E FERVA O BACO — GREGÓRIO DE MATOS E BACELAR
Francisco Topa (Univ. do Porto)
Desde há muito que comentadores e críticos — nem sempre de forma bem documentada e serena — vêm chamando a atenção para a influência que Gregório de Matos recebeu de outros autores, sobretudo os espanhóis Quevedo e Góngora. Apesar disso, não conhecemos nenhum estudo que aborde as relações do baiano com poetas portugueses da sua época. Em nosso entender, trata-se de uma singularidade estranha no panorama da já vasta bibliografia gregoriana, sobretudo se pensarmos que o poeta viveu em Portugal a maior parte da sua vida, num período (sensivelmente 1650-1682) em que a literatura barroca portuguesa estava no seu apogeu e contava com poetas de bom nível.
É de admitir que de algum modo pesem nesta lacuna dos estudos sobre Gregório de Matos resquícios de um complexo nacionalista: ao sector largo da crítica e da historiografia brasileiras que se esforça por ver no baiano o paladino de uma suposta nacionalidade emergente convirá certamente pouco reconhecer a matriz lusitana da sua obra. Mas é possível que uma dose da responsabilidade por este descaso caiba à antiga Metrópole, que continua a manter numa espécie de limbo a poesia desse período. De facto, e apesar dos esforços que nas últimas décadas uma série de universitários — a começar por Ana Hatherly — vêm fazendo, a literatura barroca portuguesa continua a ser lida e estudada a partir de duas únicas antologias: a Fénix Renascida e o Postilhão de Apolo, ambas com demasiadas limitações.
Seja como for, agora que uma parte significativa da obra de Gregório de Matos — os sonetos — dispõe finalmente de uma edição crítica, cremos que começa a ser altura para enfrentar essa e outras lacunas. Tentaremos dar um passo nesse sentido com esta comunicação, abordando um caso concreto que nos parece particularmente curioso. Trata-se do soneto «Se a morte anda de ronda e a vida trota» (n.º 166 da nossa edição[1]), pertencente à fase da obra gregoriana composta na Baía.
Não é difícil — a partir de alguns motivos, do léxico, de certos aspectos técnicos — notar a semelhança desse poema com o soneto «Paro, reparo, tenho, envido e pico»[2], que até ao aparecimento do nosso trabalho corria como sendo também de Gregório. Sem grande custo, justificámos a exclusão do texto do cânone gregoriano e provámos que o seu verdadeiro autor é o português António Barbosa Bacelar. O argumento decisivo encontrá-mo-lo num dos muitos testemunhos que o veiculam: o Ms. 679 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, uma recolha da obra de Bacelar datada de 1680, preparada pelo também poeta Cristóvão Alão de Morais. Tratou-se de um soneto bastante popular, como o atesta o elevado número de testemunhos que inventariámos: 34 no total, dos quais 32 manuscritos, maioritariamente miscelâneas colectivas. Apenas com base nestes elementos, seria, portanto, difícil rejeitar a hipótese de que Gregório tenha conhecido o poema de Bacelar.
A possibilidade ganha ainda maior solidez se pensarmos que o texto é bem anterior a 1680. Note-se, em primeiro lugar, que Barbosa Bacelar morreu em 1663, pelo que, no mínimo, o poema não é posterior a essa data. Por outro lado, o próprio soneto contém uma alusão história — por sinal respeitante ao Brasil — que parece remeter para um data anterior. Nos v. 10-11, lê-se: «(...) enquanto bebo claro e falo rouco, / Que me dá do que passa em Pernambuco?» Embora não seja possível ter certezas quanto à interpretação da referência, parece-nos razoável admitir que se alude a algum dos sucessos particulares da campanha de expulsão dos Holandeses de Pernambuco, que decorreu entre 1645 e 1654. Assim sendo, o poema dataria pelo menos de meados da década de ’50, o que tornaria ainda mais certa a possibilidade de Gregório de Matos o ter conhecido durante a sua longa permanência na Metrópole.
Posto isto, estamos agora em condições de discutir a semelhança que parece existir entre os dois sonetos. Comecemos por considerar o de Gregório.
O texto «Se a morte anda de ronda e a vida trota» é o segundo de dois sonetos satíricos que, a fazer fé nas legendas, Gregório de Matos dedicou a uma festa de baptizado celebrada por um grupo de flamengos que ficaria assinalada por uma intensa chuva. A série abre com o poema «Vieram os Flamengos e o Padrinho», que permite perceber de imediato os motivos usados pelo autor para alcançar um efeito que, ao contrário do que possa parecer, é mais satírico que burlesco.
O motivo principal é o vinho. A própria legenda informa de imediato que os flamengos tinham vindo «com uma pipa de vinho da cidade», situação com certeza suficientemente anormal a ponto de justificar a atenção satírica do autor. Como é óbvio não é o vinho — ou o seu consumo — que justifica a crítica, mas o seu excesso, ou melhor, a espécie de ostentação que acompanha o seu consumo. De algum modo, pensando no valor que o vinho tinha na época e no estatuto social a que estava associado, talvez possamos ver aqui um primeiro tópico da sátira: a crítica ao arrivismo. A presença do motivo do vinho faz-se sentir neste primeiro soneto de vários modos: pela exploração dos efeitos da paronímia: «Como convinha não, como com vinho»; pelo jogo com o duplo sentido de botas: «E houve em Marapé grande risote / De vê-los vir com botas num barquinho»; «Porque não sendo botas de caminho, / Corriam pela gorja a todo o trote»; pela exploração da antítese vinho / água, que desemboca na explicação satírica da chuva: «Porque não quis a Virgem da Oliveira / Que lhe entrasse pagão na sua casa / Vinho que nunca fora bautizado». Com este terceto final fica clara a orientação satírica do poema, que vai muito para além do comentário humorado de um caso. Lançando mão dos tópicos “nação” e “religião”, o autor toma como objecto da sua sátira o brichote (termo pejorativo que aparece logo no segundo verso), que ainda por cima é pagão, merecendo assim um castigo divino sob a forma de chuva.
