O NASCIMENTO DA ESCRITURA NOS MANUSCRITOS

Vanda Cunha Albieri Nery (UFU/CUT)

 

Na análise que faz dos rascunhos do poema “A Carroça”, de Milosz, Jean Bellemin-Nöel (1972:56) afirma que “a literatura começa com a rasura.

Ela só existe a partir do momento em que aquele que escreve elimina, raspa segundo a etimologia da palavra ‘rasura’, o que não corresponde a seu projeto ou às exigências do texto que está compondo ... estudar as rasuras conduz não a apreciar um estilo, mas a analisar o funcionamento da própria escritura”.

Os documentos de redação de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, quatro versões do texto, três escritas à mão e uma datilografada com emendas feitas à mão, duas inacabadas e duas completas, nos permitem verificar, através das inúmeras rasuras deixadas à mostra em todos os textos, alguns mecanismos importantes da escritura graciliânica. O que os manuscritos nos deixam ver, no caminho da construção do texto, é um trabalho suado. Uma luta diária e incansável do escritor com as palavras até encontrar a palavra que se ajuste ao máximo àquilo que se quer narrar.

A relação de Graciliano com seu texto é uma relação de extremo rigor. Rigor observado nas diversas fases de escritura-leitura-reescritura do texto num diálogo incessante com sua obra em gestação. Ao escrever um trecho que não o convence, o escritor o cobre com um traço forte. Ao grafar uma palavra que não expressa o que queria dizer, risca implacavelmente. Cancela o escrito. Tenta outra vez. É esse trabalho artesanal que faz do texto um ser em constante transformação “manipulado arbitrariamente pelo seu criador” (Hazin, 1991:99).

Nasce daí o sentimento de poder do escritor. É ele o dono da obra, “faz e desfaz, avança e recua diante da página branca que o desafia a preenchê-la com signos” (Hazin, 1993:448). Nesse trabalho, se torna absoluto. Esse “ser absoluto” faz do ato de criação seu espaço de liberdade. Ali ele tudo pode: inserir palavras, cortar frases, retrabalhar o relato, recozer a narrativa. As opções são suas. É ele quem comanda as decisões.

No mundo de criação de Memórias do Cárcere impera o trabalho meticuloso de revisão do escrito em cada lance do jogo escritural. Os manuscritos nos mostram que as emendas acompanharam pari passu a fabricação da obra.

Marcando as correções imediatas do texto elas são feitas, na primeira versão, com um só tipo de escrita e um só material de redação, o mesmo usado na escritura textual: tinta preta. Na segunda versão, além desse material, Graciliano usa para as emendas também o lápis comum. Já na terceira versão, escrita quase inteiramente a lápis comum, as alterações são marcadas a lápis e tintas de cores e tonalidades diferentes: lápis comum, preto e roxo e canetas preta, roxa, azul claro e azul escuro.

Não podemos afirmar que a correção a lápis denota uma atitude provisória e a correção a tinta define a escritura pois, ao que tudo indica, Graciliano, ao voltar ao texto para a revisão, utilizava o material que estivesse à mão. Nesse caso, a pluralidade de cores prova tão somente o número de vezes que o autor voltou ao texto para efetuar as correções.

Os sinais dos manuscritos, embora nem sempre suficientes, não nos impede de entrever uma possível leitura: tudo nos leva a crer que Graciliano costumava alterar seu texto quase sempre no próprio momento da elaboração, num processo simultâneo de escritura-leitura-reescritura.

A maioria das emendas, na primeira versão, foi feita no alinhamento, o que indica a alteração no momento exato da enunciação. A marcação das emendas a tinta - o mesmo material usado na redação - nos leva a acreditar que o escritor voltou ao texto uma única vez para revisão.

Na segunda versão, continuam em primeiro plano as emendas simultâneas à escritura, feitas no alinhamento. Mas a exigência do escritor em relação ao texto começa a alargar-se. Nesse momento podemos detectar, através do uso de lápis e tinta para as emendas, a volta do autor por pelo menos duas vezes ao texto.

Na terceira versão, aumentam ainda mais as exigências do escritor. Nela, podemos identificar, claramente, pelas diferenças de tonalidades de tinta e de lápis utilizados nas correções, o retorno do autor ao texto pelo menos quatro vezes, num intenso trabalho de revisão.

