LUIGI MALERBA

A INVENÇÃO DO SUJEITO DOS SONHOS

Sonia Cristina Reis - UFRJ/Faculdade de Letras

Diario di un sognatore (Torino,1981, 1ª edição) é uma narrativa em que se registram, diária ou quase diariamente, acontecimentos, impressões, confissões dos sonhos do narrador. O diário fictício é o artifício que o escritor italiano Luigi Malerba (1927-1998) utiliza como instrumento para averiguar o cotidiano caos da modernidade e as contradições da História.

O enredo dessa obra não se baseia nos momentos típicos, fundamentais e precisos da vida humana, aspectos que poderiam caracterizá-lo como um romance autobiográfico. É, antes, uma narrativa em fragmentos.

E, nos vários fragmentos de coisas não-acontecidas, a identidade do indivíduo apresenta um sujeito da narrativa cindido, múltiplo, nômade. Este sujeito está continuamente transtornado, pois ele se condiciona a sonhar e a transcrever os próprios sonhos tidos a noite. E, às vezes, lhe acontece, pela manhã, de não os recordar. Então, a descrição dos sonhos não ocorre, dando espaço a narração sobre a frustração do narrador em relação ao objeto não sonhado. Esse problema lhe surge logo no primeiro dia. Então, o narrador, sempre entre parênteses, explica a sua desilusão de sonhador:

 

Settecamini, 31 dicembre 1978 - 1º gennaio 1979

Nessun sogno, o comunque nessuna traccia di sogno nella memoria al risveglio.

(Il fatto è insolito e delude una attesa. Sogno quasi tutte le notti o meglio, dal momento che secondo i neurofisiologi sogniamo ogni notte, ricordo quasi sempre i sogni che faccio o, come minimo, so di avere sognato. Il fatto pare quasi un “dispetto” al programma di annotare i sogni, un piccolo sabotaggio ai miei piani, proprio all’inizio. I sogni, questa sembra essere la lezione, sono liberi di presentarsi a loro piacere e non ammettono di essere evocati a comando. Così, nella aspettativa del primo sogno, vengo punito e umiliato con il nulla).

A obra Diario di un sognatore apresenta, em suma, a transcrição dos sonhos do narrador, por um período pré-determinado. Por um ano, especificamente de 30-31 de dezembro de 1978 a 30 de dezembro de 1979, o narrador estabelece que anotará durante as manhãs os sonhos da noite anterior. No entanto, a redação defintiva dos eventos oníricos acontece apenas no início de 1980.

O material dos sonhos, segundo o narrador, se origina dietro ogni gesto, ogni evento della vita reale, dietro ogni oggetto, possibilitando que si nasconde una infinità di gesti, eventi e oggetti non realizzati, oscuri e assenti, ma possibili.

Esse diário fictício é composto por um Prologo del Sognatore, que serve como uma introdução, e por fragmentos narrativos. O nome de algumas cidades italianas (Roma, Settecamini, Porto Santo Stefano, entre outras) e de alguns países (como Bulgária, França) e as respectivas datas introduzem os trezentos e sessenta fragmentos oníricos. Essas referências, geográficas e temporais precisas que antecipam cada microtexto, indicam a localização espaço-temporal do narrador e, muitas vezes, não se relacionam diretamente ao evento sonhado. Pois, o espaço dos sonhos se mostra impreciso e ambíguo, como por exemplo:

 

Roma, 21-22 gennaio

“Il sogno ha un titolo, Terrorismo, e un sottofondo musicale vagamente hollywoodiano che scorda con l’argomento. (Non è la prima volta che un sogno mi si presenta con un titolo, ma il sottofondo musicale è una novità). C’è un ambiente, una casa molto articolata, corridoi stanze magazzini ripostigli, molte porte e finestre dalle quali entrano e escono i terroristi. Questa casa l’ho inventata io, ma i terroristi la invadono senza curarsi di me. [...]

 

A mesma imprecisão pode ser verificada quando o narrador descreve os sonhos com pessoas reais, amigos e conhecidos, pois estas presenças são marcadas no texto apenas com a inicial dos nomes em letra maiúscula. Já, os sonhos que dizem respeito a personalidades da literatura trazem os nomes por extenso. O narrador, simplesmente, os encontra em seus sonhos e, às vezes, sonha ser a personalidade outra. Nesses momentos, o narrador não consegue indicar os traços pertinentes a identidade da personalidade sonhada, em geral, questiona se de fato sonhou ser outra pessoa e nos dá o nome da identidade que possivelmente assumiu.

