Antonio Houaiss: o editor crítico

Armando Gens –UERJ e UFRJ

 

 

Ao estabelecer, em nome do didatismo, três períodos para a prática editorial no Brasil, Emanuel Araújo[1] assinala que o terceiro período inaugura-se com as produções de Antônio Houaiss, porque funcionam como ponte para a editoração não-amadorística, conscientizando as casas editoras de que o investimento no preparo de originais resulta em economia significativa de tempo e dinheiro na fase de impressão. Através das palavras do especialista, fica patente o incontestável valor dos trabalhos filológicos no campo literário e no contexto da atividade editorial, bem como a importância da obra de Antonio Houaiss, na qual se encontram várias contribuições para o esclarecimento do processo formador da linguagem literária brasileira ao lado de significativos estudos sobre o livro em dimensão científica. Por isso, o saldo do diálogo, realizado pelo autor de Elementos de Bibliologia, entre o trabalho filológico e a editoração, estende-se aos domínios da literatura, através das edições críticas e da superior qualidade gráfica dos livros, propiciando ao pesquisador da área trabalhar sobre textos fiéis ou fidedignos, com pouca ou nenhuma margem de adulteração.

Desde cedo, Antônio Houaiss demonstra um raro interesse pela restauração de textos. Ainda estudante, preparou a restauração textual e a análise crítica de um escrito de Padre Anchieta, segundo informação de Hélcio Martins. Entre as importantes contribuições de Antônio Houaiss para a literatura e a língua literária brasileiras, há que se dar realce ao “Texto dos Poemas de Gonçalves Dias” para editora Aguilar, em 1956, à introdução ao texto crítico de Memórias Póstumas de Brás Cubas, escrita por volta de 1959 e aos prefácios às obras de Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Lima Barreto e Silva Alvarenga. Trata-se de diferentes textos com finalidades distintas que oferecem, ao estudioso de literatura e da linguagem literária, informações, relativas ao vocabulário, ao ritmo, ao estilo individual dos autores e à fisionomia dos impressos no Brasil.

Com o intuito de reunir o que cada texto trouxe como contribuição para o espaço literário e gráfico, convoco-se, primeiramente, o estudo do texto de Gonçalves Dias. Nele, embora declarando que a tradição do texto do poeta romântico apresenta alta qualidade, quer nas edições alemãs, quer no cuidadoso trabalho de Antônio Henrique Leal, reconhece a necessidade de um estabelecimento de texto crítico de acordo com as orientações científicas, àquela altura ainda por se realizarem.

Visando a uma edição crítica dentro dos padrões da crítica textual que lhe era contemporânea, dita três passos a serem seguidos. No primeiro, recomenda que se leve em conta que a linguagem do poeta romântico não é imóvel, já que ela, fruto de aperfeiçoamento, através do exercício poético, traz modificações, flutuações e variações, sendo inútil buscar a unidade na variedade. No segundo passo, adverte que a linguagem de Gonçalves Dias vai caracterizar-se por uma forte tensão entre tendências arcaicas e inovadoras, entre o erudito e o popular, levando-o a reconhecer a dificuldade de se obter “um cânon uniforme na fixação do texto crítico do poeta” [2]. Por último, lembra que “os padrões admissíveis e correntes de linguagem, ao tempo do poeta, variavam muito mais do que se vem, na prática, admitindo” [3], portanto reivindica que, para a fixação do texto do poeta romântico, será necessário um “aprofundamento dos problemas da linguagem do tempo, não apenas em função do poeta mesmo, senão de seus principais contemporâneos, brasileiros e portugueses.” [4]

Com base no estudo de Antônio Houaiss, percebe-se que a linguagem literária de Gonçalves Dias aparece permeada por traços da realidade lingüística do Brasil, especialmente no que diz respeito à colocação do acento grave indicador de crase, já revelando que, no Brasil, o emprego do acento grave marca apenas uma distinção meramente gráfica, e que há uma tendência na pronúncia nacional de inserir vogal epentética nos encontros consonantais ditos duros. Segundo se observa, a linguagem literária de Gonçalves Dias, tirante o recorte neoclássico, esboça as primeiras fronteiras lingüísticas entre o português do Brasil e o de Portugal.

