual resultou de qual.
Procuraremos mostrar que vários sentidos e formas hoje disponíveis na língua eram manifestados e estavam fossilizados, quer no português quinhentista, quer em latim. O implica que, para alguns verbos, não temos evidência de que as formas não se tornam necessariamente mais reduzidas, e que os sentidos não se tornam, necessariamente, mais vagos, genéricos ou abstratos, no curso do tempo. Para outros, em que aparente evidência de mudança se manifesta, falece-nos a certeza sobre se os sentidos abstratos não circulavam na língua, ou, mais provavelmente, estavam disponíveis, potenciais, e não apareceram nos dados porque não houve aí contexto que os aninhasse.
A polissemia, e a configuração sintática de ver atual é, sensivelmente, a mesma que se verifica na fase arcaica do português e do latim. A dificuldade em identificar e classificar alguns sentidos e dos usos, longe de representar inadequação do modelo, apontaria para o caráter complexo, fragmentário, dissipativo e não totalmente gramaticizado do fenômeno que está sendo analisado. A alternativa de análise supõe uma revisita do conceito de língua de Bolinger: em vez de uma estrutura maleável, que se adapta continuamente, para dar conta das necessidades comunicativas, entendemos que a língua, em seus diversos setores e unidades, pode adaptar-se continuamente, para dar conta de pressões contextuais, e que na mente de cada falante a mesma é instantaneamente instalada, com seu aparato imagético, através de qualquer de seus usos. Por fim, assumimos uma postura de reserva em relação a concepções gerais, relacionadas a reanálise, unidirecionalidade, mudança semântica, e especialmente a desbotamento semântico: não temos evidência de qualquer movimento do concreto para o abstrato, na trajetória de ver, do latim arcaico para diferentes fases do português.
São questões norteadoras para estudos desse novo enfoque, em primeiro lugar, as relacionadas ao como, ao modo de comportamento da língua: Como o português falado e escrito se comporta, em diferentes momentos do estágio brasileiro, em termos de continuidade e mudança, face ao português arcaico e ao latim arcaico, na sintaxe de combinação de cláusulas? Esta questão permite investigar e discutir aspectos em que a língua se mantém estável, no curso do tempo, bem como privilegia aspectos em que a língua varia, de forma estável, e aspectos em que a mesma vem mudando. Uma outra questão relacionada à primeira investigaria relações entre o lingüístico e o social: que interrelações estabelecemos entre os processos de variação e mudança e as variáveis culturais, sociais, econômicas e geográficas? O encaminhamento de respostas a estas perguntas supõe o estabelecimento de definições prévias para os conceitos de mudança, variação estável e instável, não mais atrelados ao modelo binário do estruturalismo.
A hipótese geral de trabalho se refere a continuidade e estabilidade: o português no Brasil se mostra estável, no período de cinco séculos, com pontos tênues de variação e com indicativos de mudança restritos a lugares específicos da estrutura. Portanto, o princípio do uniformitarismo lingüístico oferece espaço teórico para descrever densamente tanto os contextos de continuidade como aqueles em que prevalece a variação instável e a mudança.
A orientação pancrônica, com suporte no princípio do uniformitarismo, prevê permanência e continuidade no efeito de fatores estruturais e sociais no uso da língua, independentemente do estágio que está sendo analisado. Entendemos que tal princípio permite uma visão mais ampla da natureza e dos mecanismos de funcionamento da língua do que a visão sincrônica (estática) e do que a visão diacrônica, que esquece ou omite a natureza sistemática e estável da língua. A abordagem representa uma opção explícita pela análise de dados em situação real de ocorrência.
A análise aqui esboçada, de orientação qualitativa, é de caráter histórico-comparativo. Fornece-se uma ilustração de descrição densa do espectro de variação e mudança, com atenção particular para o contexto da produção de cada item, bem como para o tipo de interação. As freqüências de ocorrência dos fenômenos serão computadas para que se possam inferir tendências.
Merecem atenção especial os mecanismos de articulação de cláusulas, na formação de períodos compostos por coordenação e por subordinação. Em ambos os processos, alguns conectivos permanecem e outros são progressivamente substituídos, no curso do tempo.
