FACETAS DO DOMÍNIO ORGÂNICO, PSÍQUICO E POÉTICO DE GREGÓRIO DE MATTOS E GUERRA

Ruy Magalhães de Araujo (UERJ)

O licenciado Manuel Pereira Rabelo, entusiasta incondicional de Gregório de Mattos e Guerra, pincelou-lhe o retrato da seguinte forma, de acordo com uma das versões de que recolhemos os fragmentos abaixo, extraídos de James Amado, respectivamente, “Pastel de 17??”, in:--- Obra Poética de Gregório de Matos. Rio de Janeiro: Record, 1º volume, p. 15, e “Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra”, in: --- Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra: Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Salvador (BA): Janaína, 1968, 7º volume, p. 1.700:

“Foi o doutor Gregório de Mattos de boa estatura, seco de corpo, membros delicados, poucos cabelos, e crespos, testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas, olhos garços, nariz aguilenho, boca pequena, e engraçada: barba em demasia, claro, e no trato cortesão. Trajava comumente seu colete de pelica âmbar, volta de fina renda, e era finalmente um composto de perfeições, como poeta Português, que são Esopos os de outras nações.

Tinha fantesia (sic) natural no passeio, e quando algumas vezes por recreação surcava os quietos mares da Bahia a remo compasso com tão bizarra confiança, interpunha os óculos, examinando as janelas de sua cidade, que muitos curiosos iam de propósito a vê-lo. Trajava cabeleira, suposto naquele tempo era pouco versado.

Era o Doutor Gregório de Mattos acérrimo inimigo de toda a hipocrisia, virtude, que se pudera, devia moderar, atendendo aos costumes dos presentes séculos, em que o mais retirado Anacoreta se enfastia da verdade crua. Mas seguindo os ditames de sua natural impertinência habitava os extremos da verdade com escandalosa virtude”.

Como poeta, a contribuição de Gregório de Matos à língua e à literatura brasileiras de maneira transparente espelha-se através do seu plurifacetado discurso poético. Pertencente ao Barroco, o nosso poeta recebeu muitas influências de autores espanhóis (mormente Gôngora e Quevedo), bem assim de outros escritores portugueses. Entrementes, essas influências não se configuraram plágio grosseiro mas uma imitação reelaborada e melhorada, tudo isso dentro dos postulados da intertextualidade. O seu vocabulário mostrou o contexto social, étnico, econômico, jurídico, político, religioso, moral, ideológico daquele Brasil do século XVII.

A carreira literária de Gregório de Mattos foi descontínua e fragmentada. Por isso se torna difícil dar-se a ela uma exata reconstituição cronológica. À luz da teoria literária, contudo, podemos dizer que o bardo baiano atuou em vários ramos da poesia: foi satírico, profano, gracioso, lírico e religioso, dentro do movimento barroco em que que teve participação de vulto.

1. O SATÍRICO

Sua sátira, à guisa de um jornal maldizente, registrava a denunciava os escândalos, -- miúdos e graúdos, -- de toda uma sociedade de época: os desmandos dos reinóis, a deterioração do caráter nacional, a corrupção ativa e passiva dos governantes, o comprometimento da justiça. Açoitou os prelados pervertidos pela sodomia, useiros e vezeiros na arte de galantear as damas da alta sociedade, contaminados pela simonia, atingidos pela subserviência aos ricos e poderosos. Censurou a violência e os abusos cometidos pelos militares e civis no exercício de suas funções. Atacou, reprovou, condenou a ganância dos portugueses (a quem chamava de “maganos” e “unhates”), que aqui chegavam muitas vezes maltrapilhos e quase famintos e, não raro, regressavam à terra natal endinheirados e possuindo até mesmo navios. Criticou a hipocrisia dos falsos pregadores de regras morais, a fanfarronice dos covardes, a pretensão, a audácia, a pose e a debilidade de caráter dos mulatos. Não poupou a peseudonobreza de certas famílias, o capadocismo político de determinados governadores. Lançou, enfim, verrinas contra aquela “canalha infernal”, lídima representante da corrupção colonial e que era indesejável à pátria brasileira.

