A METÁFORA COMO LEITURA

NA OBRA DE BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS

Maria Lilia Simões de Oliveira (PUC-RJ)

 

“As metáforas são enigmas velados”

(Aristóteles)

Este trabalho pretende destacar a obra de Bartolomeu Campos Queirós, escritor mineiro consagrado pela crítica por sua prosa poética, que tanto sucesso vem alcançando junto ao público jovem. As fronteiras entre os adjetivos “infantil, juvenil e adulta” muito têm sido alargadas no que tange à literatura. É inegável que alguns requisitos devam ser observados quando se oferecem textos para leitores em formação, mas sabemos como são perigosos os rótulos... A “boa”, a verdadeira literatura é a que ultrapassa as fronteiras; em outras palavras, um livro para leitores iniciantes deve ter qualidades literárias capazes de seduzir o leitor mais proficiente também. Este é o caso da obra literária de Bartolomeu. As narrativas desse autor - memorialistas por excelência - enredam-nos numa trama forjada nas malhas dos jogos lingüísticos que não subestimam a capacidade interpretativa de seu interlocutor.

No momento, nosso foco volta-se para as imagens, para as alegorias e para as metáforas, numa tentativa de desvelar o processo de construção desse jogo semântico, entendendo como possibilidade a presença de uma escala de grau na apreensão dos sentidos (próprio/figurado) das palavras e/ou expressões. São as experiências, as vivências que forjam o leitor, que lhe permitem alcançar (ou não) o topo da escala semântica.

Considerando o discurso literário como principal território do jogo e das possibilidades, as narrativas em estudo reforçam a teoria de Pêcheux, para quem “a noção de sentido próprio e sentido figurado perde sua significação”, uma vez que “as palavras, expressões, proposições mudam de sentido, segundo as posições apresentadas por aqueles que as empregam”. Se as palavras recebem seu sentido na formação discursiva em que são produzidas, quando não as contextualizamos, podemos falar apenas de significados possíveis, tal como se vê nos dicionários. Logo, o significado estaria mais no plano da língua e o sentido mais no plano do discurso.

Ao elaborar metáforas - suporte de imagens, sem as quais não apreendemos o mundo - o escritor forma propósitos emotivos, estilísticos; cria em seu discurso o espaço para o mundo do sensível - mundo dos “sonhos” - engendrado na característica estética embutida neste discurso.

Numa tentativa de materializar o mundo, Bartolomeu usa a linguagem figurativa devido ao caráter de concisão desse percurso. Aceitando o desafio, o poeta é levado a: 1) criar situações de analogias / similaridades entre vocábulos; 2) criar, a partir das metáforas gastas, novos efeitos, novos sentidos, ou 3) simplesmente desmontar o esquema metafórico, conseguindo, com isso, um novo efeito, produzido pelo retorno aos significados primários, que permanecem ativos nas palavras. A força da metáfora depende basicamente de nossa incerteza, da capacidade de deixar o interlocutor oscilando entre dois significados.

Entre a “coisa” e a “representação” está a imagem; podemos dizer, ainda, que está a sensação, que está o homem - ser capaz de expressar mentalmente seus sentimentos. Alguns psicólogos afirmam que o ato de ver por imagens é o ato de ver na totalidade. Esta visão holística é o que possibilita o rompimento das amarras e das limitações.

O texto literário, imagístico por natureza, provoca o “ar estrangeiro” de que Aristóteles nos fala. Este efeito inesperado é conseguido pela relação poética entre elementos conhecidos e desconhecidos. Para Aristóteles, a metáfora é uma “criação lingüística”, pois a língua não é apenas veículo comum, ela é também um meio de despertar emoções e de as fazer surgir nos outros.” A linguagem metafórica é, sem dúvida, uma das principais estratégias expressivas disponíveis na língua.

Há, na obra analisada, uma preocupação, por parte do narrador, com esta questão. Colocando-se no lugar da infância, transpassada pelo olhar do adulto, Bartolomeu destaca através do menino-narrador, personagem recorrente, o processo do desenvolvimento de uma habilidade cognitiva capaz de dar conta (ou não) de diferentes sentidos do discurso polissêmico.

Ao descrevermos, pois, o processo de elaboração de uma linguagem metafórica, estaremos priorizando a perspectiva discursiva, posto que a metáfora surge como “única”; quando, porém, por conta do uso a expressão metaforizada deixa de provocar estranhamento e perde seu valor estético, ela passa a apresentar apenas valores lexicais comuns (usuais).

