TABUS LINGÜÍSTICOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL

Alfredo Maceira Rodríguez (UCB)

1. INTRODUÇÃO

A palavra tabu, de origem polinésia, está atualmente bem difundida na cultura ocidental. De início seu uso referia-se particularmente a proibições de caráter sagrado, mas seu significado estendeu-se para outras proibições ou inconveniências. O tabu lingüístico refere-se à proibição ou inconveniência do uso de uma palavra ou expressão oral ou escrita, sendo seu uso evitado ou contornado por meio de diversos recursos lingüísticos. Esses recursos utilizam-se em outras línguas, dependendo da cultura de seus usuários, mas nós pretendemos estudar alguns desses tabus no português do Brasil, especialmente na língua falada.

É conhecida a aversão à pronúncia popular da palavra demônio ou diabo. Palavras geralmente de origem grega, introduzidas pelo latim eclesiástico ou pelo baixo latim no vocabulário da igreja, são evitadas por considerar-se tabus por isso são geralmente evitadas por acreditar-se que a pronúncia do significante pode evocar o significado, neste caso algo que tem muito poder para o mal. Assim, esse significante (referente) não se pronuncia, ao menos integralmente, deformando-o foneticamente (dianho, diacho, dialho) ou substitui-se por sinônimos que ao mesmo tempo conotam acusação ou desprezo pelo ser que não se deve mencionar. É importante observar a carga semântica condenatória dos termos substitutivos da palavra tabu: Pode-se fazer carga contra a entidade, o que não se pode é mencioná-la porque é tão odiada quanto temida, como podemos observar em algumas das muitas substituições, algumas de origem tupi (anhangã, anhangüera) que também significam diabo, mas o emprego de outra língua não caracteriza tabu. Porém, a grande fonte de substituições deste tabu é a substantivação de adjetivos (o arrenegado, o coxo, o maldito, o maligno, o malvado, o sujo, o tinhoso, o tição, entre muitos outros). Note-se que na tradição judaico-cristã, Satã, do grego satân , significa adversário, enquanto em latim, Lúcifer significa o que traz luz, o planeta Vênus, a estrela da manhã.

2. O PROBLEMA DO SIGNIFICADO

2.1. A campanha dos dicionários

De acordo com a teoria saussuriana, o signo lingüístico é arbitrário, logo o significante possui o significado que a comunidade lingüística lhe atribuir. Esse significado pode se alterar com o tempo ou mesmo ser esquecido (arcaizado) e substituído por outro significante, embora possa permanecer nos dicionários e nos textos antigos. Outras vezes, certas acepções permanecem aderidas a um vocábulo ainda que a situação que as produziu já tenha desaparecido. Foi a permanência de acepções pejorativas relacionadas com o gentílico judeu que levou ao jornalista Fernando Levisky, na década de 50, a mover uma campanha, conhecida como A campanha dos dicionários, com a finalidade de banir dos dicionários de língua portuguesa as referências ofensivas aos israelitas, constantes de esse e de outros verbetes. A campanha envolveu grande parte da intelectualidade da época, projetando-se até para fora do Brasil, como bem nos informa Queiroz Júnior, em seu livro Vocábulos no banco dos réus, onde reproduz textos da polêmica que se desenvolveu na imprensa e nos meios legislativos.

A campanha teve origem com um requerimento do escritor, jornalista e advogado, Fernando Levisky, ao então Ministro da Educação e Cultura, solicitando o expurgo dos dicionários das definições ofensivas, depreciativas, humilhantes de significações encontradas em vários verbetes, não apenas do verbete judeu, do qual quer que se retirem definições de diversos dicionários da época como homem mau, negocista, avarento, trocista, etc., senão também de outros, entre eles: negro = maldito; diabo maranhão = grande mentira; pernambucana = faca de ponta; espanholada = fanfarronada; francês = hipócrita, falso; brasileira = aguardente, cachaça; panamá = administração ruinosa; paulista = homem teimoso; baiano = homem que não sabe montar a cavalo; galego = incivil, grosseiro; italianada = linguagem ininteligível, paraíba = mulher masculinizada, favela = habitação de negros e malandros, e muitos outros. Levisky não pede a eliminação dos verbetes questionados, mas das definições injuriosas, que permanecem nos dicionários, muitas delas desde o período medieval, sendo atualmente desconhecidas pelo povo, porém mantidas nos dicionários modernos porque os lexicógrafos copiam um dos outros, muitas vezes sem verificar se a acepção permanece na língua viva ou se já perdeu seu antigo significado. Assim, judeu ficaria apenas como israelita, israelense, cidadão da raça judia, ficando o verbete despojado de outros significados herdados de uma injusta tradição anti-semita, mantida por motivos histórico-culturais através dos séculos. O mesmo processo se aplicaria a outros gentílicos que, além do significado literal, denotativo, contivessem outras definições injuriosas, consideradas injustas e, muitas vezes, já arcaizadas.

