FONOLOGIA DO PORTUGUÊS LUSITANO

Afrânio Garcia (UERJ)

I- INTRODUÇÃO

Ao observarmos as modalidades brasileira e lusitana da língua portuguesa, tornam-se evidentes dife-renças profundas entre as duas modalidades, principalmente no tocante aos seus sistemas fonológicos e fonéticos. É interessante notar, no entanto, que a maioria dos estudiosos e gramáticos (e até alguns fonologistas e foneticistas), tanto no Brasil quanto em Portugal, ignora essas diferenças e descreve a fonologia e a fonética do português tendo em vista somente a modalidade da língua na sua terra natal.

O nosso trabalho pretende justamente levar ao público a forma como se dá a fonologia do português lusitano, conscientizando os nossos estudiosos da enorme diferença existente entre o sistema fonológico brasileiro e lusitano.

II- A VOGAL QUE NOS SEPARA

A principal característica que distingue as modalida-des lusitana e brasileira da língua portuguesa é a possi-bilidade ou impossibilidade de redução da vogal a pré-tônica a um schwa (vogal central média semifechada), sendo esta vogal extremamente comum no português lusitano e jamais ocorrendo no português brasileiro.

Ex: (1) Maria / maÈRiŒ / (português do Brasil)

/ m«ÈRiŒ / (português de Portugal)

(2) cadeira / kaÈdeIRŒ / (português do Brasil)

/ k«ÈdeIRŒ / (português de Portugal)

Poderíamos pensar que este traço distintivo tem um caráter fonético e não fonológico, designando um tipo de alofone que ocorre em Portugal e não ocorre no Brasil, mas a diferença, neste caso, é de natureza fonológica: não se trata da possibilidade ou não da ocorrência de um determinado alofone, mas do fato de o sistema fono-lógico lusitano conter duas vogais centrais pré-tônicas diferenciadas: uma vogal central baixa / a /, resultante de causas históricas (crase de duas vogais ou queda de uma consoante posterior), e uma vogal central média, representada por Paul Teyssier como um a com trema: / a__ /, pronunciada ora como a vogal central média semi-fechada / « /, ora como a vogal central média semi-aberta / Œ /, nos demais casos. Se repararmos nos seguintes exemplos do português lusitano, verificaremos essa oposição entre os fonemas / « / e / a / pré-tônicos.

Ex: (3) madeira / ma_ÈdeIRŒ / (do latim materia)

padeira / paÈdeIRŒ / (de paadeira < panataria,

pessoa que faz pão)

(4) nação / na_ÈsŒâw / (do latim nationem)

acção / aÈsŒâw / (de acção, com queda do / k /)

No português do Brasil, todas essas pré-tônicas soariam iguais, já que nosso sistema vocálico só admite um único fonema vocálico central pré-tônico: a vogal central baixa / a /. Veremos a seguir como se configura o sistema vocálico lusitano.

III- O SISTEMA VOCÁLICO LUSITANO

O sistema vocálico lusitano, assim como o brasi-leiro, comporta três subdivisões: um sistema de vogais tônicas, um sistema de vogais pré-tônicas e um sistema de vogais átonas finais.

O sistema de vogais tônicas compreende oito vogais, como podemos ver abaixo:

/ i / vida, ali, amigo;

/ e / – verde, mesmo, vez;

/ E / – perde, seta, dez, ténia;

/ a_ / – fecha, venha, banho, falamos (pres.);

/ a / – má, paço, ganho (< gaanho), falamos (pret.);

/ u / – nu, muda, caju;

/ o / – moça, cor, pouco;

/ / – cobra, mó, porta, amónia;

Note-se o valor decisivamente fonológico da vogal / a_ /, que pode parecer ser uma simples acomodação da vogal / e / diante de consoante palatal, como em fecha e venha, mas que serve, por si só, para diferenciar as terminações da 1ª pessoa do plural dos tempos verbais do presente do indicativo (sempre / a_muS /) e do pretérito perfeito do indicativo (sempre / amuS /). Outro ponto digno de nota é a ocorrência das vogais abertas / E / e / / antes de consoante nasal.

O sistema de vogais pré-tônicas compreende nove vogais, como podemos verificar abaixo:

/ i / – dizer, livrar, pisar;

/ e / – pregar (com pregos), ledor;

/ E / – prègar (predicar), director,

/ e_ / – pessoa, meter, pesar, velhaco;

/ a_ / – cadeira, manada, parada;

/ a / – caveira, pàdeira, má;

/ u / – murar, morar, durar;

/ o / – dourar, loureiro, tourada;

/ / – còrar, adopção.

A vogal / e_ / é um schwa muito fechado, aproxi-mando-se do ponto de articulação da vogal / i /, e nunca se confunde com a vogal / a_ / que é sempre muito mais aberta.

O sistema de vogais átonas finais compreende três vogais, como segue:

/ e_ / – passe, ponte, antes;

/ a_ / – passa, boca, porta;

/ u / – passo, tempo, como.

A redução da vogal / e_ / átona final vem ocorrendo com tanta freqüência que muitos falantes já nem a pronunciam, limitando-se a pronunciar a consoante que a antecede: passe / pas /, ponte / po)t /, morte / mRt /. O mesmo acontece, com muito menos freqüência, com a vogal / e_ / átona pós-tônica não-final, como em pêssego / Èpesgu /, pessoa / psoa_ /.

IV- OUTRAS CARACTERÍSTICAS

Outras características que diferenciam o português lusitano do português brasileiro são:

a) pronúncia do ditongo / eI / como / a_I /, quer seja ou não nasalizado.

Ex: (5) lei / la_I / (português lusitano)

/ leI / (português brasileiro)

(6) bem / baâI / (português lusitano)

/ beâI / (português brasileiro)

b) pronúncia do r forte como uvular.

Ex: (7) ratoeira / {a_tuÈe_IRa_ / (português lusitano)

/ xatuÈeIRa / (português brasileiro)

c) manutenção da pronúncia do l velar / É /, que no Brasil já se transformou em semivogal.

Ex: (8) mal / maÉ / (português lusitano)

/ maw / (português brasileiro)

d) não-palatalização das consoantes t e d antes de semivogal ou vogal anterior alta.

Ex: (9) titio / tiÈtiu / (português lusitano)

/ tSiÈtSiu / (português brasileiro)

(10) dia / Èdia_ / (português lusitano)

/ ÈdZia / (português brasileiro)