A metáfora deixou de ser considerada um simples “adorno” para o texto, como acontecia no passado. Atualmente, o processo metafórico elabora uma linguagem mais direta, pois é capaz de sintetizar em imagens nossas emoções, nossas impressões. Em geral, a metáfora e a metonímia podem estar na base dos processos polissêmicos; no entanto, uma vez que um sentido é atualizado, os outros são excluídos.

Na obra de Bartolomeu podemos, junto com os personagens, refletir sobre o jogo semântico proporcionado pelo código verbal.

(Des)organizando alguns arranjos sintáticos, o menino enuncia sua perplexidade diante do jogo léxico-semântico em:

 

1) “[A mãe de Mônica] fez minha mãe beijar [a sandália do padre morto], e deixou sobre o criado... Falou muito, rezou muito, mas só o criado ficou, como sempre mudo . (LEFC,.p.26)

 

Neste exemplo há um sentido “novo” produzido, a partir da rede discursiva de Campos Queirós. Colocamos entre aspas o adjetivo novo, porque, na verdade, o que o narrador faz é exatamente uma viagem de volta à origem, visto que a palavra criado-mudo - móvel para aparar objetos ( “auxiliar”) trabalha uma relação analógica com o substantivo “original”- criado e com o adjetivo mudo (silencioso). Ao desfazer o sentido “primeiro”, já enraizado ao vocábulo, o efeito produzido é muito eficaz.

 

2) “Eu ficava impressionado como havia dentes no mundo: de leite, de alho, de serrote, de pente, de garfo, da boca.” (LEFC, p.19)

 

A polissemia da palavra dente mais uma vez confunde o narrador, que se impressiona com a multiplicidade de sentidos de uma mesma palavra.

 

3) “[O relógio] batia de meia em meia hora e meu avô não esquecia de dar corda. Segundo minha avó, meu avô me dava também muita corda.(PPP, p. 15)

 

O uso da palavra: corda, no sentido denotativo - pôr o relógio em funcionamento - e corda, no sentido conotativo - “dar trela”, serve de exemplo para as múltiplas possibilidades significativas de um mesmo termo.

Para analisar os processos de criação de imagens/metáforas, nos socorremos de alguns pressupostos teóricos de Walter Castro. Não pretendemos, entretanto, esgotar o assunto, pois reconhecemos que isso seria impossível nessas limitadas páginas.

Bartolomeu recorre a diversas classes gramaticais para explorar o uso metafórico da linguagem. Os fragmentos, destacados a seguir, apresentam verbos que produzem imagens a partir do sujeito.

Segundo W. Castro, a principal função desse tipo de metáfora - “personificadora” - é unificar elementos animados /inanimados, fundindo-os numa só expressão. Com este expediente, Bartolomeu sublinha uma ação bastante comum na infância: “dar vida” a tudo. A infância seria, pois, o lugar do concreto, do não metafórico; e a memória, do abstrato, do metafórico.

 

1) “A escola dialogava com o silêncio.” (LEFC, p.71)

2) “O escuro apertava minha garganta.” (PPP, p.17)

3) “Os raios esfaqueavam o resto da noite.” (PPP,p.54)

4) “O silêncio quietava para escutar.” (Cig, p.19)

 

As metáforas - sinestésicas - são formuladas a partir de adjetivos que unem termos “inanimados”, envolvidos por alguma sensação própria a termos que expressam os sentidos humanos. São impressões caracterizadoras do subjetivismo de cada autor.

 

1) “Como minha avó, eu precisava me manter entretido, espantando as perguntas silenciosas.” ( PPP, p.59)

2) “As meninas se ocupavam com trabalhos manuais, assentadas na sombra docemente morna.” (LEFC, p. 72)

 

Unindo duas idéias numa só, as metáforas (predicativas) revelam mais uma vez uma das principais funções desse recurso: a estética. Na medida em que as analogias acontecem entre termos de campos semânticos distanciados, o efeito expressivo aumenta. As imagens são formadas por identificação.

 

1) “A mão era uma cartilha.” (Cig, p. 11)

2) “Dessa maneira a vida ia ficando antiga sem ninguém se dar conta.” (Ind., p.16)

3) “As paredes eram o caderno do meu avô.” (PPP, p.11)

4) “A casa do meu avô foi o meu primeiro livro.” (PPP, p.12)

5) “Quando o depois ficava impreciso...” (LEFC, p.44)

 

Os segmentos (3) e (5) merecem uma análise mais detalhada, visto que exemplificam duas estratégias bastante singulares de elaboração de metáforas.

