O ELO ESQUECIDO: O LATIM VULGAR

Nestor Dockhorn (UNIG, FERP,UNIFOA)

1 - INTRODUÇÃO

Todos os romanistas sabem sobejamente que as línguas românicas são o resultado da continuação do latim falado pelo povo e que esse tipo de latim obedecia a padrões diferentes dos padrões utilizados pelos grandes escritores da língua latina. Sabem, portanto, que é necessário levar em conta esse padrão que é chamado latim vulgar, porque ele é que vai explicar os padrões usados pelas línguas românicas.

Entretanto, quando se chega à prática e se buscam os étimos de vocábulos portugueses, ou mesmo de outras línguas românicas, verificamos que os nossos etimologistas parece que se acanham em recorrer a formas do latim vulgar e indicam como origem formas do latim clássico, que estão longe de dar explicação satisfatória para o problema.

Podemos apontar alguns exemplos, colhidos em grandes dicionários.

1 - CUNHA (1997) : burro, do latim burrus;

ave, do latim avis -is;

cor, do latim colorem;

éolo, do latim aeolus -i;

idade, do latim aetas -tatis;

lobo, do latim lupus -i;

ouro, do latim aurum -i;

pouco, do latim paucus -a -um;

temor, do latim timor -oris.

O autor, em geral, aponta a forma do nominativo singular clássico, seguida da desinência do genitivo. Raramente indica a forma do acusativo singular clássico, mas não costuma apontar a forma do latim vulgar, resultante dos processos fonológicos e morfológicos ocorridos.

2 - FERREIRA(15ª imp): ave, do latim ave

cor, do latim colore;

Éolo, do latim Aeolu;

idade, do latim aevitate;

lobo, do latim lupu;

ouro, do latim auru;

pouco, do latim paucu;

temor, do latim timore.

O autor sai um pouco das formas do latim clássico, mas ainda não chega perfeitamente ao latim vulgar. Como outros autores, ainda não faz a necessária distinção entre o gráfico e o fonológico.

3 - NASCENTES(1966): ave, do latim ave;

cor, do latim colore;

idade, do latim aevitate;

lobo, do latim lupu;

ouro, do latim auru;

pouco, do latim paucu;

temor, do latim timore.

Aqui também já ocorrre maior aproximação com as formas do latim vulgar, mas ainda não chega ao ponto certo.

4 - LAROUSSE (1995): ave, do latim avis

cor, do latim color

idade, do latim aetas, aetatis

lobo, do latim lupus

ouro, do latim aurum

pouco, do latim paucus

temor, do latim timor.

A indicação do nominativo singular do latim clássico como forma lexicogênica torna mais difícil a explicação.

5 - MACHADO (1967): ave, do latim ave-

burro, do latim burru-

cor, do latim colore-

Éolo, do grego Aiolos, pelo latim Aeolu-

idade, do latim aetate-

ouro, do latim auru-

pouco, do latim paucu-

temor, do latim timore-.

Machado foi cauteloso ao indicar por hífen o apagamento do [m] final, mas não indicou outros processos fonológicos do latim vulgar.

6 - PICOCHE (1992): couleur, colorem, acc. de color

loup, latin lupus

or, latin aurum

peu, latin paucus

âge, latin aetatem.

Observa-se que, nesses vários autores, não há uma linha uniforme nem coerente nessas explicações etimológicas, nem a devida consideração do latim vulgar. Impõe-se, portanto, realizar algum esforço nesse sentido.

Essas observações e a docência de Lingüística Românica levaram o autor a pesquisar o latim vulgar de forma mais prática. É isso que veremos abaixo.

 

2 - TENTATIVA DE ESTUDO PRÁTICO DO LATIM VULGAR

O autor está trabalhando numa pesquisa que apresenta de forma prática a evolução ocorrida desde o latim ao português. Veremos como está sendo dividida e estruturada a pesquisa e quais são os problemas que estão sendo enfrentados.

