DO LÉXICO AO SOCIAL: A PALAVRA E O PRECONCEITO

Maria Emília Barcellos da Silva (UFRJ)

 

A tradição ocidental judaico-cristã instaurou o mito da dependência feminina em relação ao ser masculino com a narrativa da criação da mulher, a partir de uma costela de Adão, fato que erigiu os contornos de uma sociedade estatuida em bases patriarcais, fortalecidas pelo banimento da contestadora Lilith, figura capaz de esculpir um comportamento diferente daquele arbitrado como compatível com o “sexo frágil”, “segundo sexo”, “sexo submisso” e outros que-tais.

A óptica pela qual cada cultura vê as suas mulheres varia em função dos fatores e das condições civilizatórias que suscitam e modelam condutas e atitudes dos seus planificadores e construtores. Em todas as sociedades, em todos os tempo, a humanidade elaborou uma divisão biológica do trabalho muitas vezes ligada, remota ou proximamente, às diferenças originais que orientam primariamente os indivíduos. É indiscutível que a cultura, a um só tempo, molda e limita os seres que a determinam, delimita mesmo o que será pensado e sentido pelos copartícipes grupais. No entanto, mesmo as diferenças físicas — marcantes e marcadas — são vistas e ponderadas diversamente pelas várias culturas: o que é considerada conduta feminina por uma pode ser havida como masculina por outra: exemplo disso é o fato de, na ocidental, à guisa de proteção, a mulher preceder o homem nos deslocamentos; na oriental e na sociedade silvícola, é ele quem vai à frente, concebendo o seu protecionismo por outros entendimentos; em certas comunidades rurais, especialmente as dos habitantes do chaco paraguaio, o resguardo pós-parto é prerrogativa do pai da criança, enquanto a mãe não interrompe a sua lida, seja na lavoura seja em casa, além do tempo necessária para dar à luz o seu filho.

A sociedade ocidental rotulou determinadas atitudes como ou masculinas ou femininas, segundo o seguinte quadro de especificações elaborado a partir de depoimentos colhidos em pesquisa realizada durante o segundo semestre de 97 e o primeiro de 98, com cariocas adultos, de ambos os sexos, escolaridade mínima de segundo grau:

características masculina

característica femininas

agressividade

doçura

autoridade

submissão

decisão

timidez

vigor

sensibilidade

razão

emoção

independência

dependência

raciocínio analítico

ilogicidade

profundidade reflexiva

superficialidade

discernimento

intuição

Apesar da atualidade da recolha dos dados, observa-se que as atitudes arroladas decorrem de visadas bastante ultrapassadas que tentam explicar o mundo como, de há muito, se convencionou ser ele reconhecido, sem atentar para a falta de ressonância com o que se verifica cotidianamente: mesmo os rótulos que não mais correspondem aos indivíduos que igualitariamente constroem a realidade são mantidos e, por vezes, cobrados de uns e de outros ao sabor da conveniência.

Alguns informantes do sexo masculino, de mais de 50 anos, declararam-se saudosos do tempo em que à mulher cabiam três elocuções bastantes e suficientes para justificarem o seu estar-no-mundo:

“shiit, galinha; cala a boca, criança e sim senhor, meu marido.

 

A experiência e a observação dos fatos reiteram que a Natureza cria seres masculinos e femininos, e os valores culturais recortam a espécie em homens e mulheres, buscando, com isso, administrar, senão minimizar, a ação desta definido-a como “deficientes sociais”. A Educação, não a realizada em prol da repetição pura e simples do consabido, mas a calcada em procedimentos reflexivos e criativos, seria a única estratégia capaz de forjar o penhor dessa igualdade — fora dela só se pode esperar o acirramento da miopia das gentes quando se trata de visualizar e praticar o discurso das identidades e das semelhanças.