Em (3), a similaridade entre o termo núcleo do sujeito - o substantivo paredes - e o termo núcleo do predicativo - o substantivo caderno - é evidente: a parede passa a funcionar como um caderno para o avô Joaquim. O ponto convergente é, sem dúvida, a “escritura”. Ambos são lugares onde podem ser registradas as palavras escritas. Logo, este processo metafórico - simples - mas não menos eficaz, é facilmente explicado. A facilidade se deve à combinação de dois termos concretos. No entender de Walter Castro, o “predicativo é sempre o termo de valor figurado”.

Por outro lado, em (5), a analogia entre o depois - substantivo em função subjetiva - e impreciso - adjetivo em função predicativa - é, também, evidente; todavia a elaboração nos parece mais complexa. É claro que a imprecisão do futuro é incontestável. O efeito expressivo, entretanto, é mais intenso, uma vez que, na função de sujeito, aparece um termo de valor adverbial, alçado ao estatuto de substantivo, através de um processo de conversão. Há, sem dúvida, um desejo de “concretização” da realidade; a palavra - peça do jogo de interlocução - pretende, no discurso de Bartolomeu, “colaborar” com o interlocutor iniciante. Quando o autor usa termos mais “concretos”, a metáfora é mais simples; quando os termos metaforizados são mais “abstratos”, o processo é mais complexo.

O leitor de Bartolomeu precisa estar atento às constantes comparações e predicações inesperadas, pois é um recurso estilístico bastante explorado pelo autor, que não só se lança como também lança seu leitor a um “ato criativo, inventivo e prazeroso”, pois como diz Piaget: inventar é compreender”. Este prazer compartilhado possivelmente tenha sua origem nas atividades lúdicas da infância.

Vale a pena acompanhar no discurso de Bartolomeu Campos Queirós a produção das metáforas como estratégia de implicitação. Implícito, nos textos de Campos Queirós, está o ponto de vista do autor/narrador com relação à leitura. Estar no mundo para Bartolomeu é percorrê-lo como um leitor, pois Leitura era coisa séria e escrever mais ainda (PPP, p.14)

De todas as imagens encontradas neste recorte da obra de Bartolomeu, as construídas a partir do verbo ler são as mais recorrentes. Através da linguagem conotativa, em que “o plano da expressão é ele próprio composto pela união de uma expressão e de um conteúdo, isto é, quando ele próprio é uma linguagem.”, o autor veicula algumas crenças. Pelos implícitos/subentendidos da obra, sabemos que o autor crê na leitura, crê no poder da palavra escrita... As manobras estilísticas deixam marcas no enunciado. Esses recursos permitem ao locutor “provocar” algumas reflexões no destinatário.

A freqüência do verbo ler, principalmente, nas narrativas e a sua combinação com palavras de campos semânticos diferentes faz com que a “ideologia” do autor passe de forma mais suave, mais poética.

Em Ciganos, o verbo Ler, como sinônimo de decifrar, tece a rede semântica desta narrativa:

 

1) Lembro-me, contudo, de seu primeiro segredo: desejo escondido de ler a linha do horizonte. (Cig, p.8)

 

2)E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas ciganas - tiradoras de sorte - liam futuros cheios de amor e fortuna. (Cig, p.15)

 

Em Indez, ainda permanece a noção de leitura como “decifração de enigmas”. O menino precisava aprender a decodificar os gestos dos adultos e os gestos do mundo.

 

1) Nossos pais, nesta hora preguiçosa liam o destino do tempo escrito no movimento das estrelas, na cor das nuvens, no tamanho da lua, na direção dos ventos. (Ind, p.9)

2) O avô, com Antônio sobre os joelhos, contava pequenas histórias [...] que se não entendidas pelo neto, eram lidas pelos abraços e risos trocados entre o menino e o avô. (Ind,p.19)

3) Enquanto bordava, a mãe lia chegadas de cartas, visitas, presentes, na medida em que a agulha lhe espetava os dedos e encarnava de vida o linho branco. (Ind, p.85)

 

Em Por parte de pai, a leitura surge como (re)conhecimento, como descoberta, como desvelamento de emoções. Esta é a proposta implícita na cadeia discursiva desta narrativa.