À BAHIA

Tristes sucessos, casos lastimosos,

Desgraças nunca vistas, nem faladas,

São, ó Bahia! vésperas choradas

De outros que estão porvir mais estranhosos:

Sentimo-nos confusos, e teimosos,

Pois não damos remédios às já passadas,

Nem prevemos tampouco as esperadas,

Como que estamos delas desejosos.

Levou-nos o dinheiro a má fortuna,

Ficamos sem tostão, real nem banca,

Macutas, correão, novelos, molhos:

Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,

E é que, quem o dinheiro nos arranca,

Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.

2. O PROFANO

Aqui se manifestou o poeta fescenino e erótico. Dirigia-se a exaltar a sensualidade das suas musas de ébano que inspiraram o famoso hinário crioulo, mormente as amantes que conquistou no Recôncavo baiano. Citam-se como exemplos: a Bartola, a Brites, a Joana Gafeira, a Filena, a Custódia, a Francisca, que o encantaram até à volúpia. Igualmente, poetava com relação aos escândalos sensuais dos conventos, onde campeava a sodomia, a homossexualidade, o pecado.

NECESSIDADES FORÇOSAS DA NATUREZA HUMANA

Descarto-me da tronga, que me chupa,

Corro por um conchego todo o mapa,

O ar da feia me arrebata a capa,

O gadanho da limpa até a garupa.

Busco uma freira, que me desentupa

A via, que o desuso às vezes tapa,

Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,

Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.

Que hei de fazer, se sou de boa cepa,

E na hora de ver repleta a tripa,

Darei por quem mo vase toda Europa?

Amigo, quem se alimpa da carepa,

Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,

Ou faz da mão sua cachopa.

3. O LAUDATÓRIO

Na poesia graciosa, foi pródigo em elogios àqueles que de fato mereciam recebê-los, como foi o caso de dom Antônio Luís de Sousa Teles de Meneses, o marquês de Minas, que governou de 1684 a 1687:

SONETO-CAUDÁTICO

O Apolo, de ouro fino coroado:

O Marte, em um Adônis desmentido;

O Fênix, entre aromas renascido;

O cisne, em doces cláusulas banhando:

O abril, de mil galas matizado;

O maio, de mil cores guarnecido;

O Parnaso, de plectros aplaudido;

E o Sol, de ambos os mundos venerado:

O prodígio maior, que tudo o clama,

O assunto melhor da fama digno;

Do tronco mais ilustre a melhor rama:

O herói celestial, quase divino,

O maior que o seu nome, e a sua fama;

É esse que estás vendo, oh peregrino.

Prossegue pois agora o teu destino;

E a qualquer de que fores perguntado,

Dirás que o bom governo é já chegado.

4. O LÍRICO

A mulher surgia-lhe sem aquele amor concupiscente, peculiar às amantes que exaltou em seu hinário crioulo. Agora, a amada revestia-se daquela aura imaculada que faz lembrar o amor platônico, isto é, onde a posse física deprime e enfeia o sentimento de amor. Tomemos para exemplo: Ângela, de raríssima formosura; Catarina, a quem dedilhou ternamente as cordas da lira; Custódia, ainda sua parenta. Esse lirismo também foi dedicado a outras musas: Maria dos Povos, sua futura esposa, e Floralva constituem nomes bem significativos. Mas o poeta também se revelou um apaixonado, preso às cadeias emocionais produzidas pelo arrebatamento amoroso.

PINTURA ADMIRÁVEL DE UMA BELEZA

Vês esse sol de luzes coroado?

Em pérolas a aurora convertida?

Vês a lua de estrelas guarnecida?

Vês o céu de planetas adorado?

O céu deixemos; vês naquele prado

A rosa com razão desvanecida?

A açucena por alva presumida?

O cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado; vem cá, minha adorada:

Vês desse mar a esfera cristalina

Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina?

Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada

À vista do teu rosto, Catarina.

5. O RELIGIOSO

Na poesia sacra, demonstrou-se recongraçado com o Criador. Conversava com Deus, implorando-lhe perdão. Considerava um bem supremo a benevolência de Deus.

A JESUS CRISTO NOSSO SENHOR

Pequei, Senhor, mas não

porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque, quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobraia-a, e não queirás, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

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