Na quarta versão - a datilografada - o trabalho é apenas de checagem com o texto escrito à mão. As emendas limitam-se ao mínimo. Quando acontecem, são efetuadas à mão, sempre nas entrelinhas.

As rasuras, que estão à flor do texto, na própria linha ou intercaladas nas entrelinhas, vão da simples correção de linguagem, que promovem emendas sintáticas ou ortográficas sem alterar o texto, às rasuras propriamente ditas, que alteram o texto mudando termos e expressões. Essas rasuras se limitam, quase que invariavelmente, às operações de substituição, supressão, acréscimo e deslocamento. A natureza de cada um desses tipos de rasura será melhor aclarada à medida em que formos comentando o seu aparecimento no texto.

De modo geral, nas duas primeiras versões, o fenômeno mais observado quantitativamente é a substituição seguida da supressão e do acréscimo. Na terceira versão, sobressaem os deslocamentos seguidos da substituição e do acréscimo.

 

 

I

 

Comecemos com as rasuras de substituição. Elas confirmam e salientam as exigências do escritor com o texto em formação. Vão desde a simples troca de artigo indefinido por definido e letras minúsculas por maiúsculas, ou o contrário, passando por vocábulos e verbos até a alteração completa de frases e parágrafos.

Qualquer que seja a alteração efetuada, por mais insignificante que possa parecer, ela não é, de modo nenhum, gratuita. Até mesmo uma aparentemente simples troca de um artigo indefinido por um artigo definido atesta a preocupação do autor na busca da precisão da linguagem

apparecera com [um] a carta de recomendação (1v, f . 18)

Quando Graciliano efetua a substituição ele quer deixar bem claro que não se trata de uma carta qualquer, indefinida, mas de uma carta específica. O artigo definido propicia a evocação de uma imagem concreta e não apenas um conceito vago.

Outras substituições, também aparentemente simples, como a troca de letras minúsculas por maiúsculas, ou o inverso, que permeiam quase todo o processo de revisão, também estão carregadas de significação.

Era o [p]Pavilhão dos [m]Militares ... Iríamos para a [c]Colônia? (3v, cap.1, f. 1)

Escreviam cartas a políticos, ao [p]Presidente da [r]República. Mas o [p]Presidente da [r]República era um prisioneiro como nós (3v, cap.15, f.4)

Os homens comprometidos na [e]Escola de [a]Aviação, no [terceiro] 3º [r]Regimento, na [mazorca] revolução de Natal (3v, 3ª parte, cap. 25, p.1)

Observem que estas substituições acontecem sempre na terceira versão e foram feitas na releitura, refletindo uma decisão posterior. Esse tipo de substituição envolve principalmente elementos e/ou instituições ligados ao governo e, portanto, detentores do poder. Nesse caso, todos passaram a ser escritos com letra maiúscula.

Há um aspecto importantíssimo do processo de criação de Graciliano para suas Memórias, e que gostaria de chamar a atenção. As alterações surgidas do minucioso trabalho de revisão, levado a cabo pelo autor, buscam certamente o aprimoramento do estilo, a correção e a precisão da linguagem, a melhor forma de expressão. Mas isto não é tudo. Elas, na maioria das vezes, modificam também o conteúdo geral do texto, onde aspectos ideológicos vão sendo sutilmente abrandados no decorrer do processo.

Reparem, no último exemplo que citei, a mudança não apenas de letras minúsculas por maiúsculas mas, principalmente, a troca da palavra mazorca, desordem, tumulto, perturbação da ordem, pela palavra bem mais branda, revolução.

No movimento das rasuras de substituição chama a atenção o intenso trabalho de Graciliano em cima dos verbos. Acompanhamos, desde a primeira versão, a lida do escritor garimpando verbos até encontrar o verbo que lhe parece mais eficaz. Seus manuscritos, ricos em exemplos, dão conta dessa lida:

Liberdade completa ninguém [tem] <desfruta> (3v, 1ª parte, cap. 1, f. l)

O guarda, amolado, [aguardava]<esperava> a resposta (4v, 3ª parte, cap.4, f.20)

A briga travada desde cedo entre o escritor e o verbo pode ser vista, mais claramente ainda, na sua hesitação no momento de efetuar a substituição:

... as gentilezas que me [produzem]<provocam> uma sensação de inferioridade ... é um erro supor que aquilo nos [provoca]<produz> medo (1v, f. 6)

Uma palavra pronunciada com uma intenção deturpava-se, perdia [mudava de ] o sentido (1v, f.10)

Neste exemplo que acabei de citar fica clara a indecisão do autor quanto ao verbo a ser escolhido. Depois de grafar o perdia, o autor, antes de efetivar a substituição, anotou o mudava de na entrelinha e, logo depois, anulou, optando pelo verbo originalmente anotado. O mudava de (alterava, modificava) tem a mesma, ou quase a mesma, significação do deturpava-se, anteriormente anotado. O perdia (deixava de ter) reforça o intuito do narrador.

