A PRIMA RICA E A PRIMA RIQUÍSSIMA
UM ESTUDO DA LÍNGUA
NUMA PERSPECTIVA SOCIOLINGÜÍSTICA
Cleide Emília Faye Pedrosa (UFS)
Ao fazer, no título, uma analogia à história do “Primo rico e o primo pobre”, pretendemos demonstrar que a concepção que muitos têm da modalidade popular como sendo “pobre” ou “errada”, é, na verdade, desprovida de qualquer conhecimento lingüístico e carregada de grande preconceito social e regional.
Uma das frases mais correntes sobre alunos ou outros cidadãos pouco cultos é que falam tudo errado. Ela tem sido empregada tanto em relação a alunos quanto em relação a pessoas de certas classes sociais, ou de outras regiões do país. (...) Nós já sabemos que a idéia segundo a qual se fala errado (quando não se fala como falamos ou como gostaríamos que se falasse) é uma idéia cientificamente problemática, para dizer o mínimo. (Possenti, 1998, p. 41, 42).
Os usuários da modalidade popular são considerados destoantes, pois a norma padrão é vista como elemento de coesão social, como elo entre os falantes que pertencem a comunidade lingüística do poder, da classe privilegiada; logo os que não se adequam a essas exigências normativas, por possuir suas próprias normas, ou são marginalizados - tachados como aqueles que falam errado, ou muito merecem um eufemismo: “os deficitários lingüisticamente”; e são forçados a praticar um bidialetalismo (situação lingüística em que os falantes, de acordo com a situação comunicativa, fazem uso de dois dialetos sociais, por exemplo; na escola, os alunos de classes sociais desfavorecidas esforçam-se para utilizar a norma culta e a linguagem popular, em sua comunidade) neste mercado lingüístico, em que o valor da “moeda” passa a ser um instrumento de dominação.
Gostaríamos que ficasse claro aqui que não estamos discordado do papel da Escola enquanto instituição que é responsável pelo ensino da norma padrão, o que discordamos é a forma como, muitas vezes, isso acontece. A fim de valorizar (ou supervalorizar) a norma padrão veiculada na escola, há um total desrespeito por outros falares e um desconhecimento (ou pseudo desconhecimento) da diversidade lingüística do Brasil. O que se verifica, de fato, é que essa é mais uma questão de cunho político e social do que propriamente lingüística.
As forças lingüísticas, que se instauram nas salas de aulas, têm na figura do professor o instrumento autorizado para veicular a comunicação do poder, a linguagem legitimada pelo sistema, como aquele que decide que mensagens merecem ser ouvidas e aprendidas em sala de aula . A voz da criança é “silenciada” quando sua linguagem é identificada e avaliada como “escolarmente não rentável”, devendo ser esquecida e substituída pela linguagem ‘escolarmente rentável’ (norma padrão).
Segundo Pierre Bourdieu:
“Quando uma língua domina o mercado, é em relação a ela, tomada como norma, que definem, ao mesmo tempo, os preços atribuídos às outras expressões e o valor das diferentes competências. A língua dos gramáticos é um artefato que, universalmente imposto pelas instâncias de coerção lingüísticas, tem uma eficácia social na medida em que funciona como norma, através da qual se exerce a dominação de grupos.” (Apud Soares, 1993, 58).
É dessa linguagem ‘sem prestígio’, dessa linguagem ‘pobre’, desta linguagem ‘errada’, dessa linguagem ‘escolarmente não-rentável’, dessa ‘deficiência lingüística’, dessas ‘outras expressões’ que abordaremos neste texto a fim de provar o quanto esses rótulos são discriminativos e veiculam um conteúdo lingüisticamente enganoso. A nossa vida social supõe um problema de intercâmbio e comunicação que se realiza, fundamentalmente, pela língua. De acordo com o pensamento de Whorf (na hipótese Sapir-Whorf), cada língua apresenta a capacidade natural de recortar a realidade de um modo particular e por isso cada língua natural delimita aspectos de experiências vividas por cada povo. Vamos verificar diariamente que as experiências (com a língua) de um povo não coincidem, imperiosamente, de uma região para outra. As línguas apresentam cosmovisões da realidade e, por sua vez, o ‘mundo real’é construído inconscientemente segundo hábitos lingüísticos do grupo.
Então por que julgar que os pensamentos, os sentimentos e as emoções de meus compatriotas (e os direitos também), que falam uma variedade diferente da minha (contudo da mesma Língua Portuguesa), são menos profundos, menos nobres e menos fortes (e em menor número) que os meus?
Há riqueza na pluralidade de normas: culta, familiar, literária, popular, técnica etc. Nossa Língua Portuguesa seria muito pobre se apresentasse apenas uma forma para seu léxico, para sua sintaxe. Por que se aceita (impõe) a variedade culta, literária, científica e só se “escandalizam ‘com a popular? Isto é uma demonstração de verdadeiro desrespeito lingüístico.