Em “Introdução Crítico-Filológica”, Antônio Houaiss fixa os critérios de critica textual que serão adotados pela Comissão Machado de Assis, criada em 8 de setembro de 1958, com o aval de Juscelino Kubitschek de Oliveira, então Presidente da República. O objetivo da Comissão residia em consolidar o texto machadiano que vinha sendo adulterado em decorrência da baixa qualidade editorial imposta à obra do escritor brasileiro. O trabalho, a principio, destinado à edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, serve de parâmetro para toda a obra de Machado de Assis a ser estabelecida pela referida Comissão. O texto, além de fazer referência ao descaso dispensado à atividade editorial e gráfica em paisagem brasileira, permite que se constate, através da colação, que o livro nacional carecia de uma face própria, de modo geral, reproduzindo feições inglesas ou francesas.

Antônio Houaiss, sem abandonar o olhar filológico, mostra-se um crítico arguto que não perde de vista o interesse pela linguagem literária, quando, diplomaticamente, desaprova a edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicada sob o rótulo W.M. Jackson editores, em 1955, e tendo Ary Mesquita como responsável pelo estabelecimento do texto. O editor crítico nota que, além das falhas de revisão, Ary Mesquita incorre numa falta mais grave ao optar por critérios lingüísticos inadequados aos novos tempos, emprestando à obra um perfil imobilista, porque, segundo o filólogo, buscou-se “a melhor lição às vezes no autor, às vezes na língua” [5], “falseando a essência da historicidade da linguagem de Machado de Assis, como fenômeno cambiante, vacilante às vezes, flutuante quase sempre, da expressão de uma personalidade” [6]. Dotado de espírito científico, mesmo reconhecendo as limitações de tal edição, não a exclui da lista dos livros a serem colacionados. O estudo de Antonio Houaiss revestiu-se de importância, na exata medida em que, estabelecendo, definitivamente, o texto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, permitiu à Comissão, da qual fez parte, oferecer ao pesquisador uma versão textual sem traições e sem adulterações, respeitando, o mais possível, a realidade do texto desejada pelo escritor bem como consignar que a linguagem literária machadiana oscila entre as orientações românticas de caráter nada disciplinador e as severas normas gramaticais reinstaladas no período parnaso-realista.

Em meio ao estabelecimento do texto machadiano, a “Introdução Crítico-Filológica” traz uma série de informações e orientações sobre a crítica textual, constituindo-se, assim, em um documento de divulgação do perfil do editor-crítico e de um padrão de estabelecimento de textos literários. Entenda-se que, nesse trabalho, Antônio Houaiss já reclama a necessidade de um método e de um centro brasileiro de edição crítica , conforme explicitou em Crítica Avulsa.

Antônio Houaiss, o editor-crítico, não se manifesta apenas no trabalho de estabelecimento de textos literários. Nas tantas introduções e notas escritas por ele, o olhar do editor crítico prevalece de modo hegemônico. Ao se colocar em exame a introdução que escreveu para apresentar poemas selecionados de Silva Alvarenga, publicados na coleção Nossos Clássicos da editora Agir, vale dizer que a intenção didática, em obediência aos propósitos da Coleção, não consegue eclipsar a leitura de base ecdótica que dispensa à obra do poeta árcade. Descreve, do ponto de vista histórico, o contexto social do século XVIII, sublinhando a política de fechamento, probição e coerção aplicada à Colônia e a conseqüente luta pela emancipação política. Em seguida, oferece um perfil da inteligência brasileira, detendo-se na chamada “escola mineira” encerrada do ponto de vista literário numa contradição ideológica.: o absolutismo, sustentando os privilégios da classe aristocrata e o liberalismo, apoiando a ascensão de novos segmentos sociais.

Tal contexto político, influenciando a cena literária, leva Antônio Houaiss a declarar que a ”literatura da escola mineira como de um modo geral a do Brasil, reflete, assim , nos seus aspectos mais interessados o repontar dessa nova ideologia, enquanto, nas suas formas mais desinteressadas, sobretudo a poesia, continua a tradição ou incorpora as inovações formais dessa tradição” [7]. Nas observações que faz sobre o livro de poemas eróticos de Silva Alvarenga, intitulado Glaura, baseia-se nas edições de 1799, da Oficina Numesiana e, na de 1801, seguindo duas vias para a abordagem do texto. Na primeira, dá conta das formas e dos temas e, na segunda, ocupa-se das informações biográficas presentes nas obras do poeta. Em sua análise, observa que o autor mineiro opera dentro de um sistema esgotado, submetendo-se aos padrões da retórica clássica.