Mas essa indecisão não reina sempre. Na maioria das vezes, é no fluir da escritura que o verbo é alterado. Sem nenhuma hesitação.

As dores antigas tinham reaparecido e eu [andava ma]<caminhava mal> (2v, f. 33)

Reparem que logo após anotar o verbo, o narrador faz menção de continuar a frase. Mas nem termina a grafia da palavra seguinte. Rejeita o verbo anotado. Pára. Volta atrás. Registra sua nova escolha.

A troca do andava por caminhava é significativa neste trecho, uma vez que Graciliano está referindo-se a dores na perna, resultado de uma operação realizada anos antes. O andava no contexto poderia passar a idéia que estava, encontrava-se, achava-se. O caminhava não deixa dúvida quanto a sua intenção.

Depois do verbo vem a palavra. A aparente “facilidade” de escrever desse “artesão da palavra” é fruto de um trabalho suado. Se o texto publicado mostra a total segurança de um autor que tão bem sabe manejar a língua, os manuscritos mostram a luta constante travada entre o escritor e a palavra que ele quer exata.

Os operários me affirmavam que a bóia não tinha gosto. Eu olhava-a de longe e logo me virava [arrepiado]<engulhando>. Era tão feia que, se eu tentasse comê-la certamente vomitaria (2v, f. 29)

A troca efetuada por Graciliano atende, claramente, a sua preocupação de buscar a exatidão da palavra. O arrepiar, no sentido dicionarizado de sentir arrepios por medo, susto ou frio não diz da sensação certamente sentida pelo narrador. O engulhar é exatamente a palavra certa para dizer da sua sensação diante das marmitas de comida: enjôo, náusea.

É com o intuito de tornar bem clara a sua intenção que Graciliano volta ao texto já escrito e, num refazer contínuo, troca palavras, registra novas alternativas, lança novos significados. Refazendo o percurso de novo, o escritor teima em buscar a palavra certa para ficar, numa das etapas mais bonitas do seu fazer escritural. Percebemos nesse fazer muito mais do que um mero exercício de relato do passado. É um exercício de escrita, de reflexão: pensar, ajustar, executar, num arranjo que quer dizer sempre mais e melhor.

Para Baudelaire (apud Willemart, 1993:77), “há na palavra, no verbo, algo de sagrado que nos proíbe de fazer dele um jogo do acaso. Manejar sabiamente uma língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocatória”.

Philippe Willemart (1993:77) completa: “Evidentemente, quem pratica essa feitiçaria, não é o geógrafo, mas o poeta ou o escritor. A página torna-se o lugar e o meio do parto desta existência privilegiada a um outro mundo”.

 

 

II

 

É também buscando uma concisão para a linguagem, que possibilite uma precisão estilística, que Graciliano apaga, desmancha, desfaz. Poda o texto. Descarta o supérfluo. Nascem daí a rasuras caracterizadas pala supressão, que se constituem num flagrante constante do seu processo de criação. O escritor é implacável com sua obra. Pratica, em cada passo, o processo de reavaliação do texto. O que lhe agrada é mantido. O que pouco diz, não hesita em cortar.

Ao nível mais simples, o das palavras, os cortes, abundantes em certos trechos, incidem sobre os elementos considerados não essenciais, como advérbios e adjetivos.

Rodofo Ghioldi fez uma [excelente] conferência (3v, 2ª parte, cap. 3, f. 2)

Em conversa ouvida [há pouco] na rua... (3v, 1ª parte, cap. 1, f. 2)

Vigilante atento de sua cria em gestação, Graciliano evita também pronomes e conjunções. Se, num primeiro momento, eles insistem em querer entrar no jogo escritural, serão depois impiedosamente cortados.

