OS “CAÇADORES DE CACÓFATO”
Salatiel Ferreira Rodrigues
Machuquei-me recentemente numa prova de concurso para professor assistente de renomada universidade estadual. Diria que fui derrubado por um cacófato, mas não de minha autoria.
O ponto sorteado foi SINTAXE ORACIONAL, um dos temas mais singulares e mais corriqueiros da gramática, com que o professor de português vê-se envolvido quase que diariamente. Fundamentei minha redação num livrinho que versa esse assunto e que fora sugerido por um colega, tanto pelo fato de considerá-lo atualizado, como por ser de autoria de conhecido professor que, por coincidência, era o presidente da banca examinadora.
Estranhei de saída o fato de o autor ainda considerar como tipo de sujeito o SUJEITO INEXISTE. Isto porque autores atualíssimos, entre os quais se enfileiram Evanildo Bechara, Manoel P. Ribeiro e praticamente a totalidade dos que fazem livros didáticos, preferem dizer ORAÇÃO SEM SUJEITO, uma vez que, sendo inexistente, é uma incoerência tipificá-lo como sujeito. Não se pode afirmar que há uma coisa que INEXISTE. Creio que este foi o meu primeiro tropeço.
Com o comentário que acabo de expor, aceitei o SUJEITO INEXISTENTE, para não me afastar do roteiro que o autor seguiu em sua obra. Acabada a prova, dirigi-me ao professor, movido pelo mais casto desejo de oferecer singela contribuição para a melhoria de seu texto, quando de uma nova edição. Mostrei-lhe que seria recomendável substituir a construção “por razões”, que empregara mais de uma vez. Esperava que houvesse clima para deixar claro que a colocação não era minha, mas de Ronaldo Caldeira Xavier, em Português no Direito, que em 1998 já se achava na 15ª edição.
Fui, no entanto, mal interpretado. Revelando-se mais rápido no gatilho, o homem contra-atacou, dizendo que “os caçadores de cacófatos são de um purismo afetado e desnecessário, porque cacófatos são inevitáveis”. E finalizou com uma pergunta: “Quem não diz POR CADA?” Nossa entendimento ficou por aí. Mas com certeza a capotada já estava garantida.
Calei-me e pedi desculpas. Contudo, no meu silêncio, rememorava as palavras do Padre Antônio Vieira, possivelmente um “caçador de cacófatos”.
Aprendemos no céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo (...); muito distinto e muito claro. As estrelas são muito distintas, muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.
“Clareza na linguagem, precisão nas informações e bom gosto. Um texto não precisa de muito mais do que isso para ser lido com prazer” – diz Carlos Maranhão, na Introdução ao Manual de Estilo Editora Abril.
Todo cacófato pode ser evitado; o segredo é usar a palavra certa no lugar certo. A língua, por sua vez, oferece oportunidades inúmeras de substituições lexicais com a mesma equivalência. E quando a substituição não resolver o cacófato dentro de um encontro de palavras, resta ainda alterar toda a construção frasal sem prejuízo do sentido do texto. Isto requer apenas bom senso, boa vontade e inteligência. O resto o ouvido de bom gosto se encarrega de filtrar e de sugerir a necessária modificação. São bastante conhecidas estas palavras de Voltaire: “Uma palavra colocada fora do lugar estraga o pensamento mais bonito.”
Não é preciso ser um “purista afetado” para evitar que uma manada de porcos entre no texto. Assim como é possível dizer POR CADA, também é possível dizer POR PEÇA, POR UNIDADE, POR CABEÇA, POR PESSOA, POR EXEMPLAR, e mais uma “POR RADA” de outras opções que fazem com que o suíno vá roncar noutro chiqueiro.
Só para exemplificar, já que esta abordagem não pretende ser exaustiva, seguem abaixo, algumas construções em que um burilamento se faz recomendável. Vão também sugestões para possíveis melhoramentos da expressão, não como solução definitiva do cacófato, mas para deixar posto que sempre é possível arranjar outra maneira de dizer.
A água que a fonte dá abunda nas cachoeiras
A água que a fonte dá jorra em quantidade nas cachoeiras
Alma minha A mula tinha
Minha alma Tinha a mula
Banca dela, boca dela, bronca dela Bye-bye, tolinho!
Sua banca, sua boca, sua bronca Adeus, tolinho!
Tchau, tolinho!
Casa dela
Sua casa
Cercar gado
Prender o gado
Confinar o gado
Fazer cerca para o gado
Colo longo
Longo colo
Como a concebo
Com eu a concebo
Como posso concebê-la
Como a posso conceber
Como ela
Do jeito dela
Do tipo dela
Igual a ela
Corpo potente
Corpo forte
Corpo vigoroso
Custava uma pataca cada dia de trabalha
Cada dia de trabalho custava uma pataca
Custava cada dia de trabalho uma pataca
Dá tua posição, a altura e a rota!
Dá tua posição, altura e rota!
Dize-me já.
Dize-me agora.
Ela tinha
Tinha ela
Ela trina
Ela gorjeia
Ele não se safa não
Ele não se safa
Ele me pediu, e eu pei, dei.
Ele me pediu, e eu de pronto dei
Elogios que me já dão
Elogios que já me estão dando
É sempre macho cada filho que tem
É sempre macho o filho que lhe vem.