Seus poemas, atravessados pelas duas posições ideológicas do tempo, refletem tal dicotomia. Assim, enquanto a lírica alimenta-se da tradição, as sátiras procuram registrar a preocupação do poeta com a atualidade da época e a renovação do pensamento intelectual. Contudo, o filólogo, não permitindo que a obra escape de seu olhar atento, capta a espontaneidade presente nos rondós e madrigais e apresenta como justificativa para esta espontaneidade a existência real da musa que, após a morte, levou o poeta a modular a lira pelo diapasão do sentimento doído, o que representa uma desobediência às severas regras da dicção clássica.

Dando prosseguimento à leitura da obra do poeta mineiro, Antônio Houaiss repara na presença de nomes de árvores e frutos típicos do Brasil e no esboço da paisagem nacional em clave romântica, nos poemas de Silva Alvarenga, o que engorda, sobremaneira, a lista das pequenas infrações do código árcade. Por fim, não escapam ao estudioso as modificações que o autor de Glaura fez nos rondós, a seu ver, um sinal do fim evolutivo desta forma fixa. Como se comprova, o método de análise de Antônio Houaiss reflete o pensamento filológico, guardadas as devidas proporções, uma vez que, microscopicamente, toma como espinha dorsal do texto analítico o registro biobibliográfico, a historicidade, a individualidade e a personalidade na perspectiva do fenômeno social da linguagem e do fenômeno lingüístico.

Entre as muitas lições de Antônio Houaiss, é oportuno que também se faça referência àquela em que tratou dos poemas de Augusto dos Anjos. A partir do exame do léxico e da gramática do autor, insere o poeta na categoria dos escritores “cientificistas” e “filosofantes”, tirando-lhe o rótulo de simbolista, porque nota, na poética do autor paraibano, a tendência de utilizar o método científico desbastado pelo sentir bem como uma inclinação para investigar, filosoficamente, a aventura cósmica do homem e a dolorosa condição humana. Da dinâmica entre filosofia e ciência, a gramática do poeta apresenta um rico vocabulário em que se mesclam termos de origens erudita e científica, pondo em circulação “um tipo de fonetismo pouco corrente ao normal da língua portuguesa no Brasil ¾ com oferecer em cada verso grupos consonânticos raros nos usos ordinários ou mesmo líricos na língua, grupos que, entretanto, passam, na sua, a dar um tipo de verso, cuja originalidade fica, sob este aspecto, fortalecida pelos proparoxítonos” [8]. Não desconsiderando a recepção dos poemas, Antônio Houaiss comunica que, só a partir de 1928, eles começam a circular entre os leitores comuns, atraídos pelo requinte do vocabulário, pelas imagens inusitadas, pelo contorno pessimista e pela atitude inconformada, tão a gosto de uma parcela do público adolescente.

Visitando o texto–portal de Reunião, salta aos olhos a admiração que Antônio Houaiss nutre pelo poeta mineiro, ao decretar que Carlos Drummond é “um senhor mestre da língua” [9], porque, ao explorar as potencialidades que ela oferece, em proveito da expressão estética, penetra em seu sistema e dele retira toda a rede de conexões possíveis. Ressalta, ainda, o crítico que o autor sabe o que faz e o insere na linhagem de Machado de Assis, com certa reserva, ao demonstrar que o poeta de Itabira utiliza-se da metalinguagem para evitar soluções estéticas fáceis e clicherizadas.

Ao lado do traço reflexivo promovido pelo exercício metalingüístico, que se impõe como modo de compor na obra de Carlos Drummond de Andrade, Antônio Houaiss, leitor-crítico, verifica que a observância à norma jamais se apresentou ao poeta como camisa de força da expressão, muito pelo contrário, deu a ele a possibilidade de ultrapassar as barreiras impostas pela norma, porque era poeta e usuário da língua em que escrevia.

