A “PSEUDO”-DOMESTICIDADE EM GRAZIA DELEDDA NO PÃO CASEIRO

Leda Papaleo Ruffo*

No jogo de palavras que compõe os gráficos que apresentei em minha Tese de Doutorado A estruturação do cotidiano em Grazia Deledda, há uma recorrência, um atavismo e uma empatia que as faz presentes a toda hora e em qualquer momento. A feitura do pão caseiro, por tempo cronológico de um dia para o outro; o espaço é uma propriedade comum do lugarejo Nuoro; os utensílios necessários para a feitura do pão e os ingredientes constituem a parte vital para que o sucesso se realize: é o fenômeno da “la buona riuscita”, ou o do bom resultado. O aspecto social das palavras usadas por G. Deledda instintivamente, confundiu os críticos que viram aí um arremedo sociológico, como centro de preocupação da narrativa deleddiana. É um fato que constatamos até nas diversas qualidades do pão e de seus conseqüentes destinatários. As palavras jogam dentro de um contexto, na verdade, porém, esse contexto deleddiano absorve uma tradição milenar, mas que vivenciada, também milenar, não deu opção para que fosse contestada. No Novo Testamento vamos encontrar: “...E assim a palavra teve vida, e escreveu com mãos humanas o credo dos credos”.

Sabemos que o instrumento da literatura também é a palavra. A arte se instaura, na medida em que o uso da palavra rompe as barreiras do sistema, para deixar de ser signo e passar a Signo. No estudo da palavra várias metáforas foram construídas em torno dela: a palavra é lança, é adaga, é artilharia, é sofrimento, é paixão... No texto Pão caseiro a palavra é tradição , é lenda, é religião, é amor, é re-união. Nesse momento o tempo cronológico desaparece na história: todo um rosário de séculos passa diante do leitor. No esppaço da casa de Nuoro se universaliza o passado com suas lendas e temor ao Criador. A mãe cumpre um ritual santo na célula familiar. Sabe de sua responsabilidade: herdeira nata. A feitura do pão é um dia de festa, a estrutura do dia-a-dia pára. Os jovens têm que sentir que sua colaboração é importante! Não é fácil, já que o mundo de fora clama! Os sons, que acompanham a cena da casa, são apagados pelas cores gritantes da natureza. E o esquema se restabelece em: dentro x fora, tradição x novidade, velho x novo, bem x mal. Os substantivos são dispostos, segundo a montagem do cenário: “la fatica” (o trabalho) “la pazienza” (a paciência) “la responsabilità” (a responsabilidade) “la buona riuscita” (o bom desempenho).

São necessários: o trabalho, a paciência, a responsabilidade para o bom desempenho. Os adjetivos descarregam nos substantivos toda uma carga semântica cultural: “semplice” (simples), “facile” (fácil), “gravosa” (pesada), “alleviate” (aliviadas). Toda essa cultura com a qual convivemos traza o sentido religioso da velha Nuoro: “il senso” (o sentido), “i segni della croce” (os sinais da cruz), “cappuccio monacale” (capuz monacal), “iniziazione antica” (iniciação antiga). Nessa segunda etapa, que condiz com o ritual da Santa Missa, os adjetivos se compõem com os substantivos numa só carga semântica. Não são aderentes e necessários como os primeios citados. Não são amalgamados porque a tradição é a palavra de Deus. O altar é montado no adjetivo “pulito” porque a limpeza é pureza. O trabalho Santo diz sacrifício do Filho de Deus: “Esse é o meu corpo”.

O adjetivo “lucenti” (luzidios, brilhantes) dizem do eterno e do novo. A “patriarcale” (patriarcal) ciência deve prevalecer. Os novos devem obedecer aos ensinamentos tradicionais. A “massaia” (a dona da casa, a mãe) era boa e pia e conservava o sentido religioso para que sua obra fosse abençoada. Como Noé, ela é uma escolhida: “Tomarás pois também contigo de todas as coisas que se podem comer, e as meterás na arca para te servirem de sustento a ti, e aos animais”.

No terceiro livro, Levítico, o Senhor, falando a Moisés se refere ao pão que deve, já que representa sacrifício, ser comido em lugar santo:

 

Estes pães mudar-se-ão para se porem outros diante do Senhor, cada sábado, depois que forem recebidos das mãos dos filhos da Israel por um pacto eterno. E eles pertencerão a Aarão, e a seus filhos, para os comerem no lugar santo: porque isto é uma coisa santíssima que lhes pertence dos sacrifícios do Senhor por direito perpétuo.

