A EDIÇÃO DE TEXTOS: UM OLHAR PERSCRUTADOR
SOBRE O CICLOPE TEMPORAL

Lucidalva Correia Assunção (UEFS)

Nestas últimas décadas, a filologia (enquanto edição de textos) experimentou um rápido desenvolvimento, sem, contudo, sofrer transformações de grau, isto é, sem perder traços oriundos de sua tradição científica.

Não há como falarmos em edição de textos, sem considerarmos o estudo de questões como: tradição e memória — lembrança e esquecimento.

O olhar que se lança em direção ao passado, puxando de lá recortes tão caros para a compreensão de nosso momento presente, mesmo em se tratando da edição de textos modernos, cujo passado é recente, trata-se de um trabalho de evocação da memória coletiva, com a finalidade de resgatar para a comunidade as obras — legado cultural e artístico — que dão testemunho de sua atividade intelectual. José Gonçalves diz que:

... a memória expõe, no contraponto, a amabilidade e a brandura ante os saberes, os aromas, as cores, as sonoridades, as formas essenciais de uma cultura: significantes de uma maneira de ser que a subjetividade e a intersubjetividade compuseram de modo mais ou menos inconsciente...[1]

Este olhar convoca-nos a uma releitura do ontem — o signo silenciado. E, de forma especial, contribui com o processo de presentificação do Outro (pessoas, obras, fatos e acontecimentos) que se situa à margem dos paradigmas eleitos por cada época e lugar. O Outro não revelado se constitui em um conjunto de culturas recalcadas, cobertas por uma camada geológica, a ser removida pelos aedos do presente, através de uma operação mnemônica.

A filologia sempre assumiu essa tarefa: a de burlar o ciclope temporal e, através da reativação da memória, retirar a poeira cinzenta sobreposta às obras de escritores esquecidos e de tantos outros que, mesmo lembrados, sofrem com os problemas de editoração bastante conhecidos em nossa prática editorial brasileira, ainda muito incipiente. A edição de textos, então, assemelha-se ao movimento de lembrança, afastando temporariamente o esquecimento. Este movimento quebra o silêncio a que foi condenado o diferente, o indesejado, o desconcertante, em um dado instante histórico.

É bem verdade que a memória não consegue trazer à luz as obras em toda a sua integralidade; o trabalho da edição de textos antigos e medievais é um bom exemplo para ilustrar esta afirmativa.

Memória e esquecimento são dois caminhos que se bifurcam, separados, apenas, por um fio a ser rompido pelo efeito da lembrança. O movimento da lembrança ativa as marcas temporais e locais de outrora, trazendo-as para o nosso convívio, mas recontextualizadas.

A idéia de um movimento mnemônico mergulha as suas raízes na própria história da edição de textos, se observarmos os quatro grandes períodos de sua evolução: na Antigüidade destacou-se o trabalho de compilação de textos (uma corrida contra o tempo), a utilização da linguagem escrita como cristalizadora da tradição oral, tão movediça e criativa; no Mundo Medieval, obscuro e cheio de retraimento, tivemosum período de perda substancial para a humanidade, em se tratando das obras da chamada literatura universal e da proliferação dos palimpsestos; na Idade Moderna, uma nova corrida temporal, a dos humanistas que, por razões históricas, motivados pela época (as transformações no mundo intelectual, a Reforma Protestante, as descobertas marítimas e outros eventos), buscaram, em bibliotecas públicas e particulares, cópias de manuscritos antigos e medievais, editando-os via impressa; na Contemporaneidade também se registra uma necessidade de transbordamento, através da expansão da memória, desencadeando o que os críticos textuais e genéticos denominaram no Encontro de Edição Crítica e Crítica Genética[2], de “a eclosão do manuscrito”.