Nesse embate tomaram parte além do promotor da campanha, Fernando Levisky, o dicionarista Silveira Bueno, o Prof. Jesus Belo Galvão, o padre Álvaro Negromante, o vereador Levy Neves, os escritores Josué Montello, Henrique Pongetti, Menoti del Pichia e muitos outros, quase todos apoiando a proposta de revisão pleiteada por Levisky. É claro que a proposta de exclusão desses significados pejorativos visava em primeiro lugar os dicionários escolares, com a preocupação de evitar que os alunos não viessem a adquirir informações não correspondentes à verdade, porém capazes de gerar preconceitos contra cidadãos de outros povos. Enfatiza-se na polêmica que não se veja nisso qualquer manifestação de censura, mas antes a correção de erros perpetuados historicamente, capazes da causar dano a alguém.

Como vimos, a campanha desenvolveu-se através da imprensa e estendeu-se aos poderes legislativos, contando inclusive com o aval do então Presidente da República, Juscelino Kubitschek e do Ministro da Educação, Clóvis Salgado.

O resultado dessa longa campanha foi vitorioso, pois já durante seu desenvolvimento, os dicionários que se foram publicando aparecem escoimados desses significados pejorativos e injuriosos. Um dos primeiros a ser expurgado desses significados foi o “Dicionário Contemporâneo” de Caldas Aulete, em sua nova edição (1958), revisado por Hamílcar Garcia e prefaciado pelo lexicógrafo Antenor Nascentes. A partir de então, isso tornou-se prática comum, não só nos dicionários da língua portuguesa, como nos da língua espanhola, cujos autores foram despertados também para o problema pelo eco da campanha que se desenrolou no Brasil.

2.2. Etimologia e semântica

A campanha dos dicionários vem reforçar ainda mais a idéia do poder da palavra. Basta sua associação com outra, mesmo que essa associação seja só no plano fonético, para despertar no ouvinte reminiscências que o podem levar a modificar seu comportamento. Até para a escolha do nome dos filhos podem concorrer fatores fonéticos, embora também possam ser etimológicos ou semânticos. Orígenes Lessa, relata-nos o motivo da escolha do nome do filho por um dos seus personagens:

... Eu juro por esta lua que nos alumia. Não foi à toa que escolhi esse nome. É Empédocles mesmo, que se diz, não é? Antes eu pensava que era Empedócles, mas depois teve uma professora que pegou e disse que não era. A gente aqui não tem gramática, não pode saber essas coisas. Mas dizem que o tal de Empédocles era um turuna... É verdade?

É.

Foi por isso que eu o escolhi. Eu não sou desses que dão nome vagabundo aos filhos: José, Antônio, Joaquim, João... Quer dizer, João ainda é um nome bonito. Foi um grande santo.[1]

3. A INFLUÊNCIA FONÉTICA

3.1. Palavra tabu evitada por deformação fonética

A semelhança fônica põe em evidência nomes que de outra forma passariam quase despercebidos. Vemos recentemente na mídia nomes que caem no gosto (ou no desprezo) popular, devido a sua semelhança com um referente conhecido. Atualmente dois personagens estão em evidência no noticiário, com sentido negativo; evidência reforçada pela evocação que seus nomes despertam: Cacciola e Nicolau[2]. O primeiro porque lembra cachola, termo de gíria para cabeça, e o segundo porque lembra lalau gíria já consagrada no português coloquial do Brasil como equivalente de ladrão.

Há palavras que são alteradas foneticamente porque lembram algo que não se quer pronunciar. Observamos isso com termos chulos como filho da polícia, carvalho, diacho, etc. Até o alho-porro[3] é referido em receitas culinárias como alho-poró

3.2. Influência fonética de algumas terminações

Alguns finais de palavras, quase sempre sufixos, parecem ter influência em palavras foneticamente semelhantes, fazendo com que sejam evitadas, principalmente na linguagem oral, ou, ao contrário, empregadas disfemicamente. Assim, mau, babau, galalau, lacrau, alacrau[4], cara-de-pau, etc. Outras terminações podem ser evitadas por serem muito freqüentes em palavras com significações negativas. Entre estes: -alho, -alha. bandalho, paspalho, penduricalho, espantalho, serralho, rebotalho; antigualha, bandalha, cangalha, borralha, cainçalha, canalha, gentalha, migalha, mortalha, parentalha, politicalha, mentiralha, tralha, etc.