Sendo a língua inalienável do nicho social em que ela se desenvolve, pela análise dos usos lingüísticos que dela faz a comunidade que a pratica, chega-se à apreensão das características desse mesmo grupo de falantes. Nesta oportunidade, em que pese aos avanços políticos e científicos registados na história da humanidade, a desigualade dos papéis masculino e feminino será colhida do aparato lingüistico empregado pelos informantes, como a seguir se descreverá. O corpus que sustenta este estudo foi eliciado, especialmente, do léxico carioca, encaixando expressões colhidas quer da oralidade espontânea, quer da escrita. Assim sendo, centrou-se o trabalho em dois focos principais — o das regras gramaticais e o dos itens lexicais analisados consoante a teoria e a terminologia cunhadas por Pottier.

A onipresença masculina, fortalecida tanto na administração familiar quanto fora dela, é reiterada na estrutura gramatical da língua pelo uso do masculino como forma de gênero não-marcado, tomado, pois, como base do sistema: o feminino é, geralmente, descrito como variação morfológica do masculino.

Ainda nos limites da Morfossintaxe, é alardeado, entre outras prescrições, que o feminino seja indicado pela desinência {a} em oposição à {zero} do masculino; por outro lado, quando se faz necessária a concordância nominal, o gênero e o número do nome regram a escolha a ser operada. No entanto, se estão envolvidos nomes masculinos e femininos reza no discurso normativo que os elementos adjetivais sejam empregados no masculino, desconsiderando o número de entes femininos envolvidos na elocução.

Dentre as classes e subclasses gramaticais que corroboram o intento de esmaecer a figura feminina também nas formas de expressão, assomam os pronomes: por ora tratar-se-á especialmente dos indefinidos referentes à pessoa — ninguém, alguém, outrem, que, sem marca específica de gênero, quando jogos de concordância, recebem o tratamento dispensado ao masculino. Por outro lado, quando a forma feminina comparece em estruturas que envolvam indefindos, ela se refere não ao indefinido mas à pessoa a quem esses pronomes se ligam: “ninguém é culpado”// “e a bruxa perguntou quem é mais bela do que eu?”. Portanto, quando o gênero gramatical não é determinado nem conhecido, a opção é pela forma masculina, a guindada ao status de representante da espécie.

No mesmo raciocínio, atuam os pronomes pessoais retos, em que o emprego de eles recobre ele + ela; esse procedimento não se restringe ao português: uma análise comparativa comprovaria ser este um universal lingüístico, como universal é a assunção da mulher como ser destinado à subalternidade na escala das gentes.

Quando os gêneros concorrem numa mesma estrutura e se está a operar com adjetivos pospostos, eles são empregados no masculino plural, embora seja tolerada a concordância com o gênero do nome mais próximo, acionando-se a ingerência atrativa.

Relacionam-se e agrupam-se, a seguir, dados colhidos dos inquéritos e que respondem a questões do tipo “comprove a predominância do masculino a partir de expressões usadas em diferentes graus de formalidade”:

I. irmãos II. a)o homem é mortal III. o homem de Neanderthal

reis b) o homem foi à Lua o homem de Java

alunos c) o homem descobriu o rádio o homem de Pequim

homem d) o homem inventou o rádio o homem do Pacoval

 

IV. doutor/ doutora ministro/ ministra IV. diplomata

ator/ atriz cozinheiro/ cozinheira monarquia

poeta/poetisa costureiro/ costureira político

ministro/ ministra morador

embaixador/ embaixatriz/ embaixadora professor adjunto

professor doutor

 

Em I, ratifica-se o predomínio masculino sobre referências femininas ao se listarem lexias que sintetizam gêneros diferentes, quando se designam membros de uma classe.