Seguindo a linha de investigação deste trabalho ¾ o uso da linguagem em espaço poético ¾, nota-se que, no prefácio à obra Vida Urbana, de Lima Barreto, Antônio Houaiss cuida de desfazer a idéia de que o autor de Policarpo Quaresma não sabia escrever, preconceito, na verdade, disseminado pelos retores disfarçados de críticos. De imediato, Antônio Houaiss destaca que para Lima Barreto a literatura não era apenas expressão mais comunicação, escrever era dizer algo útil, conscientizar os leitores e, na qualidade de escritor militante, enfrentou o problema artístico da linguagem e da língua portuguesa no Brasil, separando o gramatical do estilístico. Passeando por diferentes obras do autor, a fim de comprovar o conflito entre prática e “teoria mandarim”, o filólogo conclui que os defeitos apontados pela crítica na linguagem literária de Lima Barreto são irrelevantes. Em verdade, o escritor buscava o uso eficaz da língua, empenhando-se na assimilação de recursos e possibilidades oferecidos pelo sistema lingüístico para dar cabo de sua meta: comunicar. Lima Barreto faz opção pela variedade e pela diversidade, repudiando a tendência imobilista de que se reveste a gramática de seu tempo, incapaz de dar conta da realidade lingüística viva e ativa dos falantes. E, se assim procedeu, o escritor carioca, não o fez sem fundamento, pois se respaldava em gramáticos e filólogos que representavam a tendência moderna e arejada do estudo de língua portuguesa, a saber: João Ribeiro e Said Ali .

A má vontade da crítica para com o estilo e a linguagem do autor de Clara dos Anjos, segundo o filólogo, explica-se, ainda, através de fatos exteriores à criação artística. Antônio Houaiss denuncia que as edições das obras, de Lima Barreto, em seu conjunto, não recebiam um tratamento editorial digno, porque entregues a editores de segunda monta, que, não raro, violentavam os traços distintivos da linguagem do autor. Sublinha que a primeira vez que os textos de Lima Barreto receberam tratamento escrupuloso foi na edição das obras completas publicadas sob rótulo da editora Brasiliense. Outro fator externo que dificultou, sobremaneira, a impressão das obras era a péssima letra do autor, que se exacerbava nos momentos de exaltação, quer por força do ímpeto respiratório, quer do ímpeto dipsomaníaco do fim da vida. Tomando para si a missão de desautorizar o preconceito que rondava a obra de Lima Barreto, o filólogo confia que o cronista carioca, não afeito às revisões, deixou grande parte da obra produzida na primeira redação, embora estivesse sempre pronto, como as inúmeras vezes a que procedeu “às chamadas correções parciais” [10], a melhorar seus escritos, trabalhando texto sobre texto. É importante que se diga que Antônio Houiass lê a obra de Lima Barreto do ponto de vista da ecdótica, pois reconhece o impacto do autobiográfico na criação das obras e a correspondência entre a criação e a vivência experimental.

Através do passeio pelos trabalhos de Antônio Houaiss aqui citados, fica patente o seu compromisso com a preservação e a restauração de textos literários o que, sem dúvida, indiretamente, abre questão sobre a qualidade e a fisionomia dos livros impressos no Brasil, exigindo para eles um perfil nacional. Incansável na luta por um padrão editorial brasileiro de excelência, Antônio Houaiss advertia que, no contexto gráfico brasileiro, “certo cuidado, que deveria ser rotina tipográfica, no preparo de revisão strictu sensu de certos textos, precedidos de certos dados informativos, dentro de certos cuidados gráficos, passava a ser sinônimo de edição crítica.[11]. Tal declaração endereçava-se às edições, pretensamente críticas, como, por exemplo, a de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1955, pela editora W.M. Jackson, com estudo de texto de Ary Mesquita. Nesta edição, Antônio Houaiss aponta, como a maior falha, a inadequação temporal do critério lingüístico que buscava a “ melhor lição ” às vezes no autor , às vezes na língua, o que conferiu a esta edição um perfil imobilista, traindo a historicidade da linguagem machadiana.

Para o filólogo, os textos das edições críticas caracterizavam-se pela fidelidade ou fidedignidade em diferentes perspectivas. Preocupado com os equívocos acerca do que seria uma edição crítica, estabeleceu princípios que deveriam ser seguidos pelo editor-crítico, tais como: prevalência da forma , da função e do valor lingüístico; negação de toda e qualquer subjetividade por parte do editor; preferência pela lição conservadora em casos duvidosos.

Consciente do caráter dispendioso das edições críticas, afirmou inúmeras vezes que só as instituições oficiais estariam à altura de patrociná-las, como foi o caso do Instituto Nacional do Livro, por exemplo. Reivindicou, também, a inscrição, no quadro de instituição oficial, da função de elaborar edições críticas, tendo uma equipe de colacionadores e de filólogos que pudessem empregar técnicas específicas em conformidade com os traços lingüísticos, vocabulares, semânticos, fonéticos e morfológicos presentes na obras.