A [minha] intervenção produziu bom efeito (3v, 3ª parte, cap. 4, f. 3)

Mas [nem] eu [nem] e o outro companheiro (2v, f. 6)

Graciliano é parcimonioso no gasto de palavras. Dispensa os termos redundantes. Mesmo aqueles que antes lhe pareceram cabíveis não escapam depois do olhar atento do escritor:

O meu último romance [publicado] fazia mais de um anno que se arrastava pelas livrarias (1v, f.16)

Como está magro! Porque [é que você] raspou a cabeça? (3v, 4ª parte, cap. 2, f.1)

No entanto, não resta a menor dúvida. A maior incidência de cortes acontece sobre os artigos definidos e indefinidos. Quando nos perguntamos para que servem os artigos, muitas vezes chegamos a achá-los “desnecessários”. Os cortes efetuados por Graciliano nos mostram, no mínimo, que não precisamos abusar deles. Mas usá-los com prudência. Colocados no texto, às vezes, sem muita precisão, quando são retirados, possibilitam o rearranjo da frase.

[os] senhores de engenho, [uns] trabalhadores do eito (3v, 4ª parte, cap. 5, f. 2)

Não usavam [os] sapatos, [as] meias, [a] gravata e [o] suspensório (2v, f. 24)

Exemplos assim, desses diferentes cortes, parecem estar se multiplicando no texto. Eles estão espalhados por todas as páginas. No texto inteiro. Mostram o instante preciso do artesanato. Do manuseio do escritor com as leis do barro da criação.

Quantitativamente, os cortes, na segunda versão, são em menor número do que na primeira. Mas encontramos, na segunda versão, a presença muito maior de rasuras ilegíveis, palavras ou grupos de palavras que jazem sob o denso traço do autor. Na terceira versão, as supressões são abundantes no início mas escasseiam à medida em que avança a escritura. No entanto, no momento em que os cortes começam a rarear começam a surgir as marcas de borracha que, definitivamente, mesmo com o grande auxílio da lupa, não nos permite ler o que foi apagado. Isso acontece a partir do capítulo 19 da primeira parte, exatamente no momento em que o escritor passa a utilizar o lápis como instrumento de redação.

Algumas palavras, ou grupo de palavras, suprimidas não voltam ao texto. Outras, no entanto, apenas mudam de lugar e voltam um pouco adiante na narrativa. Isso se dá através de uma superposição de casos: o escritor suprime a palavra e/ou expressão já escrita, efetua um acréscimo e reintroduz o que suprimiu logo em seguida, no mesmo período. Inseridas no alinhamento essas emendas mostram que foram realizadas no momento exato da enunciação.

Os homens miúdos, [e] morenos [do Nordeste] <e irrequietos> do Nordeste (2v, f. 51)

Esse moço tinha o hábito curioso de [rodar sobre os calcanhares] <fazer meia-volta> rodando sobre os calcanhares (1v, f. 17)

É importante assinalar que a idéia de supressão - tão fortemente presente no processo graciliânico de criação - não está relacionada à pura economia de palavras, mas a um comando superior, que no entendimento de Cecília Salles (1990:192), seria exatamente o estilo do escritor.

“Escolha de palavras, escolha de construções, escolha de ritmos dos fatos, escolha dos próprios fatos para conseguir uma composição perfeita, perfeitamente pessoal”. Isto é estilo. Assim o definiu Otto Maria Carpeaux (1978:25) numa leitura que fez de Graciliano Ramos. Não se trata apenas de arrumar as palavras numa frase. Ou as frases numa página. Isso é forma. Estilo é outra coisa. Inclui uma concepção da obra. A atitude do escritor frente ao mundo que ele quer dar vida. É o ponto fundamental que distingue um escritor de outro escritor. E o singulariza.

É essa singularidade que é propositalmente buscada por Graciliano. Quando efetua os cortes de palavras, gramaticais ou descritivas, o que ele quer não é apenas eliminar o “não necessário”. Ele está buscando o texto que mais lhe agrade. A frase curta, direta, revelando apenas o essencial. Nessa busca, enforma o seu estilo. Estilo marcado pela precisão. Isso não significa, de modo algum, apenas eliminar palavras, uma vez que, nos mesmos trechos em que há cortes, há também adição. Veja um exemplo:

na minha terra uma vida [ainda] representa <escasso> valor (3v, 1ª parte, cap.20, f. 4)

 

 

III

 

Num universo onde se sabe tudo a qualquer momento pode mudar também sucede de aparecer palavras. Lá, no interior do texto, elas também ajudam a moldar um estilo intencionalmente buscado pelo escritor.