No segundo soneto, que é o que mais directamente nos interessa, o motivo principal continua a ser o do vinho. Mas surge agora uma alteração estrutural significativa: em lugar de um registo narrativo, o enunciador adopta, nas três estrofes iniciais, um discurso exortativo, apoiado no conjuntivo de 3.ª pessoa. Partindo da condicional de abertura — «Se a morte anda de ronda e a vida trota» —, justifica-se o apelo a uma espécie de carpe diem, em sentido muito imediato. Para além da exortação genérica ao divertimento («Haja bazófia») e das mais específicas ao consumo de tabaco e à música, todas as dez exortações restantes dizem respeito ao vinho e chegam ao apelo à embriaguez: «‘té que a puro brindar se ateste o saco»; «faça-lhe a razão pelo seu caco»; «Esgotem-se os tonéis». Tudo isto seguindo uma linha nitidamente hiperbólica, como se vê pela última passagem, em que deve ser notada a substituição da pipa mencionada na legenda do primeiro soneto por tonéis. Mas o propósito satírico só fica claro no último terceto, que assegura a ligação ao texto anterior. Enjeitando assumir-se como responsável pela veracidade do caso que motivou os dois sonetos — «Isto diz que passou entre os Flamengos» —, o enunciador impõe uma releitura da longa série de exortações anteriores, convertendo-as numa espécie de dramatização de uma cena merecedora da estocada satírica dos dois versos finais: «Quando choveu tanta água sobre a terra / Como vinho inundou sobre os podengos». Mais do que o riso que poderia resultar da exploração do incidente climático, o efeito que se busca é a degradação do objecto, os flamengos. Depois de apodados de brichotes e pagãos (no texto anterior), depois de ridicularizado o seu aspecto físico (repare-se no Dom Fragantão do segundo poema), são agora reduzidos à condição animal, ajudando a rima (Flamengos / podengos) a sublinhar o efeito. Embora menos presente que no soneto anterior, o motivo da chuva apresenta agora um contorno mais hiperbólico que acaba por associá-lo, devido à comparação, ao da embriaguez. Acentua-se assim a degradação do objecto da sátira.
Posto isto, vejamos finalmente o soneto de António Barbosa Bacelar. À primeira vista, as semelhanças entre os dois textos são acentuadas. Antes de mais, nota-se que o tema é comum: o poema de Bacelar também se apoia na exortação à galhofa e ao consumo de vinho. O motivo da embriaguez está igualmente presente: «Não haja quem acerte c’ o seu beco». Para além disso, há particularidades específicas comuns aos dois sonetos. É o caso da rima «saco» / «caco». É o caso também da expressão «ferva o Baco». Há ainda expressões muito próximas: «haja galhofa» (Bacelar) / «haja bazófia» (Gregório); «ande o copo» (Bacelar) / «ande a bota» (Gregório). Apesar disso, uma comparação atenta mostra que o poeta baiano, embora tenha aproveitado algumas sugestões de superfície do soneto de Bacelar, compôs um poema com uma identidade própria inquestionável.
Com efeito, note-se antes de mais que o texto do poeta português é claramente burlesco e que a posição do enunciador é outra. No soneto de Bacelar o discurso exortativo inclui o enunciador, que, aliás, recorre com freqüência à 1.ª pessoa gramatical e se dirige aos circunstantes — e já não aos objectos da sátira — através de um vocativo tão claro como «amigos». Por outro lado, o contexto é outro: trata-se de um ambiente de jogo, o que justifica que o motivo do vinho não seja preponderante. A par destas diferenças de fundo, há particularidades específicas que comprovam a distância entre os dois textos. Repare-se, por exemplo, no sistema de rimas, claramente mais apurado no soneto de Bacelar. Por um lado, o português usa nos tercetos um0 esquema menos comum que o do baiano: Gregório apoia-se no CDC / DCD, ao passo que Bacelar recorre ao modelo CDE / CDE. Mais importante e interessante do que isso é o conjunto das terminações rimáticas do soneto de Bacelar, que configura um caso de “consoantes forçados”, como se dizia na época: -aco / -ico; -eco / ‑ouco (que na pronúncia deveria dar um o fechado) / -uco. Em conclusão, pensamos que se trata de mais um exemplo que mostra como, partindo de uma sugestão alheia, Gregório de Matos soube adaptá-la a um caso local, construindo um poema com uma individualidade clara. Importa agora que esta sugestão de pesquisa sobre a influência de poetas portugueses da época na obra gregoriana seja encarada de forma sistemática.
Edição Crítica da Obra Poética de Gregório de Matos — Vol. I, Tomo 1: Introdução; Recensio; Vol. I, Tomo 2: Recensio (2.ª Parte); Vol. II: Edição dos Sonetos; Vol. II: Edição dos Sonetos — Anexo: Sonetos Excluídos, Porto, Edição do Autor, 1999. O soneto em causa vem no vol. II, p. 348-349.
[2] Na nossa edição crítica da obra de Gregório, trata-se do soneto n.º XV dos excluídos (v. II, Anexo, p. 54-56).