A LINGUAGEM ESPECULAR O PROCESSO LABIRÍNTICO DE CONSTRUÇÃO EM O RETRATO DE DORIAN GRAY

José Heronides Andrade de Moura (UERJ/UFRJ)

Queremos através dos elementos do livro, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, identificar os mecanismos artificiosos, que deles resultem em construção, a fim de demonstrá-los, verificando-os, mediante exemplos colhidos estrategicamente, para dar o sentido desejado, dentro da perspectiva dos jogos de lentes, passíveis de serem demonstrados no romance, enquanto estiverem consistentes com propósito do tema organizador que é arte como personagem na narrativa. Para tal, não foi necessário explorar o livro em sua totalidade, tampouco seguir uma ordem linear rígida para lograr o sentido aqui proposto.

O que se espera de um texto literário? Qualidade, seria a resposta consensual daqueles que criam como forma de resistir e existir, fazendo da vida uma arte. Assumir no tempo da literatura, no espaço da estória uma postura comprometida com outro grau de engajamento, ideologia (ou mesmo em falta de valor mais duradouro) ambição e permanecer na história, ainda que o produto do esforço e dedicação à causa da criação lhes venha trazer um retorno duvidoso, se se queiram algo muito além do sucesso editorial; quem sabe na ótica contemporânea vender a alma ao diabo. É o que nosso herói decaído, Dorian, faz ao aceitar o reconhecimento da tragédia pessoal que representa o homem da modernidade: tem que cumprir com o afrontamento para superar a mediocridade. Oscar Wilde estava bem ciente da condição elegante, porém exasperadora, de viver uma ficção, seja na órbita do personagem vicariamente, seja na teatralidade social, onde o autor exibia maestria. Nisso soube representar seu papel como um bom modelo dandy, o eu-empírico da mesma feita o eu-personagem. Ele já tinha em conta de antemão a condição da arte literária como pura inutilidade, justificada somente pela pura fruição. Então o leitor ativo não deixa de animar a recepção com inquestionável cumplicidade com os que prezam pela afirmação do sujeito contra toda ordem acachapante. Este também é o propósito apresentado maneiristicamente nas projeções labirínticas.

Neste jogo de aparência a persona do protagonista Dorian assume significação polissêmica a começar pela participação de autor dialogando com o personagem, o que justifica literariamente a motivação e razão de existência das respectivas obras: a de Basil Howard, pintor comentando a primeira menção do Retrato de Dorian Gray ; e por parte de Wilde, o elogio da tela que merecia tomar o lugar do modelo como elogio à beleza.

Numa construção em mis en abyme, criador e criatura refletem as janelas que nos remetem a outros campos de visão. Trata-se de um recurso para obtenção de níveis de percepção da realidade, para estimular o leitor a mergulhar na ambiência fantástica sugerida pela linguagem.

Temos duas versões igualmente ilusórias: a do primeiro prefácio escrito pelo pintor, dando um testemunho com ares de autenticidade para com a intersemioticidade, havendo o autor mimeticamente frequentado o estúdio de Basil. A do segundo Wilde traça a doxa decadentista em forma de manifesto. Eis o primeiro confronto de imagens notadamente narcisísticas.

Ao dirigir-se a Harry no primeiro capítulo. Hallward deixa entrever a paixão pela obra de arte, que se confunde com sua vida. O entusiasmo erótico está evidente ao admirar o objeto de sua criação, o tema especular se manifesta aqui:

Harry, para mm Dorian Gray é simplesmente um tema de arte. Você não perceberia nada nele, vejo tudo. Ele nunca está mais presente, na minha obra do que quando até a sua imagem está ausente. Dorian Gray e, como lhe disse, a sugestão de uma nova maneira. Encontro nele as curvas de certas linhas e, na sua graça, as sutilezas de certos coloridos. Só isto.

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...Há muito de mim neste retrato, Harry...Há demais! [1]

O pintor admite a paixão por Dorian ou por sua imagem. E aduz melodramaticamente, beirando o folhetinesco, que forma um duplo opositivo, caracterizado com exagero e caricaturalmente, o avesso da solenidade e elegância da figura aristocrática de Dorian. A coincidência é que junto ao perfil demoníaco de Dorian o humor fala mais alto ao delinear-se o contraste contraposto aos princípios imanentes às regras decadentistas estipuladas por Wilde no segundo prefácio. Como é um perfil equivocado tem que pagar com a vida, como todos que estejam sobre a área de influência da arte. Para ela se realizar é necessário imolação.