Importa investigar o nível de integração de cláusulas, no lapso dos séculos, nos mecanismos de combinação desses dois tipos de cláusula subordinada. Os sistemas de conectivos coordenativos e subordinativos constituem subtópico da análise da combinação de cláusulas. Ilustramos o ponto com os verbos ver, achar, pensar e saber.
O exame dos quatro verbos mostra que há casos de substituição total ou parcial de verbos, no curso da língua: videre resultou em ver, e hoje tem sentidos associados a enxergar e avistar; scire foi substituído por sapere > saber; putare, por cogitare, pensare; curare, por adflare > aflare ~ > achar.
O estudo de ver oferece evidência de variabilidade contextual no interior da estabilidade semântica. É o que pode verificar para video, videre, em Plautus, no século segundo A.C. No Amphitryon, com 42 ocorrências de videre, temos:
1. ver, literalmente: 16 dados. Ex: (diálogo entre Alcmena e Amphitryon)
Alcmena: – Atque me nunc proinde appellas, quase multo post videris?
Como fala assim comigo, após teres me visto há pouco?
Amphitryon: – Immo equidem te nisi nunc hodie nusquam vidi gentium.
De fato, não vi você esta manhã, estou seguro disso!
2. experimentar, perceber: 15 dados. Ex: Blepharo: Vos inter vos partite: ego abeo, mihi negotium est, neque ego unquam usquam tanta mira me vidisse, censeo.
Vocês, dêem o fora! Estou fora disso. Até hoje, nunca vi tanta coisa fantástica, certamente.
3. verificar, checar: 5 dados. Ex:
Amphitryon: Sequere hac igitur me; nam mihi istuc primum exquisito est opus. Sed vide ex navi efferantur ut quae imperes compareant.
Por favor, fiquem comigo. Primeiro, cabe resolver este mistério. Mas controlem tudo o que sair dos navios, para que venham para cá.
4. perceber com os olhos. Ex:
(Sosia e Mercurius)
Sosia: Salvus sum, non me videt.
Estou salvo, ele não me vê.
5. perceber com os ouvidos, ouvir:
Mercurius: Hinc enim dextravox auris, ut videtur, verberat.
De fato, vejo que alguma coisa soa, no ouvido direito.
6. experimentar a extensão do tempo. Ex:
(Mercurius e Sosia)
Mercurius: (olhando o céu) Perge, Nox, ut occepisti; gere patri morem meo.
Optumo optume optumam operam das, datam pulchre locas.
Por favor, noite, continue a ser longa...
Sosia: Neque ego hac noct longiorem me vidisse censeo.
Nunca vi uma noite tão comprida como esta.
7. difícil de classificar: 4 dados. Ex: diálogo entre Amphitryon /Juppiter e Sosia)
Sosia: Atque ita servum par videtur frugi sese instituere:/ proinde erit ut sint, ipse item sit; multum e multu comparet;/ tristis sit, si erit sint tristes; hilarus sit, si gaudeant./ sed age responde; iam vos redistis in concordiam?
É o que se espera do servo: viver de acordo com o patrão: triste, se este estiver triste; alegre, se alegre. Digam-me: pararam de brigar?
Carta de Pêro Vaz de Caminha (31 dados)
8. p.10 – …e fomos de lomgo dacosta com os batees e esquefes amarados perpopa comtra onorte paraveer se achavamos alguua abrigada e boo pouso omde jouvesemos pera tomar agoa e lenha….
9. p. 54 – Ora veja vosa alteza quem em tal jnocemçea vivem ensinamdolhes oque perasua salvacom perteeçe.
Gil Vicente, Auto das Barcas e Inês Pereira, sec. XVI – (80 dados)
10. literal: Fidalgo: Parece-me isso cortiço!
Diabo: Porque a vedes lá de fora!
11. perceber:
Diabo: – Ora entrai nos negros fados,/ ireis ao lago dos cães,/ e vereis os escrivães/ como estão prosperados!
12. Verificar, checar:
Anjo: – Veremos se vem alguém/ merecedor de tanto bem/ que deva de entrar aqui.
13. avaliar:
Diabo: Tomareis um par de remos,/ veremos como remais!
Temos evidência de variabilidade no interior da estabilidade semântica, para ver, no português contemporâneo: Corpus Discurso & Gramática, Rio, 1995 – (66 dados):
14. lembrar, pensar:
Deixa eu ver o que que tem mais no meu quarto...