No Brasil, a edição de textos não possui longa tradição, nasceu no século XIX com o objetivo de organizar o patrimônio das letras. Segundo Edith Pimentel Pinto, a edição crítica no Brasil é “um desafio a ser superado, tarefa urgente a ser realizada”[3]. Isto não significa afirmar que haja um descaso nessa direção. Parece, pois, sensato limitarmo-nos a dizer que os meios para a execução desta tarefa já foram criados e que muitos trabalhos de qualidade foram e estão sendo empreendidos com o propósito de reverter a insatisfação sublinhada por Edith P. Pinto.

Os trabalhos teóricos demonstram uma preocupação historiográfica e descritiva, registram o percurso da edição de textos em duas direções: a) levantamento de dados quantitativos, através do elenco das edições até então publicadas, classificando-as por períodos determinados pela história da Crítica Textual Brasileira; b) considerações acerca do ato de editar (modelos editoriais adaptados às obras editadas; novas orientações de pensamento).

Contudo, há que nos interrogarmos acerca das práticas editoriais contemporâneas, não no sentido de valorá-las, mas de recontextualizá-las sob a ótica das novas e influentes orientações crítico-metodológicas, utilizadas por estas práticas.

Esse situar-se no tempo e principalmente no espaço é uma exigência que se nos apresenta bastante evidente, visto que recorremos sempre ao processo de cientificação para compreendermos melhor a realidade e, hoje, recorremos a uma reflexão dessa realidade ou revisitação à casa do saber, como forma de questionamento do modo de conceber e utilizar a ciência.

Nesta perspectiva, ao lançarmos o nosso olhar sobre os tipos de edição, podemos afirmar que as edições paleográfica, diplomática, diplomático-interpretativa e crítica tão bem caracterizadas nos manuais de paleografia, diplomática e ecdótica e até mesmo a crítica genética, apesar de sua posterioridade em relação as demais, estão condicionadas às exigências epocais. Por outras palavras: condicionadas a um desejo de busca contextualizada de um modelo ideal de edição.

Sabemos que nenhum método ou teoria é absoluto e totalizante e não deve se impor ao objeto. Se assim é, no processo de edição, cada texto poderá sugerir, a partir das motivações contemporâneas em diálogo com a tradição, o caminho a ser percorrido pelo editor, cuja experiência será um dado qualitativo a seu favor.

A edição paleográfica, por exemplo, que se destinava, a princípio, à decifração de manuscritos antigos e medievais, hoje é largamente utilizada na decifração de manuscritos modernos, na fase antecedente à edição crítica e à edição genética, mesmo quando estes manuscritos não apresentam dificuldade de leitura, datação e outros problemas inerentes à paleografia.

Já, a edição diplomática, que tem como objetivo a reprodução fiel da lição de um manuscrito, sem interferir na sua pontuação, ortografia, em suma, sem alterar-lhe a forma e a estrutura, sofreu uma interferência, a qual não anula a sua objetivação inicial, mas acrescenta-lhe uma adjetivação — interpretativa.

O que dizer, então, da edição crítica, dessa prática editorial milenar, nascida na Grécia Antiga e extensiva aos nossos dias? Esta prática ressente-se das inúmeras intervenções a um impossível desenvolvimento linear de seu modus operandi, embora a sua essência e objetivo primordial ainda estejam salvaguardados. Ou seja, o compromisso com a cultura de um povo, mediante a guarda e o estudo dos documentos a ele afetos.

A edição genética não vai de encontro aos pressupostos teóricos e metodológicos dos demais modelos, até então abordados: trata-se de uma nova metodologia de trabalho com o manuscrito moderno, podendo, ou não, contribuir com a edição crítica de uma obra. Luiz Fagundes Duarte aposta numa perspectiva de crítica textual genética, como poderemos conferir a seguir:

A adopção de uma perspectiva de crítica textual genética não é, naturalmente, mais uma aventura filológica; nem é, tão pouco, uma variante mais ou menos justificável introduzida no ‘paradigma’ da epistemologia filológica; ela representa, pelo contrário, mais um passo dado em frente no sentido da compreensão do fenômeno literário, por um lado, e do processo de ‘linguistização’ e de ‘estilização’ do discurso interior de um outro, por outro lado, e ocupa-se do seu objecto com uma perspectiva simultaneamente endogenética e exogenética[4]

Para o geneticista, as rasuras, as emendas, as correções existentes no texto, constituem-se em aspectos de suma importância para o trabalho de reprodução do manuscrito e posterior estabelecimento dos movimentos de sua escritura, numa tentativa de reconstituição do processo de criação literária.