A fim de dar conta dos aspectos que relacionam língua e sociedade, surge a partir de 1963, a disciplina Sociolingüística (veja que estamos nos referindo a disciplina, pois os estudos surgiram bem antes) que estuda a linguagem como parte da cultura e da sociedade. Em razão disso, essa disciplina abrange a estrutura e o uso da linguagem que dizem respeito às funções sociais e culturais. Identifica e analisa as variadas realizações lingüísticas de significados socioculturais.
Seus objetivos são: identificar alguns fatores sociais envolvidos na escolha que os usuários fazem da linguagem e mostrar como cada escolha se manifesta em termos de linguagem, dialeto, variedade, estilo, variante, etc. Traçando seu objeto de estudo, podemos afirmar que a Sociolingüística ocupa-se em descrever os problemas resultantes da interação lingüística dentro de grupos.
Entre os nomes de Emile Durkheim, Meillet, Gumpers, Lambert, Bernsteim e Labov; destaca-se o do último como sendo o iniciador do modelo - teórico metodológico que se propõe a descrever e interpretar os fenômenos lingüísticos no contexto social. Esse modelo é conhecido como Teoria da Variação, ou sócio quantitativa, por operar com números e tratar os dados estatisticamente.
Dois trabalhos de Labov são de relevância na determinação desse campo de estudo. Seu primeiro estudo (1963) foi sobre o inglês falado na ilha de Martha’s Vineyard, no Estado de Massachussetts (Estados Unidos), em que ressalta o papel decisivo dos fatores sociais na explicação da variação lingüística. O segundo é de 1964, uma pesquisa sobre a estratificação social do inglês em New York.
Coube a Bernstein diferenciar os códigos restritos e elaborado, sendo eles resultados da diferença entre os processos de socialização que acontecem nas diversas sociais e de conseqüência relevante para a área da educação. Já Lambert apresenta dois tipos básicos de motivação de aprendizagem de língua: motivação integrativa (deseja-se uma identificação com a cultura dos falantes desta língua que se está aprendendo) e motivação instrumental (quando se visa à autoridade e ao poder que poderão advir juntamente com a língua). Gumpers trabalhou com a escolha da linguagem que o indivíduo faz de acordo com os fatores sociais: linguagem pessoal, transacional; linguagem do poder e da solidariedade etc. De Meillet, temos a proposta de fundar uma Lingüística Geral de base sociológica, para ele, a ‘História das línguas é inseparável da história da cultura e da sociedade, as línguas não existem fora dos sujeitos que a falam e de Emile Durkheim, a relação entre Sociologia e Lingüística.
Retomando a Labov, vamos verificar que, embora seu trabalho seja contemporâneo ao de Bernstein, ele desmistificou a lógica que relacionava privação lingüística às dificuldades de aprendizagem, na escola, das minorias étnicas desfavorecidas socialmente. Segundo sua visão, essas dificuldades são criadas tanto pela escola como pela sociedade em geral, e não pelo dialeto estigmatizado falado por essas minorias.
Consultando sobre os trabalhos produzidos com a metodologia sociolingüística aqui no Brasil, vamos encontrar o projeto realizado por Lemle e Naro nos idos anos de 1977 e de outros sociolingüistas que voltavam de seus doutorados no estrangeiro. A partir daí, há uma positiva influência em outros pesquisadores. Contudo não queremos esquecer o papel do primeiro atlas lingüístico regional brasileiro (fecundado na década de 50), o Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB). Após a sua publicação em 1963, o material também passou a ser utilizado em pesquisas sociolingüísticas. É o começo no Brasil da negação da tão cantada unidade lingüística do Brasil, acorda-se para a realidade de que a unidade do português brasileiro de há muito deu lugar ao reconhecimento da diversidade de usos.
O Atlas Lingüístico de Sergipe é lançado em 1987 por Ferreira, Carlota, Jacyra Mota, Judite Freitas, Nadja Andrade, Suzana Cardoso, Vera Rollemberg e Nelson Rossi. O projeto foi executado em parceria - UFBA (Universidade Federal da Bahia) e Fundação Estadual de Cultura de Sergipe.
Os avanços dos estudos sociolingüísticos no Brasil, mesmo após três décadas, não apresentam, ainda, condições de permitir que se possa traçar um perfil da comunidade de fala brasileira na sua totalidade, diagnostica Suzana Cardoso.
Isso, talvez, ligue-se ao fato do Brasil ser um país não apenas multilíngüe e multidialetal. “Ele é também uma sociedade multicultural - a quantidade e diversidade de subculturas agregadas em comunidade de fala devem ser vistas não como um problema, mas antes de tudo como um recurso, tão precioso quanto a biodiversidade o é a nível biológico.” Justifica Quental (1996, p. 235).