Essa caneta
Esta caneta
A caneta
Dita caneta
Essa minha foice
Essa foice minha
Essa sai
Essa vai sair
Esta gramática aqui
Esta gramática
Eva e Adão
Adão e Eva
Evacuar com abundância
Evacuar abundantemente
Eu não posso ir
Não vou poder ir
Não tenho condição de ir
Ficava calada
Ficava muda, silenciosa, em silêncio
Físico dela
Seu físico
Garota taluda
Garota corpulenta, troncuda, desenvolvida
Guardar para quando quiser comer ter
Guardar para ter o que comer quando quiser
Há anos atrás.
Há alguns anos.
Há um médico agora
Agora há um médico
Havia dado
Tinha dado
Humberto Eco comenta
Humberto Eco observa
Intrínseca validade
Validade intrínseca
Já que tinha solução
Já que solução tinha
Leva-traz
Leva-e-traz
Minha cara Elisa
Querida Elisa
Com a mesma mão
Com a citada mão
Com a mencionada mão
Com a referida mão
Na ótica minha
Na minha ótica
Na prática dela.
Na sua prática.
Não seja já
Não seja agora, desta vez
Não volte nunca aqui
Nunca mais volte aqui
Jamais volte aqui
Naquele tempo tinha
Naquele tempo havia
Nunca ganha
Nem sempre ganha
Não ganha nunca
O homem que se disputa
O homem disputado
O homem que disputam
O jeito cômico da mãe
A comicidade da mãe
Ótima mão
Mão ótima
Mão maravilhosa
Paraninfo dela
Seu paraninfo
Padrinho dela
Passou o repeteco agora
Passou agora o repeteco
Peguei a amá-la
Comecei a amá-la
Pescador mente
Pescador fala mentira
Picadura de mosquito
Picada de mosquito
Pilão de socar alho
Pilão de soquetear alho
Péssima mão
Mão horrorosa, horrível
Pôr a culpa nela
Pôr nela a culpa
Pôr ração
Botar ração
Por razões
Por motivos
Por algumas razões
Por várias razões
Por uma razão
Em virtude de razões
Pouca garra
Garra pouca
Quanto tempo tinha
O tempo que tinha
Querer bem a cunhado
Gostar de cunhado
Sabia o que a rena tinha
Sabia o que tinha a rena
Sigo Urucu amanhã
Partirei Urucu amanhã
Tema maçante
Tema entediante
Terra onde abunda a pita
Terra onde a pita é abundante
Tenho uma marca aqui
Tenho aqui uma marca
Tocar gado
Tanger gado
Trocar galhão por galhinho
Dar galhão por galhinho
Dar galhão em troca de galhinho
Uma mão
A mão direita, a mão esquerda
Uma das mãos
Uma só mão
Uma como que mão
Um punhado
Uma ajuda
Um empurrão
Uma mão de milho
Cinqüenta espigas de milho
Uma minha irmã
Minha irmã, uma delas. (se tem mais de uma)
Uma das minhas irmãs (se tem mais de uma)
A minha irmã (se é única)
Uma irmã minha
Minha irmã, uma delas. (se tem mais de uma)
Uma das minhas irmãs (se tem mais de uma)
A minha irmã (se é única)
Uma prima minha
Minha prima, uma delas. (se tem mais de uma)
Uma das minhas primas (se tem mais de uma)
A minha prima (se é única)
Uma minha prima
Minha prima, uma delas. (se tem mais de uma)
Uma das minhas primas (se tem mais de uma)
A minha prima (se é única)
Venha cá, gatona!
Venha cá, lindona!
Vez passada
Outra vez
Vez anterior
Vou dormir já
Vou dormir agorinha
Vou-me já daqui
Vou-me agora daqui
É de crer que todo cacófato pode ser evitado. Basta que se tenha paciência, persistência e bom conhecimento da língua. Uma boa dificuldade está diante de quem trabalha na construção de textos, quando surgem as palavras irmã ou prima acompanhadas do pronome minha e artigo indefinido uma. Conforme o arranjo que se fizer, surgirá sempre uma realização cacofônica: aminha ou maminha. Sugere-se, além do que foi mostrado acima, mais uma possibilidade, com a introdução do nome da pessoa: “Minha irmã Creusa. Alice, minha prima.”
Matoso Câmara Jr. parece ser de opinião que a construção deselegante deva ser tolerado nos casos em que o autor do texto, para evitá-la, tenha que lançar mão de formas obsoletas ou artificiais. Tal seria o caso de uma mão, u’a mão, com supressão do m. Trata-se, no entanto, de uma solução do tipo matar a vaca para acabar com o carrapato, já que a recorrência foi feita a uma desnasalação obsoleta da forma arcaica ua com til no u. A sugestão que aqui vai é que se troque o indefinido por um definido e se acrescente um modificador ao substantivo, se for necessário. Em “o operário perdeu uma mão”, pode-se dizer “perdeu a mão direita” ou “perdeu a mão esquerda”, se há conhecimento da qual foi a mão decepada. Se não o há, ainda se pode recorrer à forma “perdeu uma das mãos”. O escritor deve, portanto, ter em mente que onde existe problema existe também solução.