O sujeito dos sonhos inventa e/ou reinventa a si mesmo, por intermédio de um transformismo combinatório, modificando-se, também, em objeto. Ora, este é um sopro, ou um homem de vidro, ou uma carta do baralho. Talvez, esses sejam os códigos do diário do escritor italiano. Logo no início da obra, precisamente, no prólogo, o narrador nos adverte:

 

“C’è un luogo dove accadono le cose più strane, dove il tempo e lo spazio sono oggetto di una beffa continua, dove convivono il tragico, il grottesco, l’assurdo. Questo luogo è il sogno. A metà strada fra preistoria e fantascienza, il sogno è anche il luogo di tutte le ambiguità, l’anagrafe di tutti i fantasmi che popolano la nostra mente, lo spazio dove s’incontrano persone e cose della vita, ma che più spesso esitono solo lì e non hanno nessun riscontro nella realtà.”

 

Essas referências iniciais nos indicam uma hipótese formulada de que nos textos podem ser especificados traços precisos não do autor histórico, mas daquele que se revela na obra. Um autor depurado dos seus traços reais, sendo caracterizado por aquele que a narrativa postula, ou seja um autor implícito. Nessa forma, a primeira pessoa (eu) caracteriza o enunciado do diário. E, consequentemente, não há enunciados que possam ser atribuídos a personagens que poderiam mediar os conteúdos da narração. Observa-se, ainda, que na obra há uma total ausência de diálogos, existe apenas um “EU”, que monologa em vários modos, como por exemplo:

Roma, 09-10

Nel sogno sono perfettamente cosciente di sognare e che l’indomani trascriverò il sogno che sto facendo. Ma non sto sognando niente. Mi domando che cosa mi conviene sognare. Non lo so proprio. Poco alla volta si spegne la coscienza del sogno irrealizzato e scivolo di nuovo nel sonno inerte.

Essa forma, que Segre denomina diálogo zero, assumida pela narrativa de Luigi Malerba, traz um narrador-personagem que é um navegador noturno de espaços e tempos imprecisos. O seu discurso é coerente apenas se aceitamos o fato de que o sonho é o lugar onde as ações são processadas.

É importante notar que a inexistência de um interlocutor (TU), na narrativa, evidencia o fato de não ocorrer o confronto direto e de igualdade, ou não, entre o sonhador e outros personagens. O narrador-perssonagem tem liberdade para sonhar e transcrever os sonhos. Esse aspecto na narrativa colabora para que não haja a participação e a interlocução, tendo em vista que não acontece no texto a possibilidade de diálogo entre um EU e um TU. Caracteriza, precisamente, essa narração o fato de ter como destinatário imediato o leitor. O narrador, então, passa ser o mediador entre o mundo da ficção e o destinatário (leitor), porque são atribuídos ao narrador dos sonhos, além da condução da diegese, também os interventos metanarrativos, os comentários sobre a própria narração.

 

Roma, 18-19 giugno

Il sogno è la replica di una immagini vista nella realtà: un “treno” galleggiante che viaggia sull’acqua. Provo un grande piacere a osservarlo e senza sforzo lo “avvicino” come se avessi il teleobbiettivo, per ammirarne meglio i colori e i particolari.

(Nella realtà si trattava di sette o otto galleggianti trainati da un rimorchiatore, per rifornimento d’acqua potabile all’Argentario. I galleggianti gialli davano l’idea di un “treno acquatico”. Il sogno assume la funzione di memoria visiva, con la differenza che qui l’immagine diventa piú ricca e luminosa, meno casuale, quasi piú “consistente”della realtà).

 

Essa estrutura é conseqüência inevitável do diário fictício noturno: um texto sobre o desenvolvimento das imagens oníricas em uma narrativa de fluxo mental, assimétrica. O título revela os percursos seguidos pelos sonhos que se desenvolvem segundo diagramas mentais e não retóricos na formação de imagens oníricas em palavras transcritas.

Lembramos que a sobreposição de significados que se atribuem aos sonhos (os desejos, as premonições, as projeções, as intenções, as frustrações), encontrada nos códigos de interpretação dos antigos filósofos e nas teorias modernas, aqui adverte o narrador no Prologo del Sognatore, são apenas fantasmas que povoam um castelo inabitado.

Como forma de diário, a transcrição do sonhos do narrador não faz do Diario di un Sognatore uma obra sobre influência do surrealismo, como inadvertidamente poderia ser sugerido, pois como esclarece o próprio autor il mio libro è fra tutti quelli che ho scritto, il più “realistico” in quanto è la trascrizione il più possibile fedele dei miei sogni. Un vero diario[..]

O elemento onírico tem um valor na narrativa de Luigi Malerba, enquanto é propulsor de assimetrias, dissonâncias, descontinuidades rítmicas na narrativa em relação ao cânone. Essas categorias em si não permitem que o texto do escritor italiano venha a ser entendido enquanto uma vertente do Surrealismo. O próprio autor se pronunciou sobre tal fato:

 

A me è capitato addiritura di sognare dei racconti già quasi strutturati e li ho poi trasformati in racconti scritti, ma è sbagliato pensare come pensavano i surrealisti che i sogni siano sempre una straordinaria esperienza interiore e che di per sè sia arte ogni scrittura ispirata ai sogni.