Contribuindo com trabalho nessa linha de pesquisa, gostaríamos de relatar, resumidamente, o levantamento que fizemos do falar dos municípios que formam o Pólo de Própria, região ribeirinha de Sergipe. Destacamos que o registro ocorreu de maneira informal, a partir do que os pesquisadores ouviram em casa, na rua, em feira-livre e em suas salas de aulas.
Os pesquisadores foram os alunos do Projeto de Qualificação de Docente (PQD). Este projeto é o resultado de uma parceria entre o Governo do Estado de Sergipe e a Universidade Federal de Sergipe (UFS), e tem o objetivo de cumprir as exigências da nova Lei de Diretrizes e Bases, ou seja, o de que todos os professores que trabalham a partir da Educação Infantil tenham concluído o 3o grau. O projeto é executado em cinco pólos, estrategicamente localizados, visando atender aos mais de 70 (setenta) municípios que formam o estado de Sergipe - Estância, Lagarto, Itabaiana, Própria, e Nossa Senhora da Glória.
Esta pesquisa informal serviu também de motivação para um projeto mais audacioso que é o de fazer o levantamento do Português Rural de Sergipe. Este projeto liga-se a um maior que constitui a linha de pesquisa do Doutorado interinstitucional entre a Universidade estadual de Campinas, Universidade Estadual de Feira de Santana e Universidade Estadual da Bahia.
PESQUISADORES: Alunos do PQD 2 (Projeto de Qualificação de Docentes, turmas de Letras -Português e Inglês).
MUNICÍPIOS : Pólo de Propriá-SE (Canhoba, Capela, Carmópolis, Cedro Divina Pastora, Gararu, General Maynard, Itabi, Japaratuba, Japoatã, Nossa Senhora de Lourdes, Pirambu, Propriá, São Francisco, Tomar do Geru)
ÉPOCA : O ano de 1999.
PESQUISA: Fazer uma amostragem do falar popular das áreas que formam o Pólo de Propriá.
OBJETIVO: conscientizar os professores que trabalham com a clientela deste pólo sobre a necessidade de não só respeitar a modalidade popular utilizada pelos alunos e sua comunidade (comunidade também da maioria dos professores) mas também identificar as riquezas deste registro como merecendo (ou melhor, tendo o direito de) ser trabalhado em sala de aula.
PARADOXO DO OBSERVADOR: Nesta pesquisa, o paradoxo do observador foi facilmente resolvido tendo em vista o pesquisador ser da mesma comunidade dos informantes e o registro ter sido feito informalmente.
Os dados coletados foram agrupados segundo alguns critérios: campos associativos; a riqueza de um código denominado restrito; expressões que merecem ser registradas; termos regionais, palavras que sofreram o processo de aférese, síncope e apócope. Nesta abordagem, iremos considerar apenas o segundo agrupamento para fazer jus ao que anunciamos no título do artigo.
Riquezas de um código denominado restrito
Tendo em vista nosso trabalho se pautar numa perspectiva sincrônica, estamos listando em ordem alfabética as palavras registradas no momento de fala, sem caracterizá-las se é um estrangeirismo, um arcaísmo ou simplesmente uma alteração fonética resultante do processo de um evolutivo.
Enquanto a norma culta, dita código elaborado, apresenta apenas uma forma para a maioria das palavras listadas abaixo, a modalidade popular apresenta duas e até três variantes:
A Agúia / gúia aprecata/ auprecata
adevogado/ adivogado antástica/ antágiga
Antonte/ ontonte
C craro/ quilaro culé/ cuié
F Flórum/ flóro(Fórum)
Falcudade/ faculidade Fosfi/ fofe/ frosco(fósforo)
L Lâmpida/ lampra
M mandubim/ midubim/ mudobim (ameduim)
Melencia/ melhencia muiê/ mulé
muitha/munta musga/musguia(música)
O Ocê/ cê (você) orêia/ urêia/ zureia
Oio/ zóio ômbus/ oimbus
P pió/ pelhor perfessora/ prefessor
Percurá / preucurá poxta/ posta/ poita (porta)
Poblema/ pobrema/probrema prumode/ pumode
Pruquê/ pusquê
S Suvaco/ subaco
T Tamém/ tomém/tombém taba / tauba
Tabaio/ trabaia troxe/ truxi
Z Zóio/Zôio/zolho zuvido/ uvido
Observamos que essas comunidades lingüísticas têm contribuído muitíssimo para a sua língua. O que ocorre é que os usuários da norma culta, orgulhosos do seu ‘bem-falar’, não têm interesse em reconhecer a variedade popular da língua; quando muito, aceitam as pesquisas sociolingüísticas que apontam a existência dessa ‘outra’ modalidade mas que não afetam em nada o status quo de sua norma padrão.
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