Em II a), o termo “homem” equivale `a “humanidade”; no entanto, em b) tal generalidade cede espaço ao específico, ao particular, pelo teor histórico da afimação. Em c), a lexia volta a recobrir os dois gêneros, posto que é conhecida a parceria de uma mulher nesse processo específico de “descobrir”; em d), também é o verbo, associado ao conhecimento histórico, que faz o termo “homem” investir-se do sentido específico: se, nos enunciados arrolados, fosse substituído o vocábulo “homem” por “mulher” — diferente do que acontece — estar-se-ia alijando o ser masculino da descrição, pois a definição “qualquer indivíduo pertencente à espécie animal que apresenta maior grau de complexidade evolutiva” predica “homem” no seu aspecto essencial — daí que, para expressar algo básico, o falante vê-se obrigado a operar a lexia “homem”. Em enunciados desse teor, cabe, portanto, ao arcabouço semântico dos verbos empregados, o alargamento ou a restrição significativa do termo homem.

Em III, apesar da óbvia a existência de mulheres entre os indivíduos pré-históricos, não se contemplam expressões paralelas cujo núcleo ostente a palavra “mulher”. Em enunciados que envolvam expressões do tipo

a 1) origem do homem b 1) origem da mulher

a 2) evolução do homem b 2) evolução da mulher,

a informação percorrerá caminhos diversos: certamente, nas elocuções listadas em b 1) e b 2), acabar-se-á chegando à famosa “costela adâmica”, pedra-de-toque do discurso de submissão feminino em relação ao homem-masculino.

Em IV, demonstra-se o uso genérico do masculino verberado na denominação das profissões. Ainda que dispondo dos instrumentos geradores de feminino, certos nomes de profissões mantêm-se na forma masculina mesmo quando se tratar de mulheres — e mais: quando marcados pela flexão de feminino, o termo assume traços de desprestígio, como é o caso de “poetisa” que, assim empregado,aponta mais para um capricho do que para um dom. Em cargo altamente prestigiado, como o de “ministro”, a aceitação da forma feminina é conquista recente; ainda assim, as mulheres que ocuparam esse cargo, em nível internacional (Indira Gandhi, Golda Meyr, Margareth Tatcher) são preferentemente referidas no masculino. O caso de “embaixador” é bastante significativo: a forma “embaixatriz” aponta para uma clara dependência do ser feminino, “embaixadora” revela a sua ascenção em status diverso do até então atribuido à mulher. Em profissões relacionadas a serviços domésticos, a maior freqüência é de nomes femininos que, quando reportados na forma masculina, denotam maior prestígio.

Em V, listam-se termos que, ao serem definidos no dicionário, são sempre relacionados a seres masculinos, à guisa de generalização: respectivamente, “diplomata - funcionário pertencente ao quadro de serviço diplomático...”; “monarquia - estado sob o governo de um monarca”; político - aquele que trata ou se ocupa da política”; “morador - aquele que mora”. Na Constituição brasileira ou na regulamentação da vida universitária, todos os cargos são arrolados no masculino — presidente, senador, deputado, professor adjunto, professor doutor. Por extensão, é oportuno anotar que também a nomenclatura religiosa expressa a supremacia masculina, desde o “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”: são masculinos tanto Deus quanto o Diabo, passando pela falange de todos os anjos, arcanjos, querubins, zéfiros e serafins; a forma anja, por exemplo, não participa do acervo vocabular da língua portuguesa, deusa paga o preço do profano e diaba só é empregado para consumo muito(íssimo) informal.

A preferência pelo masculino é inconteste na expressividade dos falantes, ainda que não se possa ignorar que os homens-masculinos foram os que mais produziram coisas para as sociedades. Essa predominância é de tal ordem que os meninos crescem ouvindo termos que os referendam, enquanto as meninas têm de aprender que, em alguns contextos, são homens e que chamar um homem de “mulher(zinha)” é uma das formas mais seguras de para ofendê-lo seja qual for a sua inserção nas sendas da masculinidade, especialmente daquelas que concernem à “macheza”e as suas circunstâncias.