 

É uma obra que foi perpetuada pelo filho de Deus e deve ser observada em todas as famílias que Nele acreditam. A metonímia do trabalho santo é uma pincelada magistral de Deledda que assim dirige esse difícil jogo. A velha luta Velho x Novo impulsiona a escritora que agora vive longe de Nuoro e sente que sua hora chegará. Bachelard nos ajuda a ler a repetição deleddiana dos utensílios que serão usados:

 

Mas, às vezes, as transações do pequeno e do grande se multiplicam, se repercutem. Quando uma imagem familiar cresce até ter dimensões do céu. Somos, de súbito, chocados pelo sentimento de que, correelativamente, os objetos familiares se transformam em miniaturas de um mundo. O macrocosmo e o microcosmo são correlativos.

 

A idosa Deledda faz confluir para esse texto, ou melhor, miniatura de texto, a grandiosidade do pequeno família, em relação a um macrocosmo correlato ao seu microcosmo. Deledda conservou sua ingenuidade nas coisas pequenas e com isso, produziu uma vasta obra:

 

De fato a imaginaçcão miniaturizadora é uma imaginação natural. Aparece em todas as idades do devaneio dos que nascem sonhadores.

 

Deledda, a sonhadora, nos faz rever toda a sua trajetória de escritora em Pão caseiro, fermentada pelo atavismo do simples, dos humildes. Não importa se a sua consciência histórico-social não a fez lutar por eles, mas conviver.... conviver com eles, ser uma deles. No “cerchio”, ou seja, no âmbito, no círculo, acontecem as coisas mais importantes: Deledda deu importância aos afazeres domésticos. Mas como dar a tais afazeres uma atividade criadora?

 

Desde o momento em que as luzes da consciência do gesto mecânico, desde o momento em que fazemos fenomenologia limpando um móvel velho, sentimos nascer, sob o terno hábito doméstico, impressões novas. A consciência rejuvenesce, dá aos atos mais familiares um valor de começo.

 

Concluo este breve estudo afirmando que Deledda constata os costumes, as tradições de sua Sardenha, todavia não os aceita integralmente e os contesta, na medida em que os considera de maneira crítica e criativa, rompendo o círculo familiar num re-novar constante, realizando, assim, uma vastíssima obra, que aponta para a sua relativa autonomia dentro do universo em que foi gerada.

Grazia Deledda alcançou a universalidade ao ultrapassar, em seus romances, os restritos limites, tanto geográficos, quanto formais. Estes últimos, por sua vez, foram motivo de críticas constantes em relação à sua obra. Deledda, como já afirmei, não criou um mundo novo, mas criou novos sentidos para interpretar a velha tradição milenar de “sua” Sardenha. No seu universo poético é importante o jogo sombólico entre velho x novo, bem x mal, religião x religiosidade, carne x espírito, sim x não ... Oposições que marcaram uma idéia que a persegue, como temática, em todas as suas obras, numa eterna busca da autora, centrada numa dialética que não desfaz as antíteses mas, pelo contrário, as alimenta e as renova.

Deledda é conseqüência e porta-voz do jogo instaurado pelos signos lingüísticos na formação celula familiar através dos tempos, na qual os papéis estão bem rotulados e demarcados, cabendo à mãe o lugar da grande ausente-presente.

Os personagens deleddianos são fruto - repercussão - no sentido bachelardiano, trazidos pelas “ressonâncias” que fazem presente a própria complexidade sarda.

Efix, o servo que matou por amor, é, em Canne al Vento, a mola da constatação e da contestação. A autora soube ultrapassar as influências recebidas pelos autores lidos ao imprimir em seus personagens a sua marca própria que irá determinar, na explosão de seus signos lingüísticos, a originalidade de sua obra.

Maddalena, no romance La madre, nos remete às mensagens trazidas pelo vento, personagem constante, realizador das antíteses estruturadoras da temática deleddiana, no jogo permanente entre velho x novo. Maddalena, a mãe, que rompeu o “cerchio” familiar, em conseqüência de sua própria criação, se faz presente, pela morte na igreja. Saindo do cenário ela é, de fato, o personagem mais importante, então, na fragilidade do lar, construído como um “ninho”, segundo Bachelard.

Pane casalingo é a confluência da caminhada deleddiana em que, num breve texto, faz explodir num ritual caseiro, todas as antíteses presentes na obra da autora que, como mulher, constatou e, como escritora, contestou. O pão caseiro, alimento escolhido pelo Senhor é o próprio alimento que fermenta o jogo lingüístico e poético pela grandeza e originalidade da obra de Grazia Deledda.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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