3.3. Tabu evitado por meio de diminutivos

O brasileiro é pródigo no uso de diminutivos com valor eufemístico. Não nos referimos aos idosos como velhos mas velhinhos. As instituições geriátricas cuidam de velhinhos e velhinhas. O termo idoso é o mais usado na linguagem oficial, geralmente como adjetivo: um senhor idoso, uma senhora idosa. Algo semelhante ocorre com referência aos cegos. Ou se usa o diminutivo (ceguinho, ceguinha), ou, o que é mais comum, deficiente visual, ainda que a deficiência seja completa. Já com os surdos não há essa preocupação, nem essa complacência. Não se usa diminutivo, embora nas instâncias oficiais se empregue um eufemismo equivalente ao do cego: deficiente auditivo. As jovens de algumas profissões ou ocupações são freqüentemente designadas pelo diminutivo: professorinha, freirinha, costureirinha, empregadinha, etc., o que não ocorre, a não ser excepcionalmente, com as de outras profissões ou ocupações: cantora, modelo, cozinheira, faxineira, babá, telefonista, etc.

4. PALAVRAS PARCIALMENTE TABUIZADAS

Neste trabalho pretendemos dar mais ênfase às palavras que podem ser tabu na língua portuguesa falada no Brasil, no trato cotidiano, aspecto que nos parece que não tem até agora sido muito considerado.

Vejamos algumas palavras que podem ser consideradas tabus, pelo menos em parte:

Mulher e homem

O marido, ao referir-se a sua esposa, pode dizer minha mulher, porém ela dificilmente dirá meu homem. Uma pessoa com pouca familiaridade, possivelmente não dirá ao homem casado sua mulher e sim sua esposa ou sua senhora.

Amante

O homem não se referirá à mulher que vive com ele sem ser casada como amante e muito menos como amásia ou concubina. Será namorada, companheira, amiga. Estes são alguns eufemismos, porém os disfemismos neste tipo de relação também são muito usados: a mina, o caso, o cacho, a outra, a filial, etc. Por outro lado, no caso da amante em relação à esposa, esta será a mulher dele, a mãe de meus filhos ou é citada pelo nome, mas também pode ser designada disfemisticamente como a encrenca ou algum epíteto semelhante. Já o marido se referirá à mulher como a patroa ou pelo seu próprio nome. Já a mulher se referirá a ele pelo nome de batismo, pelo sobrenome ou até por um apelido. Uma mulher considerada sem compromisso pode referir-se a seu novo par como namorado ou, modernamente, como escort.

Ao tratar-se de relações sexuais, é de praxe o uso de eufemismos ou disfemismos: fazer amor, transar, ficar com alguém, dormir com alguém, levar alguém para a cama, etc.

Sogra

O termo sogra tem historicamente conotação de pessoa má, que interfere na vida do casal infernizando a vida do genro ou da nora por maldade, por ciúme, pela vontade de proteção do filho ou da filha, por julgar que o genro (ou a nora) não está à altura e que ela (sogra) é indispensável. Por isso, na tradição literária universal a sogra é execrada, generalizando-se um pensamento muito injusto porque se passa do particular para o geral. É mais comum o apoio da sogra ao jovem casal e, particularmente, a seus netos do que o contrário, embora muitas vezes exagerando, ainda que com a melhor das intenções, mas o tabu permanece. Até em frases feitas e canções populares ela é espezinhada: “Feliz foi Adão porque nunca teve sogra”. Um cantor de música popular escolheu a figura da sogra como tema de muitas das suas canções[5]. Muitos evitam a referência minha sogra, usando a expressão a mãe de Fulana (nome da mulher) ou Dona Fulana (nome da sogra). O pior é quando se manifesta desprezo ou até ódio e a sogra é designada como aquela bruxa, jararaca e outros disfemismos do mesmo estilo. Já para o vocábulo sogro não existe qualquer tabu, embora muitas vezes se prefira o nome, sobrenome ou apelido com que é conhecido em seu meio: o Sr. Fulano (nome) ou o pai de Fulana (nome da esposa).

Madrasta

Já na mais antiga literatura infantil no âmbito universal, a madrasta é equiparada à fada má, à bruxa. É aquela mulher estranha que ocupa o lugar da mãe e que odeia os filhos, principalmente as filhas, do casamento anterior do marido. É vista como a que faz todo o mal que pode a seus enteados e acaba sendo punida por suas maldades. É feia e má. Esta imagem da madrasta parece que perdeu essa sua conotação histórica, ao menos no Brasil. Com a contínua mudança na estrutura familiar, mudança acelerada no decorrer do séc. XX, é cada vez mais comum a existência de casais com mais de uma união, principalmente entre os jovens e, portanto, madrastas e padrastos se tornaram mais comuns, diluindo-se, pelo menos em grande parte, a idéia tradicional da união até que a morte nos separe e havendo maior aceitação destes familiares afins na nova estrutura familiar. As crianças e os jovens se referem com mais freqüência a suas madrastas e padrastos por seus nomes de batismo, considerando palavras tabuizadas madrasta e padrasto.