Os dicionários — os prestigiados registros dos usos sociais — atestam o tratamento diferenciado com que se qualificam as mulheres: um breve levantamento do que está arrolado na entrada “mulher” revela os preconceitos vigentes na sociedade ao se opor a designação de um ser masculino a um feminino. Tomando por base enunciados do tipo

homem público // mulher pública

homem honesto // mulher honesta,

 

depreende-se que os adjetivos ligados ao substantivo “homem” não implicitam condutas sexuais como acontece quando se elidem ao núcleo “mulher”; o caso de “honesto” referindo-se à mulher motivou a acepção 4 do verbete no Aurélio: “casto, puro, virtuoso”, bem distante de “íntegro, probo, reto” com que se qualifica o nome masculino. Para resgatar a honorabilidade feminina, parece suficiente elidi-la a um nome masculino, do tipo “a mulher de César”, (“a que tinha de ser e parecer honesta”) tanto na acepção 1 como na 2, na 3 e na 4. Se ligada ao substantivo “mulher”, toda a expressão adjetiva carrega-se de traços pejorativos, como se constata em

mulher à toa mulher da zona

mulher da comédia mulher de amor mulher do piolho

mulher dama mulher de má nota mulher fatal

mulher da ponta da rua mulher do fado mulher perdida

mulher da rótula mulher do mundo mulher pública

mulher da rua mulher do pala aberto mulher vadia

mulher da vida ( à exceção de “mulher do piolho”, todas as lexias ora arroladas são perífrases de “meretriz”).

Bem mais poderia ser dito sobre a mulher numa sociedade em que o julgamento prévio dos indivíduos começa pelas suas características sexuais. Buscou-se. por ora, demonstrar que, na boca do povo, ao expressar a sua visão-de-mundo, o falante declara que, embora perceba a mulher como membro necessário de uma sociedade, ele a opõe à classe de “ser humano” — essa desigualdade básica foi reiterada não só pelas escolhas léxicas com que são referendados os entes femininos, como também pelo instigante câmbio de significados que circunscrevem o estar-no-mundo quando o referente é “mulher”.

Das expressões citadas no Aurélio nucleadas em torno da palavra “homem”, 100% apresentam semas positivos; das que têm “mulher”por foco, cerca de 92% referem-se à atividade sexual e portam conotações negativas; enquanto a lexia “homem” ou se refere à humanidade no seu todo ou ao ser masculino unicamente, “mulher” restringe-se sistematicamente ao ente feminino, quase sempre deprecia o ser a que designa, apelando, por isso, não raro, a recursos eufêmicos.

As próprias instituições que estabelecem as condutas desejáveis e esperadas dos pares sociais, quando banalizadas na boca do povo, configuram a amplitude da diversidade de tratamento dispensado ao homem e à mulher, estabelecendo a seguinte regra:

“um homem com muitas mulheres — poligamia;

uma mulher com muitos homens — poliandria;

um homem com uma só mulher — monotonia”.

 

A dependência da mulher estabelecida e cobrada por uma sociedade construída em moldes masculinos é um aprendizado longo e continuado: desde a infância, os meninos são educados para “serem homens”; as meninas para “serem mocinhas/moças, nunca para “serem mulheres”(o que incorreria numa conotação depreciativa). Nessa conjuntura, tanto se fabrica a feminilidade como a masculinidade, a virilidade, a macheza.

Bem mais poderia ser dito — reitera-se — sobree a mulher que, quando posta na boca do povo, revela o pensamento de uma cultura, os seus condicionamentos, estereótipos, a moral imposta, a desigualdade dos papéis masculinos e femininos, enfim a duplicidade de valores — social e sexual — com que se escreve e direciona a história das gentes.

Por fim, respeitados os limites de uma comunicação e à guisa de conclusão, tem-se a declarar que, apesar dos avanços realizados na arte de conviver, as mulheres, assim ensinadas desde a mais tenra infância, parece estarem fadadas, por mais algumas gerações, a beijar sapos para depois engoli-los transmudados em príncipes — não obrigatoriamente nessa ordem — , tal como se pode depreender da quadrinha declamada , sem culpa e com muito dengo, por uma informante da pesquisa, 18 anos, moradora da zona sul do Rio de Janeiro:

Os homens são uns diabos,

não mulher que o negue,

mas todas estão à espera

de um diabo que as carregue.