Retomando a discussão sobre a edição crítica de textos modernos, ainda não existe um consenso acerca de sua validade. A este propósito, não podemos deixar de inserir Guiseppe Tavani no debate, para convencermo-nos de que, apesar da responsabilidade do escritor com a sua obra, esta poderá sofrer corrupção e censura, muitas das vezes pelo próprio autor que a retoma para subtrair, adicionar ou permutar partes da obra, como bem entendeu G. Tavani:

Nestas condições, é evidente que — mesmo no caso de obras literárias contemporâneas — nunca teremos certeza de que o texto divulgado representa efectivamente a última vontade do autor, e nem sequer a penúltima. E a conseqüência imediata destas premissas é que também os textos contemporâneos precisam duma revisão filológica que os devolva, quando é necessário (grifo nosso), às condições introduzidas neles e restitua os segmentos originais eliminados[5].

Analisando a citação acima, podemos inferir que a filologia pode, numa perspectiva contemporânea de edição de textos modernos, servir-se, quando necessário, de elementos da crítica genética, para melhor desempenhar a sua tarefa. Nesta direção prossegue G. Tavani:

A complexidade das operações que requerem a leitura, a interpretação, a transcrição, a classificação e disposição em séries cronologicamente ordenadas dos ‘dossiês’ dos escritores contemporâneos é tal que para lhe fazer frente não bastam a boa vontade, a paixão e a competência do filólogo: (...) a decifração dos cartapácios é, o mais das vezes, tão árdua que requer a intervenção do ‘manuscritólogo’, isto é, de quem tenha adquirido a capacidade de analisar a urdidura aparentemente desordenada de uma série de escritas constantemente caracterizadas por intermitências, interrupções inesperadas, substituições, deslocações, alternativas deixadas em suspenso, alterações, correções.[6]

Fagundes Duarte alerta-nos para o fato de algumas obras carecerem de uma edição crítico-genética (ou edição crítica com perspectiva genética), corroborando com as idéias de Tavani. Duarte indica-nos uma possibilidade de edição que aponte, ao mesmo tempo, para a procura da obra e do processo de escritura do autor, a fim de melhor caracterizar o seu estilo.

Vozes ecoam em outra direção, não inversamente oposta, mas contrária. Na réplica a G. Tavani, Philippe Willemart afirma que “ As duas disciplinas (referindo-se à crítica textual e à crítica genética) são permutáveis e uma não pode nem auxiliar nem depender da outra[7].

O ponto de chegada a esta polêmica não é pacífico e, no momento, não temos condição de reiterar ou rejeitar uma visão ou outra, apenas ouvi-las.

Levantamos esta questão, atualíssima, a fim de mostrar que a tarefa de editar textos é bastante laboriosa, e que as decisões tomadas no percurso editorial estarão sempre sob suspeita, aberta a críticas e refutações.

O editor de textos modernos não ficará imune a problemática aqui suscitada, nem a tantas outras discussões que hoje são travadas no seio da ciência.

Como pudemos observar, cada tipo de edição exerce um papel fundamental na preservação dos monumentos de uma dada comunidade, uma não anula a atuação da outra e, em determinadas circunstâncias, podem atuar conjuntamente (lembremo-nos de que este modo de pensar não é unânime). E, os vários modelos editoriais são decorrentes de um inevitável e bem-vindo amadurecimento teórico que, felizmente, terá sempre como meta a preocupação de Edith P. Pinto: a edição (crítica) no Brasil é “um desafio a ser superado, tarefa urgente a ser realizada”[8].

