A SINTAXE DOS NOMES DE PARENTESCO
EM PORTUGUÊS DO BRASIL E EM PORTUGUÊS DE PORTUGAL
Primeiros dados dos materiais para o
estudo da linguagem falada culta
na Cidade do Rio de Janeiro
Anne-Marie Spanoghe (Univ. de Gand e Bruxelas)
1. PALAVRAS DE AGRADECIMENTO E INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar queria agradecer aos organizadores deste congresso a oportunidade e a honra que me concederam ao aceitar esta primeira divulgação dos resultados de uma pesquisa dedicada à presença do ser humano na linguagem, um estudo que tenho iniciado há aproximadamente treze anos.
Dado que o meu trabalho nas universidades belgas já recomeçou no dia 15 de Agosto, há muitos elementos desta minha pesquisa que teria querido ver mais aprofundados, tais como o funcionamento dos introdutores dos nomes de parentesco no discurso escrito ou em outras variantes da linguagem falada. Esta comunicação limitar-se-á, portanto, ao discurso falado, e, mais particularmente à linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro. Agradeço aqui à Professora Dinah Callou os materiais que pôs à minha disposição.
Como o indica o título, vamos dedicar-nos a alguns elementos da sintaxe dos nomes de parentesco principalmente em português do Brasil tentando responder às perguntas seguintes:
1/ Estudar a sintaxe dos nomes de parentesco, para quê?
2/ Quais são estes nomes de parentesco? Ou qual é a estrutura da família?
3/ Quais são estas particularidades sintáticas? Segundo as gramáticas; segundo o corpus da linguagem falada?
4/ Quais são as futuras investigações?
2. PRIMEIRA QUESTÃO: ESTUDAR A SINTAXE DOS NOMES DE PARENTESCO NA LINGÜÍSTICA, PARA QUÊ?
Como é óbvio, esta pergunta contém pelo menos três perguntas essenciais:
1/São nomes ou termos de parentesco?
2/ Como é que foram introduzidos nas investigações lingüísticas?
3/ O que é que a sintaxe destes termos tem de particular?
2.1. Nomes de parentesco ou termos de parentesco
Em primeiro lugar, cabe-nos precisar a terminologia que vamos utilizar. Os nomes de parentesco, tais como pai, mãe não são nomes ou substantivos como cadeira, árvore. Como o observou muito bem M. Herslund durante um seminário em Maio de 1998 na Universidade de Copenhaga: uma cadeira é uma cadeira, mas um pai é um homem...
Pelo meio desta pequena brincadeira científica e pedagógica ele quis mostrar que existe uma diferença fundamental entre um tipo de referência absoluta -uma cadeira é uma cadeira; um pai é um homem - e um tipo de referência relacional/funcional: um pai é o ser que tem a função de ser pai de alguém. Ou seja, o nome de parentesco é o termo de uma relação necessária com outra entidade: um pai é necessariamente o pai de alguém.
Para caracterizar melhor essa categoria lexical - cuja extensão definiremos mais tarde - parece-nos mais adequado falar em “termos” de parentesco, ou em termos de família, em vez de falar em nomes de parentesco, porque, de fato, desde o ponto de vista semântico estes nomes têm um referente com características particulares.
2.2. Parentesco e lingüística
As relações de parentesco têm sido estudadas por cientistas de várias disciplinas. Segundo uma pesquisa de uma aluna minha Alwina Geerts da universidade de Bruxelas (1998-1999), as investigações sistemáticas sobre as relações de parentesco foram iniciadas por Lewis Henry Morgan, um antropólogo norte-americano que publicou, em 1871 um livro intitulado Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family; esta obra também é citada por F. Héritier (1981).
Estes termos de parentesco, sejam quais forem, são citados, também em dois estudos antropológicos, do início do século XX e são associados depois à chamada “esfera pessoal”, por Charles Bally em 1925.
Mais precisamente, em 1916, Lévy-Bruhl, um lingüista/ antropólogo que estudou as línguas da Melanésia, chamou a atenção para uma particularidade dessas línguas. Lévy-Bruhl detectou duas categorias de nomes, de substantivos: uma categoria com um sufixo especial indicando as partes do corpo, as partes de uma coisa, os objetos em relação estreita com o ser humano (as armas, a rede para a pesca, etc.), as relações de parentesco, relações de orientação no espaço (perto de, ao lado de), e uma segunda classe que contém os outros substantivos. Ou seja, se interpretamos de maneira um pouco mais abstrata a observação de Lévy-Bruhl, podemos dizer que a língua marca na morfologia uma categoria de entidades subjetivas, que constituem o que no ano seguinte se chegou a chamar a “possessão inalienável” e o que mais tarde se chegou a chamar a “esfera pessoal”.