Compromissado com a precisão, Antônio Houaiss não só distinguiu a edição crítica da bem cuidada, como também definiu as fronteiras entre o editor e aquele que se dedica ao estabelecimento de textos. Em Elementos de Bibliologia, esclarece que o papel do editor restringe-se à pessoa ou à instituição oficial com ou sem fins lucrativos que assumem a responsabilidade de comercializar o livro, ocupando-se do lançamento, da distribuição, e da venda. Já, no ensaio intitulado “A edição crítica no Brasil”, com uma acentuada mágoa, assinala o quanto há de penoso no trabalho do editor-crítico que, de acordo com suas palavras, muitas vezes evita retornar ao trabalho quando se dá conta de que “sua dedicação”, “sua saúde”, e “seu tempo” foram tão mal compensados.

Sua vocação mostra-se abalada, a partir de seus escritos reunidos e/ou publicados em livros na década de 80. Seu idealismo anterior vai esmorecendo, quando comprova que a deterioração textual é muito maior que a preservação, em decorrência da situação comercial do livro nada compensatória, e os envolvidos com a tradição textual preservadora não podem mais depender do Estado que, pouca ou nenhuma atenção, vem dispensando à cultura, à educação, ao livro, ao magistério e à saúde, mas que “aloca, [...], dotações tais e quantas para certos fins ditos, tidos e havidos pelos alocadores como primaciais. Queixa-se, ainda, de que, no Brasil, a editoraçãoé fortemente subdesenvolvida: raríssimos são os livros, de quaisquer naturezas, que não apresentem um índice ou percentual de erros tipográficos elevado ” [12].

Quanto às contribuições de Antônio Houaiss para o estabelecimento da linguagem literária brasileira, seu livro intitulado A Crise de Nossa Língua de Cultura, pela editora Tempo Brasileiro, parece o melhor exemplo, se avaliado na perspectiva da coletânea. Em A Linguagem Oficial, texto, inicialmente, publicado na revista, nº4, da Fundação Centro de Formação do Servidor Público, em 1981, traz reunidas conclusões gerais, já, esparsamente, registradas em seus escritos anteriores, acerca da linguagem literária brasileira. Nesse trabalho, em especial, denuncia a visão preconceituosa que se desenvolveu, no país, a respeito do que seria o modelo do bem escrever, em decorrência da força doutrinária e reguladora dos gramáticos, exercida sobre a criação literária, a partir do parnasianismo.

Ressaltando que, no Brasil, houve um intercâmbio entre o falado e o escrito, procura evidenciar tal ocorrência através da linguagem literária de escritores brasileiros que abriram espaço para a dicção nacional na linguagem de traços lusitanos, sustentando sua afirmação na obra fescenina de Gregório de Matos e nas produções poéticas do Romantismo. Acrescenta, ainda, que os escritores românticos, quando editados em Portugal ou na França, tinham seus textos marcados por suspeito vernaculismo, devido ao trabalho dos revisores portugueses. Contudo, quando editorados no Brasil, apresentavam acentuados traços da nossa variedade lingüística. Por isso, na edição crítica dos poemas de Gonçalves Dias, respeitou as pseudocrases por entender que, na realidade lingüística brasileira, distingue-se apenas graficamente o que não se distingue foneticamente, ao contrário de Portugal. E, se assim procedeu, foi porque a preocupação maior residiu em acompanhar o dinamismo e a variedade típicos da linguagem do poeta e expor com clareza e aprofundamento os problemas da linguagem do tempo. Além do mais, diante das posições assumidas pelo filólogo, compreende-se que a idéia de erro era para ele uma questão delicada, por tal motivo sabia muito bem distinguir o erro óbvio da infração intencional das regras lingüísticas ou gráficas.

Na pesquisa sobre a linguagem literária no Brasil, Antônio Houaiss destaca o decrescimento do processo criativo entre 1890 e 1950, devido à moda das gramáticas e dos consultórios gramaticais disseminados na imprensa, agindo à feição de força policial da língua escrita no Brasil.Tal mania teve o apoio do magistério purista e castiço, eficaz, no entanto, com o aumento do número de aulas e horários semanais, redução de alunos por classe, contribuindo para que o escrever bem tivesse uma representação social de honra, constituindo-se em traço distintivo de classes.