15. ver com os olhos
Ele diz que vê você passando todos os dias aqui na rua.
16. perceber, concluir
Com o tempo fui vendo que não era nada disto.
17. testar, verificar, julgar
Aí eu falei até com meu namorado pra ver se ele se mancava.
18. sentido abstrato, difícil de estabelecer
Eu vi que meus esforços tinham sido inúteis.
Quanto à construção oracional, postulamos um esquema conceptual básico:
x Verbo y, como ponto de referência, para lidar com a continuidade sintática e com a mudança. X é um sujeito humano e Y um complemento. Temos, então:
x VER y ~ x VER qu-/si + complemento oracional finito ~ x VER + complemento oracional reduzido ~ x VER + oração gerundial, no latim de Plautus:
19. x VER y
Sed vidistin uxorem meam?
20. x VER ut/qu-/sis + complemento oracional finito
Sed vide ex navi efferantur ut quae imperes compareant.
21. Vide sis quam mox vapulare vis.
22. x VER + acusativo, mais complemento oracional infinitivo
Menses iam tibi esse actos vides.
23. x VER + oração no gerúndio: (não há no Amphitryon)
Mas tal construção ocorre, com predicativo do objeto: Ex.
Juppiter: – Optume advenis.
Sosia: Iam pax est inter vos duos?/ nam quia vos tranquillos video, gaudeo et volupe est mihi.
Em português arcaico (Gil Vicente):
24. x VER y
Diabo: Porque a vedes lá de fora!
25. x VER qu-(como)/se + complemento oracional finito
Diabo: Tomareis um par de remos,/ veremos como remais!
26. Anjo: Veremos se vem alguém/ merecedor de tanto bem/ que deva de entrar aqui.
27. x VER + complemento oracional infinitivo
Que aquele outro marinheiro,/ porque me vê vir sem nada...
28. x VER + oração de gerúndio
Diablo: Véis aquella puente ardiendo,/ muy lexos allém del mar? (Barca da Gloria)
Em português contemporâneo (Corpus Discurso & Gramática):
29. x VER y
Deixa eu ver o que que tem mais no meu quarto...
30. x VER + oração reduzida de gerúndio:
Eu vejo sempre elas varrendo o pátio.
31. x VER que/si + oração finita:
Eu vi que meus esforços tinham sido inúteis.
32. Aí eu falei até com meu namorado pra ver se ele se mancava.
Os verbos achar, pensar e saber têm comportamentos singulares, se comparados ao que acabamos de mostrar para ver. O português aflar, hoje, ocorrem em construções como
33. "aflar os fatídicos, vaticinantes, profetas";
na literatura, temos
34. "…as asas de sua musa que aflam por vezes tão serenamente nos páramos lucilantes das estrelas’ Camilo, Boêmia do Espírito, 229. Ou:
35. "Leques aflavam de leve sobre os colos orvalhados de pedrarias" – Coelho Neto, Tormenta.
O verbo achar, com sua polissemia, se verifica em versos clássicos, como em:
36. "Sobre isso nos conselhos que tomava / achava mui contrários pareceres" (Lus, VIII, 60). Ou:
37. Acha que é justo e que é direito / Guardar-se lei do rei severamente, / E não acha que é justo e bom respeito / Que se pague o suor da servil gente (Lus, VII, 86)
Ou na prosa, em expressões como:
38. Achava conveniente que lhe enviasse órfãs (Os Sertões, 89).
Uma possível trajetória: afflare > afflar > achar. No português arcaico, temos:
39. "…pella quall rrazom o llobo em pomto de morte amdaua buscamdo phisico que tirasse o osso e achou a grua".
40. x achar que + complemento oracional finito
"Dos gregos achamos que Socrates foy de doce e graciosa e festival pallavra, a que os gregos chamam ‘yronya’."
41. … e pose-as Moses todas treze varas eno tabernaculo ante nostro Senhor, e tornou em outro dia, e achou que a vara de Aaron enverdecera, e estava comprida de folhas, e deitava amendoas".
42. "Consiira tu em todos seus feitos, e acharás que sempre reluze em êles humildade…’
Vejamos o esquema: x achar +complemento oracional infinitivo, ou, numa nova alternativa de interpretação, o esquema achar de + infinitivo, que continua ativo no português contemporâneo. Neste caso, apenas a preposição se teria esvaído:
43. "E mãdou vijnr cõmigo hua muy honrada dona diaconyssa, per nome chamada Romana, a qual, quando ueo, achou iazer aos pees do sancto bispo Nono Pelagia com gran planto e doo."