Com efeito, no ano seguinte em 1917, Uhlenbeck, outro antropólogo/ lingüista, detectou nas línguas indígenas do norte da América uma curiosidade morfológica: lá também a morfologia marcava duas categorias de substantivos designando duas maneiras de possuir um objeto: uma maneira “alienável”- o que se pode separar da pessoa humana- e uma maneira “inalienável”- o que não pode ser separado do ser humano.
Como sabemos, o conceito de “alienabilidade” ou “inalienabilidade”, um termo jurídico, não é interpretado absolutamente pelas línguas, ou seja, não é possível fazer uma distinção nítida entre o que na mente do falante faz parte da sua intimidade e o que não faz parte dela; além disso, a língua tem que dispor de marcas, de formas capazes de marcar a oposição mencionada, se é verdade que ela existe.
Na área das línguas indo-européias, foi o discípulo de Saussure, Bally que introduziu a idéia de Lévy-Bruhl em 1925. Só que não descreveu o fenômeno em termos de “inalienabilidade” mas em termos de “esfera pessoal” e de “solidariedade” nas línguas indo-européias.
Ora bem, quais são estes termos de “esfera pessoal” e de “solidariedade” e qual é a sua importância para a lingüística românica?
A “esfera pessoal”, segundo os escritos de Bally, e estou traduzindo, “abrange ou pode abranger, os seres ou as pessoas associadas a uma pessoa de uma maneira habitual, íntima, orgânica (p.ex. o corpo humano e as partes do corpo, a indumentária, a família, etc.) A “solidariedade” seria - e estou traduzindo outra vez- “todo fenômeno, ação, estado ou qualidade afetando parte da esfera pessoal e que tem por isso mesmo uma repercussão espontânea na pessoa inteira”.
2.3. Sintaxe dos termos de parentesco
Na área da sintaxe Ch. Bally só descreve o emprego do pronome dativo lhe(s) como marca sintática possível da solidariedade.
Na Gramática metódica da língua portuguesa, por exemplo, de Napoleão de Almeida (1965:168-169) encontramos:
Machucaram-lhe a cabeça/ Machucaram a cabeça dele
Levaram-lhe o filho / Levaram seu filho/ Levaram o seu filho/ Levaram o filho/ Levaram o filho dele
Dado que não encontramos ocorrência alguma desta forma dativa “lhe/lhes” relacionada com um termo de parentesco no corpus do projeto NURC do Rio, resolvemos estudar o tipo de introdutor do termo de parentesco, que, segundo as gramáticas de Celso Cunha e Lindley Cintra (p. 215), Napoleão Mendes de Almeida (p. 167-168) e Cláudio Brandão (p. 202) seria um artículo definido (e não o possessivo). Celso Cunha e Lindley Cintra (p. 215) dá o exemplo seguinte: Nunca mais pude separar a lembrança da prima da sensação cromática das escalas musicais.
No entanto, uma primeira descrição do corpus revela uma realidade lingüística bem mais complicada.
Primeiro, do ponto de vista metodológico deveríamos saber quais são estes termos de parentesco e, segundo, quais são os tipos de introdutores ou “predeterminantes”?
3. SEGUNDA QUESTÃO: QUAIS SÃO ESTES TERMOS DE PARENTESCO?
Como já vimos, o estudo dos termos de parentesco nasceu na área antropológica e foi introduzido depois nos estudos lingüísticos das línguas não-indoeuropéias e indoeuropéias.
Num estudo de 1979, Mário Vilela aplicou as idéias de Lounsbury (1956) e de Benveniste (1969) ao português de Portugal propondo uma sistematização do campo lexical da “designação de parentesco” em português de Portugal. Grosso modo estamos de acordo com a análise sêmica que ele propõe. A única coisa que modificamos um pouco é o resultado da leitura de um livro interessante do historiador Paul Servais (1993), no qual usa o conceito de “família nuclear”, ou seja, o casal - marido e mulher - como base de uma estrutura da família - portanto em vez do “EGO” de Mário Vilela, a partir do qual todas as relações de parentesco se organizam, optamos pelos termos:
Marido-mulher
Esposo-esposa
Como ponto de partida, sem descartar, evidentemente, a presença do EGO.
Depois, levamos em conta duas gerações ascendentes e descendentes:
Filho-filha
Neto-neta
Pai-mãe
Avô-avó
Concedemos, por conseguinte, prioridade aos termos da consanguinidade, de ascendência e descendência unilaterais - pensando em nossas futuras investigações sobre a inalienabilidade.