 

Podemos observar dessa estrutura a personalização do narrador. Esta se realiza na insistência da primeira pessoa do discurso, que se impõe também como juiz e/ou intérprete dos próprios comportamentos oníricos transcritos. O narrador é o protagonista dos sonhos. Ele é, como salienta Friedman, o eu-testemunho, podendo desenvolver mediação entre os eventos e o destinatário (leitor), identificando-se com os fatos narrados, dos quais pode manter pouco destaque, permitido pela distância temporal entre os fatos (sonhos noturnos) e a narração deles (transcrição matinal).

O narrador/protagonista orienta a prospectiva narrativa, pois participa como personagem nos vários sonhos e também comenta os acontecimentos relativos aos sonhos e ao processo de suas descrições oníricas. A propósito da prospectiva narrativa buscamos no ensaio de Gennete a seguinte reflexão:

 

“la ‘rappresentazione’, o più esattamente l’informazione narrativa, ha i suoi gradi; il racconto può fornire al lettore maggiori o minori particolari, e in maniera più o meno diretta, e sembrare così (per riprendere una metafora spaziale corrente e pratica, a condizione di non prenderla alla lettera) a più o meno grande distanza da quel che esso racconta; può anche dosare l’informazione che esso fornisce, non più servendosi di questa specie di filtro uniforme, ma a seconda delle capacità di conoscenza di questa o quella parte beneficiaria della storia (personaggio o gruppo di personaggi), di cui adotterà (o fingerà d’adottare) quello che generalmente è chiamato da ‘visione’ o il ‘punto di vista’, dando allora impressione di adottare una prospettiva di un tipo o di un altro nei confronti della storia (per continuare la metafora spaziale). ‘Distanza’ e ‘prospettiva’, provvisoriamente chiamate edefinite così sono le due modalità essenziali della regolazione dell’informazione narrativa.

 

Dessa reflexão podemos observar que o conceito de prospectiva narrativa se refere à relação entre a quantidade de informação atribuída a simples personagens e aquela que o narrador reserva para si. Na obra Diario di un Sognatore, tudo que ocorre na narrativa é observado apenas pelo narrador/protagonista, portanto nela o focus narrativo é interno e fixo.

Se entendemos esse narrador-personagem como um navegador noturno, que, no entanto, é carente de traços particulares, e, também, que ele não é mais do que um ponto móvel no espaço, então podemos inferir que o Diário di un Sognatore é um romance de viagem.

O romance de viagem é caracterizado, segundo Bakhtin, pela concepção puramente espacial e estática da diversidade do mundo. O mundo do Diario di un Sognatore é um mundo onírico que estrutura as suas imagens a partir do mundo real. Essas imagens são apenas esboçadas, enquanto fenômeno e acontecimentos que se justapõem e/ou se sucedem.

Uma outra categoria que nos permite fazer uma leitura do romance do escritor como sendo de viagem é o tempo. Observamos que no diário noturno o tempo representado é puramente formal. Essa narrativa apresenta referências espaço-temporais que, na realidade, carecem de uma unidade consolidada da qual se possa inferir uma progressão de eventos e ações.

Dessa forma, observa-se que a indicação de um tempo histórico que o narrador nos apresenta logo no início do livro nos leva a uma falsa idéia desse tempo, pois a ênfase dessa narrativa recai sobre as diferenças e os contrastes entre o mundo real e o onírico.

Os variados sonhos possibilitam o narrador-personagem de deslocar-se no espaço - aventurar-se e participar de peripécias, tranformar-se em outras identidades. Esse aspecto peculiar na narrativa do escritor mostra e evidencia a diversidade estática do mundo por intermédio das viagens noturnas que empreende no espaço e nas sociedades, e aqui, observamos as referências a países, cidades, etnias, grupos sociais, condições específicas da vida.

BAKHTIN. Estética da criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992

BOOTH, W. C. The Rhetorich of Fiction. Chigago-London, 1983

FRIEDMAN, N. Point of view in fiction: the devolopment of a critical concept. In.: PMLA, LXX,1965

GAGLIANONE, P. Conversazione com Luigi Malerba. Elogio della finzione. Roma: Òmicron Nuova, 1998.

GENNETE, G. Figure III. Trad.: it. Torino: Einaudi, 1976

MALERBA, Luigi. Diario di un Sognatore. Torino: Einaudi, 1981

SEGRE, C. Testo letterario, interpretazione, storia: linee concettuali e categorie critiche.. IN.: Letteratura Italiana: L’interpretazione. Direzione Alberto Asor Rosa. Torino: Einaudi, 1985.