 

2.1 - Divisão e estruturação da pesquisa

Devem ser selecionados seis textos (que poderão ser, posteriormente, ampliados para 12).Cada texto será dividido em sentenças. Cada sentença deverá aparecer formulada dentro de quatro padrões.

a) Inicialmente, a sentença deve aparece formulada e grafada dentro dos padrões clássicos. Havendo necessidade, algum termo pode ser apresentado também dentro do Alfabeto Fonético Internacional.

b) Num segundo passo, a sentença será traduzida para a forma provável de latim vulgar. Não poderá ser grafada dentro dos padrões clássicos, porque o latim vulgar não tinha grafia especial. Impõe-se aí o uso de alguma transcrição fonética. O autor prefere o Alfabeto Fonético Internacional. Na presente redação, devido a problemas práticos de digitação, será empregado o recurso de representar o o aberto por [ó] e o e aberto por [é]. Também será empregado o símbolo [j] para representar o som consonantal do primeiro segmento de . O iod será simbolizado por [y]. O uau será simbolizado por [w].

c) Num terceiro passo, a sentença será formulada dentro dos padrões do português medieval. Em face da existência de duas fases de português medieval, o autor preferiu optar pelos padrões gráficos, fonológicos, morfológicos, sintáticos e léxicos que aparecem na Demanda do Santo Graal.

d) Num quarto passo, a sentença é formulada dentro de padrões do registro formal do Brasil atual, com a grafia oficial.

Na presente comunicação, serão apresentados somente o primeiro e o segundo passos, pela relação com o latim vulgar.

 

2.2 - Problemas e dificuldades que ocorrem na passagem para o latim vulgar

Os problemas que aparecem à medida que a pesquisa vai avançando são de ordem fonológica, morfológica, sintática e léxica.

 

2.2.1 - Problemas de ordem fonológica

Devem ser levados em consideração os seguintes processos fonológicos que tendem a aparecer, em ditongos e vogais:

a) Os ditongos decrescentes [ay], [óy], [aw] tendem à monotongação, passando a [é], [e], [o].

b) Nos ditongos crescentes [ya] (e similares) e [wa] (e similares) o glide se consonantiza, passando a [ja] e [va].

c) A vogal [u] breve passa a [o].

d) A vogal [i] breve passa a [e].

e) A vogal [e] (breve) mantém som aberto.

f) A vogal [o] (breve) mantém som aberto.

O pesquisador deve ficar muito atento para distinguir vogais longas e breves por natureza, não as confundindo com aquelas que os dicionários latinos marcam como longas por posição.

Devem ser levados em conta os processos fonológicos que atingem as consoantes, como os seguintes:

As velares [k] e [g] passam a [ky] e [gy] diante de vogais anteriores.

O apêndice [w] das velares [kw], [gw] se apaga diante de [o] e [u].

O [b] intervocálico passa a [v].

A aspiração desaparece.

O [m] e [n] finais se apagam.

O [ti], seguido de [a]¸ passa a [tsi].

Os grupos iniciais [sp], [st], [sk] recebem um [i/e] protético.

Na presente comunicação não podem ser tratados todos os detalhes dos processos fonológicos. Mas convém lembrar ainda dois processos de ordem fonológica: a) o deslocamento do acento tônico; b) o apagamento de vogais átonas.

 

2.2.2 - Problemas de ordem morfológica

Os processos morfológicos atingem nomes, pronomes e verbos. Observar o seguinte:

a) Os nomes sofrem um processo redutor das declinações, chegando, praticamente, a formar três classes, apresentando três terminações: -a/-as, -o/os, e/es.

b) Os pronomes devem ser estudados caso por caso.

c) A conjugação dos verbos é profundamente afetada, devendo o pesquisador buscar com atenção as informações nos autores especializados. Deve-se dar atenção especial aos seguintes casos: ao futuro do infectum, ao imperfeito do subjuntivo e à voz passiva.

Convém colocar entre os processos morfológicos a criação do artigo, tanto definido, como indefinido. O ponto de vista do autor é que o artigo remonta ao latim vulgar.

Deve-se observar com atenção a expressão das estruturas que exprimem posse, companhia, instrumento, em que o emprego de preposições se torna necessário para substituir os casos desaparecidos. O uso das preposições transcende as expressões de localizações.