Com o objetivo de combater tal visão estreita e elitista, Antônio Houaiss proclama que há que se acabar com a idéia de que existe “uma gramática do correto para todos os fins”, pois, segundo ele, as chamadas incorreções tornam-se corretas, quando refletem a “linguagem dos estratos e dos estados” [13]. Embora não tenha dito de modo direto, o filólogo deixa transparecer que cada escritor de poema ou de prosa ficcional cria a sua gramática a partir do momento que, como usuário da língua, estabelece uma modalidade escrita cuja função é dar conta de seu projeto literário de modo intenso e em harmonia com uma realidade lingüística viva, pulsante, expressão dos emaranhados sócio-culturais somados às disposições anímicas diferenciadas.

De acordo com os textos comentados no decorrer deste trabalho, vê-se, como muita clareza, o grande interesse que a literatura brasileira e a linguagem literária despertavam no filólogo-editor-leitor-crítico. Causa espanto, conhecendo a obra de Antônio Houaiss, o total silêncio sobre sua atuação como crítico literário e especialista em edições críticas de textos da literatura brasileira, na reportagem, estampada no Jornal do Brasil, de 6 de agosto de 2000, sob o título “Guerra dos Dicionários”. Como se tratasse de um embate midiático para ver quem venderia mais ¾ Antônio Houaiss ou Aurélio Buarque de Holanda Ferreira ¾, a reportagem, além de colocar lado a lado as fotos dos dois lexicógrafos, reforça a disposição das imagens na página, emoldurando-as com um texto no qual se apresenta um confronto de perfis. O espanto inicial retorna, quando a repórter escreve com todas as letras que ”O amor do professor Aurélio pela literatura sempre foi muito grande e está presente no dicionário” [14], omitindo as contribuições de Antônio Houaiss para os estudos literários...(capciosa omissão?!).

À feição de errata para a reportagem do Jornal do Brasil, este trabalho teve como objetivo exibir o grau de envolvimento de Antônio Houaiss com a literatura brasileira bem como frisar que seu pensamento gravita em torno da quebra de preconceitos e da atitude de não sair fixando qualquer padrão normalizador para textos literários, pois, foi agindo desta maneira que fez chegar às mãos do leitor textos bem próximos, na medida do possível, da forma última concebida pelos seus respectivos autores. Fidelidade e fidedignidade são traços que transmigram dos preceitos das edições críticas para a esfera das atitudes de Antônio Houaiss diante de uma vida dedicada à pesquisa, ao livro, à cultura e aos textos literários brasileiros, cujo saldo positivo os estudiosos da literatura brasileira e da editoração saboreiam como deliciosos quitutes preparados por um gastrônomo de primeira, do mesmo modo que tão bem sabem as receitas que deixou impressas no livro Receitas Rápidas, publicado pela .editora Art Ed, em 1985.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Emanuel. A construção do livro no Brasil. Prefácio de Antônio Rio de Janeiro:: Nova Fronteira; Brasília:INL, 1986.

HOUAISS, Antônio. Drummmond mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro:Imago, 1976 . (Série Logoteca)

______. A edição crítica de textos no Brasil.In: Revista Brasileira de Língua e Literatura, RJ, (6): 12-5, 4ºtrimestre –1980.

______. A crise de nossa língua de cultura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileira, 1983. Biblioteca Tempo Brasileiro nº73.

______. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967. 2v.

______. Crítica Avulsa. Bahia: Universidade da Bahia, 1966. (Série II, nº 23).

BARRETO, Lima. Vida urbana. Pref. de Antônio Houaiss. São Paulo: Brasiliense, 1959.

JORNAL DO BRASIL.6/8/2000



[1] Araújo, E. (1986).p.29

[2] HOUAISS, A (1976) p.143

[3] Ibidem

[4] Ibid.

[5] HOUAISS, A. (1967) p.285-286

[6] Ibidem

[7] HOUAISS, A.(1976) p.137

[8] HOUAISS, A (1976) p.164

[9]. REUNIÃO (1969). p.XVII

[10] BARRETO, Lima (1956) p.31

[11] HOUAISS, A.(1966) p.274

[12] Ibid. p.12

[13] Ibidem. P.56

[14] JORNAL DO BRASIL (2000) p.2 Caderno B