 

1) As roupas, dependuradas em cabides na parede, se transformavam em monstros e sombras. Deitado, enrolado, parado, imóvel, eu lia recado em cada mancha, em cada dobra, em cada sinal. (PPP, p.17)

 

2) Prendia as lágrimas na porta dos olhos para meu pai não ler meu medo. (PPP, p.73)

 

Em Ler, escrever e fazer conta de cabeça:

 

1) A professora, quando os alunos ainda na fila e do lado da sala, lia a gente como se fosse um livro. (LEFC,p.9)

 

Nos detivemos no quadrante memorialista da obra, todavia a obra inteira é exuberante em exemplificação. Apenas para dar aos olhos do leitor um pouco de “conforto”, reescrevemos, a seguir, alguns exemplos desse primoroso trabalho com metáforas:

 

Mário era ar, por onde voam pássaros em som de vento. (Mário)

Pedro - o menino que tinha o coração cheio de domingo. (Pedro)

Algum dia dividiremos a liberdade em fatias e nos amaremos - sem fome - em absurda alvorada. (De não em não)

 

As palavras sabem muito mais longe. (Correspondência)

 

Há que se ter paciência dos caramujos visitando veredas e várzeas sem se ferir. Vagar sem pressa, polindo com prata e alma o percurso. Sem se desviar do acaso, vestido de espiral e compasso, passear desejos em fio e luz, serenamente. Estar assim, sem perdas e heranças. Ser sem volta. (Minerações)

 

No discurso de Bartolomeu, no qual encontramos tanto “prazer” quanto informação, a linguagem figurada tem real importância. As metáforas, na verdade, não dizem nada além da significação literal das palavras. O que ocorre é que a expressão metafórica pertence à esfera do uso. E o poeta convida o leitor a descobrir naquela rede discursiva os “novos” significados e os possíveis sentidos para “velhas” palavras.

Considerando que as narrativas de Campos Queirós têm sido rotuladas de textos para leitores iniciantes, muito poderíamos falar sobre a ausência de fronteiras nos livros deste autor, pois é ele mesmo quem afirma que “o mundo não está dividido em dois, um para as pessoas grandes, outro para os miúdos. As emoções eram de todos.” (Ind,p.10). Por ora, gostaríamos de ressaltar que os processos metafóricos - presença constante na obra - muitas vezes são percebidos apenas por leitores proficientes, visto que somente numa idade mais avançada é que as crianças atingem sofisticações culturais que constituem a base das metáforas. É verdade, também, que não podemos demarcar os limites, tomando por referência a idade cronológica, pois é bem possível que “os indivíduos descubram os significados metafóricos não se baseando primeiramente no conhecimento lexical, mas em virtude de sua sensibilidade ao contexto lingüístico, visual ou situacional.”

A meta do poeta é, sem dúvida, elaborar seu discurso como uma metáfora da memória vivida. A meta do leitor, por sua vez, é criar sentidos a partir dessas imagens, desvelando-lhes (ou não) seus implícitos, ou deixar, simplesmente, a meta do poeta contida na palavra que, “por mais que a tudo se cala, não preenche o vazio” (Bartolomeu C. Queirós).

 

BIBLIOGRAFIA

 

ARISTÓTELES. Arte poética e arte retórica. Rio de Janeiro : Edições de Ouro, [s.d.].

CASTRO, Walter. Metáforas machadianas. Rio de Janeiro : Ao Livro Técnico, 1978.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi [et al.]. São Paulo : Editora da UNICAMP, 1997.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Ciganos. Belo Horizonte: Miguilim, 1991.

-----. Correspondência. Belo Horizonte : Miguilim, 1997.

-----. De não em não. Belo Horizonte : Miguilim, 1998.

-----. Indez . Belo Horizonte : Miguilim, 1989.

-----. Mario. Belo Horizonte : Miguilim, 1982.

-----. Minerações. Belo Horizonte : RHJ, 1991.

-----. Pedro. Belo Horizonte : Miguilim, 1997.

-----. Por parte de pai: Belo Horizonte : RHJ, 1995.

-----. Ler, escrever e fazer conta de cabeça : Belo Horizonte : Miguilim, 1996.

SACKS, Sheldon (org) Da metáfora. São Paulo : EDUC/Pontes, 1992.

ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Trad. J. A. Osório Mateus Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.