 

2.2.3 - Processos sintáticos

Ponto importante na sintaxe de orações que exprimem o conteúdo de percepção, declaração, julgamento é a introdução de um conectivo especial, em contraposição ao latim clássico, que usava o acusativo com infinitivo. O conectivo aparece na forma de quia ou quod. A forma quia evolui para [kwa] ou para [kwi], que passam a [ka] ou [ke].

 

2.2.4 - Processos lexicais

O latim vulgar apresenta grande diferenciação lexical em relação ao latim clássico. Essas variações deverão ser examinadas cuidadosamente. Deverá ser levada em conta o aspecto regional. Na pesquisa em curso, será dada preferência ao espaço ibérico e, havendo razão especial, ao espaço lusitano.

Conforme o caso, poderão ser apresentadas variações colocadas graficamente em linhas diferentes.

 

3 - EXEMPLIFICAÇÃO DE POSSÍVEIS RESULTADOS

Como o autor produziu e a UNIG editou recentemente a obra didática Sermo Latinus Facilis: Gradus Primus, é possível aproveitar os textos que nele aparecem. Com efeito, nesse compêndio aparece, em cada lição, uma Lectio Breuis, que é um pequeno texto produzido pelo autor.

Será dada agora uma demonstração de como poderia ser feito o trabalho de transposição de um padrão clássico - embora muito simples - para um padrão vulgar. As sentenças serão numeradas; a letra a) indica o padrão clássico; a letra b) indica o padrão vulgar.

1a) - DISCIPVLI SVNT IN SCHOLA.

1b) - [´ellos des´kepolos ´son en ´ella is´kóla]

[is´tan]

2a) - MAGISTRA INTRAT.

2b) - [´ella ma´gestra ´entra]

3a) - MAGISTRA DISCIPVLOS SALVTAT.

3b) - [´ella ma´gestra sa´luta ´ellos des´kepolos]

4a) - MAGISTRA DICIT: SALVETE, DISCIPVLI!

4b) - [´ella ma´gestra ´dike sal´vete des´kepolos]

5a) - MAGISTRA SENTENTIAS SCRIBIT.

5b) - [´ella ma´gestra is´krive sen´tentsias]

........................................................................

6a) - MAGISTRA SVRGIT ET DICIT: VALETE, DISCIPVLI!

6b) - [´ella ma´gestra ´sorgye et ´dike va´lete des´kepolos]

..................................................................

7a) - MAGISTRA EXIT.

7b) - [´ella ma´gestra ´sale]

 

4 - CONCLUSÃO

Nesta comunicação, foi apresentada uma pesquisa que o autor está realizando sobre a evolução da língua portuguesa. A pesquisa pretende ser precipuamente prática e exemplificativa, embora tenha de caminhar por terrenos teóricos.

Como a pesquisa apresenta quatro passos, na presente exposição só foi possível exemplificar os dois primeiros passos, que são sentenças em padrão clássico e sua possível evolução para o latim vulgar.

O autor pensa que os resultados da pesquisa poderão trazer vantagens para o nosso estudante de Letras para a aprendizagem da língua latina e para o conhecimento dos processos diacrônicos que interferiram na formação do português. O estudioso também poderá se interrogar se processos semelhantes ainda estão atuando na contínua evolução de nosso idioma.

 

5 - BIBLIOGRAFIA

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1997.

DOCKHORN, Nestor. Sermo latinus facilis: gradus primus. Nova Iguaçu : UNIG, 1999.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1. ed. 15. imp. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, [s/d].

GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL. [s/l] : Nova Cultural, 1998.

ILARI, Rodolfo. Lingüística românica. São Paulo: Ática, 1992.

LAUSBERG, Heinrich. Lingüística románica. Trad. J. Pérez Riesco y E. Pascual Rodríguez.. Madrid : Gredos, 1970. 2 v.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico resumido. [s/l] : Instituto Nacional do Livro,1966.

PICOCHE, Jacqueline. Dictionnaire étymologique du français. Paris : Le Robert, 1992.

VÄÄNÄNEN, Veiko. Introducción al latín vulgar. Trad. Manuel Carrión. Madrid : Gredos,1967.