Parece estar fora de dúvida que os trabalhos mais recentes apontam o manuscrito literário autógrafo como o centro da focalização dos pesquisadores da hora, tanto os da área de filologia e literatura, como os da área de história.

A historiografia e a crítica literária vêm demonstrando também um crescente interesse pelo estudo do manuscrito, com o intuito de melhor conhecer e compreender os meandros da formação do cânone literário brasileiro e as implicações daí advindas. Este fato pode ser comprovado se verificarmos as constantes divulgações de nomes e de obras antes ignorados pelo grande público.

Pertencentes a uma sociedade eminentemente letrada, recorremos sempre à memória escrita, ao documento, enquanto monumento, manuscrito ou impresso como suporte principal de nossa atividade científica. O texto literário ou notarial, antigo ou moderno transforma-se, então, em fonte de informação, em base indispensável para uma pesquisa interdisciplinar, recuperando histórias (estórias), quedando uns mitos e erguendo tantos outros, trapaceando a língua, como diria Roland Barthes e, de forma especial, burlando o ciclope temporal, que para o mestre G. Tavani é o grande inimigo do editor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Luiz Fagundes. Manuscritos: para que servem. Estudos Lingüísticos e Literários. Salvador: UFBA, n. 20, set. 1997. p. 11-19.

ELIA, Sílvio. A crítica textual em seu contexto sócio-histórico. In: III ENCONTRO DE ECDÓTICA E CRÍTICA GENÉTICA, 3, 1993. Anais. João Pessoa : UFPB/ APML/ FECPB/ FCJA, 1993, p. 57-64.

GAMA, Albertina, GAMA, Nilton Vasco da, TELLES, Célia Marques. A crítica textual moderna: novos rumos? CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGÜÍSTICA, 1; atas. Salvador: ABRALIN/FINEP/UFBA, 1994. v. 1, p. 454-7.

LIMA, Sônia Maria van Dijck. Edição genética: para uma metodologia de trabalho. In: ENCONTRO DE PESQUISADORES DO MANUSCRITO E DE EDIÇÕES: GÊNESE E MEMÓRIA; Anais... São Paulo: ANNABLUME/APML, 1995. p. 193-201.

TAVANI, Guiseppe. Teoria y metodología de la edición critica de textos literários contemporâneos. In: LITTERATURE LATINO-AMERICAINE ET DES CARAIBES DU XXO SIECLE; théorie et pratique de l’édition critique. Roma: Bolzoni, 1988. p. 65-84.

TAVANI, Guiseppe. Alguns problemas da edição crítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n.31, 1990. p. 35-48.

TELLES, Célia Marques. A perspectiva da crítica textual: para uma edição crítico-genética. Salvador: UFBA/PPGLL, 1997. Participação no Seminário de Crítica Textual.


[1] Cf. José Moura GONÇALVES FILHO. Olhar e memória. In. Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, p.96

[2] Cf. ENCONTRO DE EDIÇÃO CRÍTICA E CRÍTICA GENÉTICA: Eclosão do Manuscrito, 2, 1989; Anais... São Paulo: USP/FFLCH, 1989.

[3] Cf. Edith Pimentel PINTO. Edição crítica no Brasil. Comunicação e Artes, São Paulo, v.11, 1982. p.175.

[4] Cf. Luiz Fagundes DUARTE. A fábrica dos textos; ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Edições Cosmos, 1993. p. 67-8.

[5]Cf. G. TAVANI. Filologia e genética. Estudos lingüísticos e literários, Salvador, n. 20, set. 1997. p. 84.

[6] Cf. Idem, p. 90.

[7] Cf. Philippe WILLEMART. A filologia e a crítica genética a serviço da interpretação do texto editado. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 20, set. 1997. p. 99.

[8] Cf. Edith Pimentel PINTO. Edição crítica no Brasil. Comunicação e Artes, São Paulo, v.11, 1982. p. 175.