Geralmente, quando novas palavras acontecem é para explicitar um sentido, precisar uma frase, aprimorar uma idéia, ampliar a malha textual. Seja lá como for, buscam sempre possibilitar o surgimento do novo.

De acordo com os registros disponíveis nos manuscritos, Graciliano intervém no texto da primeira versão para acrescentar basicamente palavras. Na segunda versão, além das palavras ele insere, se bem que muito raro, frases e expressões. Estas vão predominar também na terceira versão. Mas somente até o capítulo 20 da primeira parte. A partir daí, volta a predominância das inserções de palavras, frases e expressões.

transformei-me numa <espécie de > larva e só posso lhes oferecer coisas frias e repugnantes (1v, f. 2)

Durante muitos dias a minha alimentação diária tinha de ser esse litro de leite, pão e alguns canecos da ... lavagem escura que parecia café. <Depois tudo isso desapareceu e fiquei sem comer>. Para nos servirem pela manhã <ordinariamente> não era preciso abrir a porta (2v, f. 22)

E Gaúcho nem de longe parecia injuriar-se. <Tinha a aparência de uma ave de rapina>. Estendeu-me a garra larga, acocorou-se junto à esteira... (3v, 3ª parte, cap. 10, f. 2)

O trabalho de Graciliano modelando a argila é meticuloso. Da mesma forma que o escritor corta, ele também acrescenta: pronomes, artigos, adjetivos. Um detalhe: os acréscimos se efetuam somente em casos em que pode haver uma dupla interpretação ou quando Graciliano quer enfatizar o que está sendo narrado.

quando lhe disseram que <eu> era pobre (2v, f. 51)

E as <nossas> ameaças se tornavam impossíveis (2v, f. 51)

Era um passatempo ruim que exigia <demasiado> esforço (2v. f. 8)

Para Graciliano, “não há talento que resista à ignorância da língua” (apud Senna, 1978:55). É em fidelidade à gramática, que preza e respeita, que ele se prende às exigências das regras de ortografia e pontuação: o acentuar palavras, introduzir pontos, restabelecer vírgulas, colocar aspas em falas incrustadas na narrativa. Restaurar as pausas do discurso.

Ao ver-me <,> declarou, fala branda (3v, 1ª parte, cap. 33, f. 1)

Minha filha <,> tenha paciência, faça o favor de ir buscar a [trouxa de] roupa (3v, 3ª parte, cap. 16, f. 2)

É importante observar que todos esses acréscimos foram feitos, ora a tinta preta, ora a tinta azul, o que comprova que Graciliano passou, pelo menos, duas vezes pelo texto, para efetuar as correções de ortografia e de gramática.

Na briga travada entre o escritor e a palavra, o estopim, muitas vezes, é o futuro leitor. Graciliano não quer deixar dúvidas. Acrescenta palavras e frases que indiquem sua intenção, com clareza e precisão.

Esses nomes estão escriptos no alto das páginas de um livro que tenho aqui <aberto> sobre a mesa (1v, f. 8)

Arrumei <na maleta> os poucos troços que possuía (2v, f. 12)

A intenção de Graciliano de buscar sempre a exatidão muitas vezes se esbarra na sua intenção de economizar as palavras. Mesmo o que parece necessário numa primeira escritura será eliminado depois. No capítulo “Sahida”, por exemplo, da segunda versão, falando dos preparativos para sua transferência de prisão, ele anota:

era preciso abrir e fechar <de novo> a maleta (2v, f. 1)

A frase reaparece na terceira versão. Já livre do acréscimo efetuado no texto anterior:

Era preciso abrir e fechar a maleta (3v, 2ª parte, cap. 31, f. 1)

 

 

IV

 

Na leitura dos manuscritos podemos acompanhar as vacilações do escritor no momento do jogo escritural. Brota daí um tipo de rasura, bastante comum também nas três versões, e que estou chamando de rasuras de hesitação. Elas anulam palavras e/ou frases que são imediatamente devolvidas para o texto. Colocadas sempre no nível da linha e sem alterar o discurso narrativo mostram, sem dúvida, que foram efetuadas no momento exato da enunciação.

nunca [suppuz] suppuz que os meus [actos] actos e as minhas palavras ... ferissem melindres (1v, f. 16)

O velho Eusébio tentava [levar a conversa] levar a conversa para assuntos mais graves (3v, 3a parte, cap. 1, f. 4)

Na terceira versão, a partir do capítulo 20 da primeira parte, este tipo de emenda desaparece quase por completo. O que permanece, e tornam predominantes nesta versão, são as rasuras de deslocamento. Caracterizam-se pela troca de posição de palavras, frases e até de períodos, de seu lugar original para outro, considerado mais adequado. Embora já estejam lá, postas no papel, palavras e frases mudam de lugar. Invertem a linguagem. Dão um novo ritmo para a narrativa.