Enteado / a

Os termos enteado, enteada têm pouca circulação no português do Brasil. O mais comum é a madrasta ou o padrasto referir-se a eles como filhos (dele / dela) com referência ao cônjuge. Também é comum chamar-lhes filhos de criação.

Bastardo / a

Não é usual no português do Brasil o vocábulo bastardo. É comum referir-se a ele/ela como meio-irmão, meia-irmã. Disfemisticamente há muitos termos para defini-los. Um dos mais comuns atualmente é produção independente.

Empregado / a; freguês / freguesa

Não são palavras tabus, mas dependendo do tipo de relacionamento existente, empregado pode ser funcionário (o funcionário da limpeza) e a empregada doméstica pode ser apresentada como secretária, uma pessoa quase da família, etc. Não se usa no Brasil o termo agregado, do português lusitano. Já o tradicional freguês / freguesa vai perdendo terreno para cliente.

Negro / a

A cor da pele ainda é, infelizmente, fator de preconceito, por isso os substantivos negro e negra são freqüentemente por escuro / escura; escurinho / escurinha ou também por pessoa de cor (sempre se referindo à cor negra). Pode ocorrer também a síncope do r por imitação da linguagem infantil, para denotar afetividade: nego/ nega; neguinho / neguinha. Muitos disfemismos são relacionados a negro / negra, alguns deles ao se tratar de pessoas corpulentas: negão / negona; negrão / negrona. Algumas definições injuriosas relacionadas às pessoas de raça negra foram retiradas dos dicionários após a campanha que mencionamos acima.

Português e galego

Os cidadãos portugueses residentes no Brasil tampouco se livraram de ter seu nome gentílico tabuizado em certos contextos situacionais. Muitas vezes são equiparados a seus vizinhos do norte da Espanha e chamados de galegos, com intenção pejorativa. O próprio termo português é freqüentemente substituído por lusitano ou luso. Já o galego (cidadão da Galiza) estava associado a grosseiro / incivil, antes da reforma dos dicionários. No Brasil, para fugir a esse significado, muitas vezes, o galego era identificado como espanhol (nome do país em lugar da região). Atualmente, com o fim da corrente migratória ibérica para o Brasil, esses termos perderam suas significações pejorativas ou elas foram muito atenuadas.

4. RESUMO

Vimos que os tabus lingüísticos existem em todas as culturas e, portanto, fazem parte de todas as línguas humanas. Limitando-nos especificamente ao português do Brasil, pouco material pudemos encontrar em fontes escritas, a não ser algumas curiosidades, geralmente utilizadas, até com exagero, para fazer humor com os cidadãos de outras origens, mais com espírito humorístico do que ofensivo. O mesmo pode ocorrer com as relações íntimas ou de outro tipo. A substituição da palavra tabu por um eufemismo demonstra quase sempre respeito e preocupação de não ofender a quem quer que seja. É claro que também se faz grande uso de disfemismos, mas estes, geralmente na ausência do focalizado.

Neste trabalho somente afloramos a questão do tabu lingüístico no português do Brasil, contudo foi suficiente para perceber que o tabu é um importante fator que contribui para a mudança lingüística. Pesquisas aprofundadas neste campo podem e merecem ser feitas.

5. BIBLIOGRAFIA

DICIONÁRIO ELETRÔNICO AURÉLIO. 3ª Versão. Rio de Janeiro, 2000.

GUEIROS, R. F. Mansur. Tabus lingüísticos. Rio de Janeiro: Simões, 1956.

JÚNIOR, Queiroz. Vocábulos no banco dos réus. COPAC, [s.d]

MONTEIRO, José Lemos. As palavras proibidas. In: Revista de Letras. Fortaleza, 11 (2): 11-23, 1986.



[1] LESSA, Orígenes. O feijão e o sonho. (Cap. 14 – fragmento).

[2] O substantivo comum nicolau significa moeda de níquel de pouco valor.

[3] Latim: allium porrum.

[4] lacrau, alacrau: formas populares de alacrã, alacrão (escorpião).

[5] Dicró. Ele tem afirmado que é apenas um tema artístico, sem qualquer vinculação com sua vida real.