O mesmo sentido de achar de poderia estar presente no exemplo seguinte:
44. ‘…aqueles que i veerem maravilhem-se da humanidade e da caridade que viirem e acharem morar em o ermo, a qual é vida esterrada das cidades."
Vejamos agora alguns exemplos de achar no português contemporâneo. Comecemos por x achar que + complemento oracional finito
45. "Eu acho que a minha historia eh diferente, neh, porque"…
O uso de achar é sensível ao nível de educação dos seus usuários, o que constitui evidência de seu desprestígio no meio escolar, em que tende a ser substituído por pensar:
Universitário 81/241 33.6%
Médio 67/241 27.8%
8 ano elementar 36/241 14.9%
4 ano elementar 24/241 10%
analfabeto 17/241 7.05%
Achar se concentra, de forma dominante, no discurso de opinião:
Oral Escrito
opinião 138/200 69.0% 29/41 70.7%
narrativa pessoal 23/200 11.5% 03/41 7.3%
narrativa recontada 25/200 2.5% 06/41 14.6%
descrição de lugar 07/200 3.5% 03/41 7.3%
descrição de procedimento 07/200 3.5% -
Os sentidos de achar no português contemporâneo correspondem, de perto, ao que se vê no português arcaico:
46. ‘percepção´:
Acho que... essa seleção não está boa... apesar de... ter sido... classificada pra final...
47. incerteza epistêmica:
Acho que ele era nadador... profissional…
48. exortação
Eu acho que as pessoas deveriam contribuir... né?
49. adendo
…aí eu estava no colégio... era... aula de ciências... eu acho.
A semântica e a sintaxe de pensar, no português arcaico, é sensivelmente idêntica ao que se verifica no português de hoje:
50. X Pensar que + complemento oracional finito:
... Quando fezermos algu)as cousas santas, teemo-lo sem duvida por nosso devedor e quando pensamos que nom obramos algu)a cousa, entom daquel pensamento merecemos mais que por as obras que fazemos... (Vita Christi).
51.... Se tu podesses ouvir a Virgem, como cantava com prazer eu penso que tu começarias de cantar com ela alegria de tam grande benefício... (Vita Christi).
X Pensar + complemento oracional infinitivo se manifesta em construções como:
52. ... U pensas tu poder fazer êsto? (Boosco Deleitoso).
53. ... Em el-rei Herodes tomarom forma e exemplo os maaos e cruees, que depois pensavam destroir a fé e religiion dos cristaãos por matarem os mártires... (Vita Christi).
Pensar, em Português contemporâneo, ocorre no esquema: X Pensar + oração apositiva
54. Aí eu pensei: "vai dar certo"
55. X Pensar + complemento oracional finito: com subordinada no modo indicativo:
Todo mundo levou um susto... pensou que era algum assalto ou alguma coisa parecida...
56. Com subordinada no modo subjuntivo:
Todo mundo levou um susto... pensou que fosse algum assalto ou alguma coisa parecida...
A construção com X Pensar + complemento oracional infinitivo ocorre em casos como:
57. ... eu pensava ir mais tarde à praia.
Os sentidos de pensar cobrem amplo leque, que vai do sentido de interpretar neutramente, até o de controlar, ou tentar controlar:
58. "Os bandidos desceram... correndo... aí eles pensaram que era alarme... de alguma coisa... pra descer... eu sei que todos eles saíram descendo correndo... aí até um deles saíram com uma arma na mão..."
59. Quando os meus pais se separaram, eu fiquei muito chocada, porque eu pensei que eles iam se separar por causa de outra coisa, mais não, por causa de outra mulher que meu pai tinha...
60. ... eu penso que você não deveria perder o ônibus amanhã cedo.
A semântica e a sintaxe de saber representa um caso, interessante, de derivação de sentido, ou de transferência do concreto para o abstrato. No português arcaico encontramos, ainda, o sentido de sentir o sabor:
61. "... e coziam-nos em água em um capacete, que, ainda que era ferrugento e os almeirões sabiam a ferrugem, sabiam bem com a fome." (Historiadores Quinhentistas).