Trata-se, nesse caso, de um aspecto de máxima importância na configuração da matriz estilística do escritor, uma vez que essa ordem determina a valorização de idéias e sentimentos propiciando os mais diversos efeitos. Octávio Paz, abrindo o seu livro Signos em Rotação (1990:11) fala do ritmo como origem da linguagem. E, para Cortazar (apud Salles, 1990:143), o ritmo buscado pelo narrador é o “elemento fundamental da prosa que sempre deve ser obedecido”.

Abundantes na terceira versão até meados da narrativa, as rasuras de deslocamento começam a se escassear a partir da terceira parte. Nas duas primeiras versões, o deslocamento se dá através da supressão da palavra ou grupos de palavras já escritas e a sua reintrodução na ordem desejada. Às vezes, a emenda ocorre na linha, indicando que foi feita no momento da enunciação; outras vezes, na entrelinha, indicando que foi feita na revisão.

É ahi que se podem tornar injustos <e> aceitar [o que lhes dizem se] sem reflexão o que lhes dizem (2v, f. 7)

Seu Cabral ... veio conversar [um pouco] commigo um pouco (2v, f. 28)

Na terceira versão, Graciliano continua adotando este mesmo critério de marcação das emendas até o capítulo 8 da primeira parte. A partir daí, no entanto, os deslocamentos passam a ser efetuados através da colocação de números arábicos sobre as palavras para marcar a inversão. Aí não nos é possível saber, com certeza, se foram feitos simultaneamente à escritura ou num momento posterior.

4 5 1 2 3

Mata se alvoraçava, ouvindo a corneta (3v, 1ª parte, cap. 28, f. 28)

Não é apenas a inversão de palavras e frases que possibilita a Graciliano alcançar um novo ritmo para sua narrativa. Ele consegue esse novo ritmo também, se bem que de modo mais raro, cortando o fluxo das sentenças. A frase longa se parte ao meio. Fica curta. Enforma o estilo buscado pelo escritor. Habilidoso, Graciliano quebra o ritmo da frase na simples troca de uma pontuação. A vírgula, pausa breve, cede lugar ao ponto final, pausa longa.

Examinei os arredores, só divisei casais mergulhados ...

Examinei os arredores. Só divisei casais mergulhados ... (3v, 2ªparte, cap.30, f.2)

 

 

V

 

Esse trabalho de revisão realizado minuciosamente e de modo tão intenso por Graciliano Ramos mostra um outro aspecto bastante importante do processo de criação literária: o escritor atuando como primeiro leitor de seu texto. Ele escreve e lê, ao mesmo tempo. Concomitantemente.

A revisão, como explica Cecília Salles (1990:171), “é resultado de trabalho e não algo que surge espontaneamente. É um trabalho que surge da leitura”.

Cada rasura manifesta a intervenção desse primeiro leitor, um leitor privilegiado, com características diferentes de um leitor comum: porque é, ao mesmo tempo, o eu que escreve, que se lê, que se auto-comenta e se auto censura, que reescreve... como explicam Grésillon e Lebrave (apud Salles, 1990:87).

Quando o escritor se coloca diante de um leitor comum de seu texto e procura medir o efeito produzido nele por aquela leitura e o texto lido não responde ao efeito desejado, ele rasura. Volta atrás. Tenta uma outra forma para atingir o efeito buscado.

A interferência do escritor, como primeiro leitor, faz-se, simultaneamente, à criação da obra, e é, exatamente, essa intervenção que possibilita ao escritor dar continuidade ao seu jogo escritural na busca para atingir a sua meta: a criação de uma obra com determinadas características por ele próprio estipuladas.