Para se ter acesso à unicidade, é mister que se morra para viver a plenitude d arte, uma vez que a beleza exige sacrifício. Assim, a figura vampiresca do andrógino sugerida na sombra representa a falta total de salvação, o primeiro ensaio de dilaceramento moderno, apesar de tanta estética e pompa.

O gérmen da criação tornando-se mito divino, projeção ontológica. A tematização na camada mais sutil da arte nos lembra da máxima “vida breve, arte eterna.”

Por isso, os diretamente ou indiretamente envolvidos com a tela sucubem à maldição do modelo. Principalmente o protagonista que não suportaria estar alimentando o dilema de ser dois.

Ocorre que se nós deslocarmos o signo, encubri-lo, para uma acepção de uso mais abstrato das ações perversas, cada vez que Dorian está sob a influência mágica do retrato, mantido em lugar secreto, notaremos a função mítica do quadro, enquanto emblema da danação. A noção de ocultar-se traduz o lugar de projeção das imagens mentais, geradas pelo inconsciente, explicam o recurso especular empregado pelo narrador em perspectiva psico-realista, se nos permite o termo.

Além dos antepassados diretos, possuímos todos nós ascendentes literários – muitos deles mais chegados e mais afins ao nosso temperamento, ... Não raro Dorian Gray tinha a impressão de não ser a História senão ao registro da própria vida, não como ele a vivia na ação e nas circunstâcias, mas como a sua imaginação havia criado, como para ele, tinha sido ela no seu cérebro e nas suas paixões. Tinha a impressão de haver conhecido pessoalmente as personagens estranhas e terríveis que passaram pela cena do mundo, tornando o pecado extraordinário, pondo no mal tanta sutileza. Uma sugestão misterosa fazia-o ver nessas vidas a sua própria vida. [2]

A citação acima atesta a importância de nos valermos de uma outra passagem pertinente ao nosso tema central, a arte (ou artifício) de construção especular. E os discursos cuidam de dizê-lo. “Quando se de arte não se pode minimizar a contribuição da Psicologia e da Psicanálise. Mas os aspectos psicológicos, biológicos e sociológicos [...] são suficientes para o devido conhecimento do “homem maneirista ?” Não o cremos! Temos que precaver-nos sempre para não absolutizarmos aspectos particulares.” [3]

Cair numa ortodoxia científica contraria o projeto criativo que questiona a visão de normalidade, uma vez que a arte é o espaço da liberdade, ou melhor, de maior tolerância frente às instituições que primam pela tradição racionalista ocidental, prestando-se mais à reprodução dos valores que à transformação deles, num eterno processo dialético. E o decadentista quer afrontar a burguesia conforme o fizeram Baudelaire e Poe em grande estilo. Tal evidência nos projeta em outro plano de imagem, não menos abismal, na virada do tempo presente nos jogos de lentes notadamente narcisísticas. Faz-nos ainda constatar a matriz finis secular no aqui e agora do ensaiar das passagens narradas.

Pontos de contato fundadores de uma nova modernidade, para não dizer um neodecadentismo, onde tudo leva a crer numa reedição dos fundamentos paroxítonos da egolatria em que o ser tornou-se ficção. Não importa o psicologismo ou mesmo estabelecer analogia de caráter clínico. Fazer da vida uma ficção é o que importa, posto que os grandes paradigmas foram por terra abaixo e nunca chegaremos ao fim, todavia. E o que a superfície revela na camada brilhante de verniz se assemelha à alienação, ao culto dos sentidos, com os valores revelando-se inversos, indecisos, numa sexualidade plural e não categórica, crítica. Só que agora a tragédia é uma condição sem glamour.

BIBLIOGRAFIA

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. São Paulo : L&PM, 1986.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed. São Paulo : Brasiliense, 1991.

BRANDÃO, Junito. Mitologia grega. 3. ed. Petrópolis : Vozes, 1989. Vol. II

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo : Perspectiva, 1982.

HOCKE, Gustav. Maneirismo: o mundo como labirinto. Trad. Clemente Raphael Mahl. São Paulo : Perspectiva, 1986.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Marina Guaspari. Rio de Janeiro : Tecnoprint, 1969.



[1] WILDE, (1969), p. 20.

[2] Idem, p. 138.

[3] HOCKE, G. (1986), p. 317.