ESTUDOS DE ACERVOS MANUSCRIPTOLÓGICOS
E BIBLIOGRÁFICOS DE ARQUIVO PERMANENTE
REVENDO REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
SOBRE O CONCEITO DE ARQUIVO

Zeny Duarte (ICI/UFBA)

REVENDO REFLEXÕES SOBRE ARQUIVO

Diante da complexidade do papel dos arquivos na sociedade contemporânea, a arquivística tem provocado reflexões e revisões de conceitos, por parte de filósofos consagrados. Os estudos de Jacques Derrida, Michael Foucault, Gilles Deleuze e de outros, defendem o arquivo de quem o entende como assunto acessório e menor.

A exemplo disso, DERRIDA (1997, p. 9) apresenta a questão:

¿Por qué reelaborar hoy dia un concepto del archivo? En una sola y misma configuración, a la vez técnica y política, ética y jurídica?[1]

Embora considerando válidas tais reflexões e passíveis de resposta, entendemos que elas indicam a vontade de boa parte dos pesquisadores de arquivo de terem acesso sem restrições à documentação de que precisam.

No entanto, o tratamento arquivístico dos documentos é coordenado pela técnica, pela política, pela ética e pelo direito.

Essa é uma configuração que tem promovido debates sobre a teoria e a prática da arquivística. As normas impõem aos arquivos certa incapacidade de vê-lo conforme anunciam os estudos contemporâneos.

O arquivo é memória e esta, por sua vez, tem potencialidade para informar e alterar a realidade dele e dominar o presente. A memória só é pensável como arquivo quando se pretende determiná-lo enquanto monumentalidade.

Para FOUCAULT (1986, p. 173), a noção de arquivo foi tema central da fase em que escreveu "Arqueologia do saber" e o conceito que foi dado enquanto “estratégia de rememoração”. Nessa fase, ele afirma que:

Ce terme n’incite à la quête d’aucun commencement; il n’apparente l’analyse à aucune fouille ou sondage géologique. Il désigne le thème général d’une description qui interroge le déjà-dit au niveau de son exitence: de la fonction énonciative qui s’exerce en lui, de la formation du discours à laquelle il appartient, du système général d’archive dont il relève. L’archéologie décrit les discours comme des pratiques spécifiées dans l’élément de l’archive”. [2]

MELOT (1986, p. 18) diz que “a mania do arquivo tem a ver com a procura de legitimação de uma forma de sociedade que destrói crescentemente seus objetos”.

Ora, o fenômeno “arquivo” vai além de qualquer conceito. É mesmo uma categoria da experiência. Nesse campo, desempenhar o papel de rever e interpretar documentos pessoais revela fenômenos ilimitados. Ainda na revisão do conceito de arquivo, DERRIDA (1997, p. 98) diz:

...el archivo reserva siempre un problema de traducción. Singularidad irremplazable de un documento que hay que interpretar, repetir, reproduzir, más en su unicidad original cada vez; un archivo debe ser idiomático y, por tanto, a la vez ofrecido y hurtado a la traducción, abierto y sustraído a la iteración y a la reproductibilidad técnica.[3]

O autor considera o arquivo possuidor de problema de tradução, talvez porque o arquivo constitui-se de documentos únicos e insubstituíveis, que, certamente, passam por várias formas de interpretação, repetição e reprodução. Essa forma de ver o arquivo condiz com as reflexões que se encontram em trabalhos que tratam da unicidade e organicidade de documentos de arquivo.

Em longas páginas, poderíamos ficar falando das teorias dos filósofos mencionados. Porém, as idéias apresentadas somam-se às que nos fazem obter leituras controversas sobre o conceito de arquivo. Ainda mais, atualmente, com a velocidade da renovação de programas de gestão da informação.

Passamos a conviver, num só espaço, com manuscritos medievais e documentos eletrônicos e a arquivística se defronta com estudos sobre a influência dos recursos da informática. Sobre estes, PETERSON (1989, p. 83), apud SILVA (1998, p. 160), entende

não ser necessário criar um novo universo de teoria, pois os princípios arquivísticos tradicionais - valor probatório e informativo, princípio da proveniência, critérios de ordenação e descrição - continuam a reger a prática arquivística.

Tais reflexões são constantes quando estamos realizando estudos e pesquisas com documentos de arquivo. Consciente de não poder resolver o que DERRIDA e outros teóricos contemporâneos questionam (quanto a decifrar o arquivo, reelaborar ou não o conceito de arquivo etc), tentamos traduzir, o mais aproximadamente possível, o documento de arquivo, procurando na descrição maximizada o modo de dispor informações a um próximo pesquisador.

O trabalho do profissional de arquivo passa a representar uma primeira tentativa de "escavação" em torno da documentação por ele analisada. Os resultados por ele alcançados, proporcionarão espaços para subseqüentes investigações. A exemplo, citamos o estudo aprofundado da idéia do documento, a discussão teórica aliada ao compromisso da reflexão lógica, os jogos de remissões, a teia de arquivos, as pistas para o jogo da reciprocidade.

A partir deste trabalho, poderemos retomar também estudos sobre a arqueologia dos documentos, explorando-os pelos campos que cada um deles poderá emergir. Há similaridades entre as atividades do profissional da informação e o etnólogo. Esses pontos prometem uma abordagem para investigação posterior onde poderemos caracterizar o espírito ordenador de quem acumulou os documentos e a fidelidade de sua descrição e classificação originais. No entanto, nenhuma pesquisa que busque a leitura de um arquivo poderá se dizer completa e finda no seu propósito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DERRIDA, Jacques. Mal de archivo; una impresión freudiana. Madrid: Editorial Trotta S.A., 1997. p.9.

–––––. p. 98.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves, revisão de Lígia Vassalo. Petrópolis: Vozes; Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1986. p.173.

MELOT, Michel. Des archives considérées comme une substance hallucinogène. L'Archive, [s.l.], n.36. 1986.p.18.

PETERSON, Trudy H. Machine-readable records as archival materials. In: Congresso Internacional de Arquivos, XI. Anais... Paris: Conselho Internacional de Arquivos, 1989. p.83-88, apud SILVA, Armando B. Malheiro et al. Arquivística teoria e prática de uma ciência da informação. Porto: Edições Afrontamento, 1998. p.83 (Biblioteca das Ciências do Homem Série Plural, 2).

SILVA, Armando B. Malheiro et al. Arquivística teoria e prática de uma ciência da informação. Porto: Edições Afrontamento, 1998. p.160. (Biblioteca das Ciências do Homem Série Plural, 2).



[1] "Por que elaborar hoje em dia um conceito de arquivo? Numa só e mesma configuração, ao mesmo tempo técnica e política, ética e jurídica?"

[2] Esse conceito não incita na busca de nenhum princípio; não aparenta a análise em nenhuma escavação ou sondagem geológica. Designa o tema geral de uma descrição que interroga o já-visto no nível de sua existência: da função enunciativa que se exerce nele, da formação do discurso à qual ele pertence, do sistema geral de arquivo do qual depende. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo.

[3] O arquivo reserva sempre um problema de tradução. A singularidade insubstituível de um documento que se tem de interpretar, repetir, reproduzir, mais em sua unicidade original todas as vezes; um arquivo deve ser idiomático e, portanto, ao mesmo tempo oferecido e furtado à tradução, aberto e subtraído à interação e à reprodutibilidade técnica.