Dado que estamos investigando um corpus de português falado, também incluímos as formas de vocativo / termos de alocução :
Papai-mamãe
Vovô-Vovó
Filho-Filha
E em todos os casos, só levantamos as formas relacionais e não as absolutas.
Morfológicamente, só estudamos os termos de parentesco acima mencionados em singular dado que o plural morfológico pode ter um impacto sobre o tipo de predeterminante.
Finalmente, só retivemos os termos de parentesco nomes comuns e não como adjetivos (ex. Água-mãe (das salinas) ou nomes próprios (ex. Machado Filho).
4. TERCEIRA QUESTÃO: QUAIS SÃO OS INTRODUTORES DOS TERMOS DE PARENTESCO NUCLEARES?
2.1. Termos de alocução
No corpus do projeto NURC (Rio de Janeiro, 1991-1994), encontramos dois tipos de termos de parentesco de alocução:
-Ou são termos idênticos aos Tp referenciais, precedidos da forma possessiva, e que por este mesmo fato perdem a significação relacional de parentesco.
Exemplo:
“Ipanema minha filha” (III, 62), duas mulheres com 25 anos que estão conversando.
“Um momento meu filho” (I, 105), um professor que fala para o seu aluno.
-Ou são Tp da alocução específicos sem introdutor, sejam eles usados no discurso direto:
- eu digo “ô mamãe ... você acha que ele nunca viu um corpo de mulher mamãe... “(III, 90)
- ... nós éramos cinco crianças... e nós gritando... “papai mamãe” (III, 234)
Ou no discurso puramente narrativo:
- mamãe na hora do almoço ia em casa... (III, 150)
- papai tinha casa lá... (III, 20)
2.2. Termos referenciais
Pelo que se refere aos termos referenciais, mesmo num discurso falado, a determinação deles é bastante variada.
Encontramos
1/ a forma possessiva
estrutura mais freqüente: meu, minha + Tp
... então fui até Recife pra trazer minha mulher e minha filha (III, 15)
2/ o artigo definido + forma possessiva
...essa... nessa viagem que eu fiz com a minha mulher nós fomos comer um sururu naquela lagoa negra...[...]
eu não sou fã de peixe... mas lá eu comi... poxa... a minha mulher teve uma baita infecção... e eu tranqüilo não me deu nada nada nada... até sopa de pedra se me der... depende do tempero... (III, 41)
3/ Complemento determinativo
- ...a mãe dele era uma italiana... (I, 113)
4/ o artigo definido
- numa narração da qual os interlocutores não fazem parte:
a Espanha nessa história... eu vou te dizer... a Espanha... Napoleão... prendeu aprisionou ... o Rei ... o Carlos ... Carlos quarto .. eu acho... e o filho... Fernando sétimo ... recebeu a coroa... a coroa... que era irmão de Carlota Joaquina... Carlota Joaquina era mulher de Dom João... (I, 119)
4/ o artigo indefinido
- depois do verbo “ter”:
...essa moça que é desquitada tem vinte e sete anos... tem uma filha... (III, 86)
- Tp não prototípico:
... eu sou um marido muito bom porque a verba da empregada continua a ter mensalmente... (III, 97)
5/ o numeral, cf. Artigo indefinido
6/ o chamado artigo zero
-atributo, cf. Supra 4/
-depois do verbo “ter”:
... você sabe... todo mundo tem filho... (II, 51)
-depois de uma preposição:
... tem outro casal com filho... (III, 20)
... eu sou descendente direta de árabe por parte de pai e parte de mãe... (III, 61).
Neste momento estou aperfeiçoando os resultados estatísticos e analisando mais em pormenor a descrição acima mencionada para confrontar estes dados à sintaxe destes nomes de parentesco entre outros ao emprego em português de Portugal e ao emprego no discurso narrativo escrito.
7/ demonstrativo + Tp
função discursiva/textual
... esse pai de um colega meu... (III, 52)
5. QUARTA QUESTÃO: FUTURAS INVESTIGAÇÕES?
Como ficou claro, nesta brevíssima apresentação não tivemos intenção de entrar nas polêmicas sobre a melhor gramática, sobre o melhor tipo de corpus, sobre a validez ou não do projeto NURC (cf. S. Elia 1998).
No entanto, ainda há muitas investigações que deveriam ser feitas,
1/ boa sistematização de investigações sobre a estrutura da família na América Latina;
2/ descrição dos termos de parentesco numa variedade máxima de tipos de discurso;
3/ e, finalmente, uma análise profunda dos termos de parentesco alocutivos e referenciais - da qual esta apresentação só foi o início.
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