62. "E os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas, que não pode, aflita, derramar!"(Teixeira de Pascoais, Maranos, III, 22);
63. "Entre eclesiásticos guarda-se de coisas que saibam a lascívia e profanidade"(Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, I, Diálogo VIII, 120).
Por outra, o sentido de compreender, interpretar, ocorria perfeitamente normal na fase arcaica:
64. "E êles te confortam e êles te amoestam e êles te ameaçam muitas vêzes, segundo tu bem sabes". (Boosco Deleitoso);
A sintaxe de saber em português arcaico era, em termos gerais, a de hoje:
65. x Saber que + complemento oracional finito:
"E deve-se saber que a oraçom nossa é de ouvir, se com ela concorre e se ajuntarem três cousas". (Vita Christi).
66. "No bautismo de Cristo se abrirom os ceeos por saberes que quando tu, homem, és bautizado, que aquêlo meesmo se faz, mas nom que tu vejas, chamando-te Deus dês aquela hora pera o ceeo, e amoestando-te e movendo que nom tenhas de veer com cousa de parçaria da terra". (Vita Christi).
Vejamos a construção X Saber + complemento oracional infinitivo, nas fases arcaica e contemporânea:
67. "Dos nossos duques Q. Maximo achamos que ligeiramente sabia encobrir e callar e fingir e asseitar e conhecer o consselho dos imiigos".
68. Eu sei fazer salpicão de batata.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exemplos de uso dos quatro verbos cognitivos aqui examinados oferecem evidência tanto para a continuidade como para a mudança, dependendo da interpretação que se queira dar aos mesmos. Acostumados, pela tradição histórico-comparativa e neogramática, a privilegiar a mudança, quase perdemos a capacidade de examinar o estável, o permanente, o duradouro. Chegamos a afirmar, num momento de euforia da mudança, que só o processo é perceptível, e que o estável é invisível aos olhos.
Ora, o exame de ver, nas três sincronias, com contextos transparentes, ou ao menos translúcidos, para sentidos concretos e abstratos em cada uma delas, sem evidência a favor de derivação do concreto para o abstrato no curso do tempo, parece contribuir para os argumentos em favor da permanência da sintaxe e da semântica desse verbo, no curso dos séculos. Acrescente-se que, nas línguas indo-européias, a raiz vid-/ved- se apresenta com uma estabilidade que nos assombra o espírito, desde os Vedas, até os previdentes, os videntes e, sobretudo, os evidentes.
Por outra, os exemplos de aflar/achar deixam em aberto o problema da mudança: o fato de aflar ocorrer no latim e em português contemporâneo com o sentido de soprar não garante, por si só, que não teria existido, simultaneamente, em latim, o sentido de procurar, e localizar. Temos ocorrência do sentido concreto, mas isso não nos autoriza a descartar o sentido abstrato. Num certo sentido, estamos acostumados a ver o que a teoria neogramática e histórico-comparativa nos faculta ver. Estamos prontos a admitir que os indo-europeus, lavradores, estariam supostamente mais próximos da terra, da natureza, e daí derivamos a crença do sentido mais concreto da língua que usavam. Como se a dimensão mágica, religiosa, mítica e fantástica não fizessem parte de todas as culturas, e, pior ainda, como se ocorressem preferencialmente na civilização contemporânea.
Diga-se o mesmo de pensar. Em vez de transferência metafórica, podemos pensar em correspondência metafórica, e nesse sentido podemos encontrar suporte para a hipótese que prevê que, ao mesmo tempo em que servia para a idéia de pesar, atribuir valor ao trabalho através do peso da lã, no período romano, o verbo pensar também se utilizava com o sentido de pesar palavras, idéias, propostas, tal qual o fazemos hoje. Por que teríamos nós mais propensão ao abstrato do que os romanos, que nos legaram o sistema jurídico, mítico e religioso no qual nos movemos?
Quanto a saber, o que sabemos nós, hoje, sobre as diferenças entre saber com o corpo e com o espírito? Até que ponto o segundo saber é distinto do primeiro? Ou dele derivado? Como provar que os dois sentidos não coincidem, ou não se emaranham, de forma inextricável, nos sabores e saberes sabidos e saboreados? Até que ponto, temos, em nós, uma substância mental distinta da corporeidade?