É por isso que Lebrave (apud Salles, 1990:87) diz, muito apropriadamente, que “escritura e leitura estão indissociavelmente intricadas na produção do texto. O autor é mais leitor do que escritor. É sempre possível corrigir, modificar, anular, enriquecer um enunciado já produzido”.

Cada releitura desencadeia, geralmente, uma reescritura que engendra uma nova linguagem e enforma o texto em construção. Escritor e leitor - ambos um mesmo - dialogam, tecendo o tecido da criação.

Cada emenda manifesta uma resposta a determinada concepção da obra esperada pelo escritor e que seu texto, até aquele momento, não lhe deu. As rasuras fazem sentir a presença do próprio criador às voltas com o que resiste - um artesão antes que um artista.

Em Graciliano, elas mostram o processo de criação como resultado de um trabalho de redação vagarosa, sempre permeado pela auto exigência que o escritor se impõe, pela busca de maior exatidão e pelo controle crítico exercido pelo criador.

Escrever, cortar, acrescentar, modificar são momentos que representam uma fração do tempo da criação. Momentos de máxima concentração. De disciplina e rigor. São esses os momentos de ajustes, de rearranjos, de paciência pura, do talhar artesanalmente a obra, que tornam o propósito do escritor possível de ser alcançado.

Talvez possamos falar do trabalho de Graciliano, na construção de Memórias do Cárcere, o que Cecília Salles (1990:194) falou do trabalho de Ignácio de Loyola Brandão, na construção de Não Verás País Nenhum: “um trabalho de artesão da língua com instrumentos caseiros. Acertando pontas, aqui e ali, vai burilando a matéria-prima: mexendo no texto através da língua e transformando a língua em texto, o texto em obra, e a obra naquela obra por ele desejada”

Trata-se, então, de explicar a obra “pelas relações do escritor com seu texto no aqui e agora da escritura, isto é, do escritor oscilando entre o olhar que relê e a mão que escreve. Do olhar à mão, do objeto palavra, frase ou parágrafo relido ao rastro, textos se perdem ou se criam, outros são chamados e retrabalhados” (Willemart, 1993:69).

Mas, afinal, o que rege este fenômeno aparentemente simples e comum a todos os que escrevem? O que comanda o movimento das rasuras?

Para Cecília Salles (1991:56-57), “embora haja uma gama variada de critérios determinando as opções que sustentam cada rasura, o comando dessas escolhas é eminentemente estético. O artista substitui, elimina ou adiciona formas de acordo com o que lhe é admirável sem qualquer razão ulterior. Critério, portanto, de caráter individual fortemente ligado à unicidade e harmonia que a obra em formação vai exigindo”.

Seguindo a evolução do movimento das rasuras no trabalho graciliânico de criação, descobrimos as inúmeras palavras que ficaram para trás. Inibidas deixaram o texto. Cederam lugar para outras que brotaram das mãos exigentes do criador. Outras palavras resistiram. Mas trocaram de lugar.

Percebemos, em Graciliano, que suas escolhas buscam não apenas atender a um estilo de linguagem. O escritor, quando rasura, está procurando refazer ou aperfeiçoar seu texto par alcançar um propósito bem definido: contar o que viveu na prisão. Suas escolhas buscam não apenas a precisão formal. Respondem também à necessidade de maior aproximação à “verdade” vivida, sem deixar de obedecer a um profundo senso estético, nascido das próprias inquietações do autor.

Para Graciliano, o processo ordinário e perseverante do ato de criar é o seguinte: escrever, corrigir, tornar a escrever e, principalmente, fazer a exposição do que se conheceu pela experiência (apud Guimarães, 1987:280). Não se trata apenas de saber a sintaxe, de dominar um grande vocabulário, mas de ser fiel à idéia e de domá-la em termos de uma precisão formal (Moraes, 1992:238).

É por isso que para ele dicionários nunca foram apenas obras de consultas. “Costumo ler e estudar dicionário”, disse ele em entrevista a Homero Senna. E explicou: “Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato” (apud Senna, 1978:55). Este jogo de palavras é o grande jogo do escritor com ele mesmo, com suas idéias, com sua linguagem, com sua obra em formação. O manuscrito é, na verdade, o campo onde o artista joga. As regras desse jogo são estipuladas pelo próprio criador (Salles, 1992:100-101). Para nós, o importante é que saibamos decifrar estas regras para que possamos, prazerosamente, com ele jogar.

 

 

Bibliografia

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