O JOGO DAS MÁSCARAS EM PEDREIRA DAS ALMAS DE JORGE ANDRADE
Ana Tereza de Andrade (UERJ)
Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)
Encontramos cada vez mais recorrências de temas míticos presentes na dramaturgia contemporânea. Ao que parece, o mito de Antígona prolifera na realidade latino-americana, pois nos deparamos com várias reescrituras desse mito. No Brasil podemos citar Antígone América de Carlos Henrique Escobar e Pedreira das almas de Jorge Andrade.
Em minha pesquisa, desenvolvida sob orientação da professora doutora Carlinda Fragale Pate Nuñez, dediquei-me a desvendar os caminhos que o dramaturgo brasileiro, Jorge Andrade, trilhou para compor uma obra que consegue conciliar clássico e moderno, constituindo uma obra de arte que tem muito a nos oferecer.
Jorge Andrade tira proveito da função da máscara no teatro grego clássico, onde ela desempenha papel fundamental, não só como artefato, mas como signo estruturador da tragédia. Podemos enumerar, entre as funções da máscara na cena clássica: a demarcação de diferenças entre protagonistas e coreutas; a diferenciação entre classes sociais e políticas, religiões, mitos e opções estéticas; consumar o fator de identificação no evento dramático, em que implicam vários códigos semiológicos da cultura, como o código cromático, símbolos, estruturas do imaginário, entre outros.
Na realização do mito de Antígona por Jorge Andrade percebemos que a máscara não aparece como um objeto. São exploradas as propriedades antropológicas desse artefato, portanto, a presença física existe, na expressão que se imprime tanto no texto quanto no corpo do ator.
Tais propriedades antropológicas se manifestam, num primeiro nível, desestabilizando a realidade no que ela tem de corriqueiro, cotidiano, estável. Isto está relacionado com as idéias de VIDA e MORTE, gerenciadoras do programa de ação da peça (e da tragédia de um modo geral), a dialetização da vida e da morte no impiedoso sistema colonial brasileiro.
A peça está centrada na opção de toda a população da cidade: não ampliar seus recursos, mas ampliar o número de lápides no cemitério. A função da máscara nesse diálogo é desestabilizar, impactar, colocar em crise, gerar uma atitude crítica.
Outra propriedade antropológica da máscara é projetar a problemática da vida brasileira num tempo que ultrapassa as fronteiras da história, de forma que evidencia o fato de os problemas da vida brasileira colonial persistirem, a despeito da independência política, a República.
Como exemplo, podemos citar: o modelo econômico sociopático; a urbanização favelizante; a escravização dissimulada em subempregos e formação precária da população; abuso de poder; ideal de desenvolvimento transplantado de países desenvolvidos.
Nossos problemas, portanto, se constroem na maneira como as máscaras, mesmo ausentes como artefatos, comparecem, multiplicando-se ou superpondo-se na composição das personagens brasileiras que reatualizam as figuras gregas. Além disso, damos destaque à forma de recontextualização do mito de Antígona e quais as matrizes artísticas que viabilizam ou estão envolvidas na operação dramatúrgica de Pedreira das Almas.
A importância desse trabalho é dimensionar a questão da “morte da tragédia”. Com ele, podemos constatar a fórmula estética do teatro trágico como base de concepção e realização da peça de Jorge Andrade.
Pretendemos, então, fazer uma leitura profunda das peças em questão, Antígona de Sófocles e Pedreira das almas de Jorge Andrade, tentando compreender as propriedades da máscara para além de sua função cenográfica, mas surpreendida na ambientação da peça, na construção das personagens brasileiras e no clímax da trama, além de explorar as relações com o teatro épico e o expressionismo alemão.
Edificamos, pois, uma equação comparativa, com base na função da máscara, que parte de sua condição de artefato teatral para funcionar como meio operacional que executa o arcabouço antropológico das personagens brasileiras. Para tanto, partiu-se de teorias nas áreas de antropologia cultural, história das religiões e história da arte e do teatro.
O resultado foi uma ampla leitura, em vários níveis, do texto teatral. Daí se verifica o trabalho de desconstrução da máscara tradicional com o propósito de articular a mesma máscara, que funciona como recurso para a montagem de um espetáculo expressionista, o que resulta na recuperação de Jorge Andrade como uma contribuição importante para o teatro nacional, uma vez que este foi o introdutor das prerrogativas épicas do teatro, conjugadas a uma estética visual expressionista, no Brasil.
Por meio do mapeamento das personagens, constatamos o processo de acumulação e/ou distribuição dos papéis tradicionais da peça sofocliana a serviço do novo enredo. Semiologicamente, as personagens se distribuem em três grupos: as codificadas, as subcodificadas e a super codificada. Notemos que Vasconcelos e Pe. Gonçalo são representantes de poderes, o divino e o consuetudinário, e se apresentam em personagens masculinas, marginalizadas pela predominância feminina na peça. A única personagem super codificada, contrariando as expectativas, é Gabriel. Ele corresponde a Hêmon, mas sobrevive, e será a redenção da cidade. Ironicamente, é uma personagem masculina dentro do universo feminino, o único que faz sua opção política e rompe com o esquema de tradição e religiosidade. Gabriel transita conscientemente do desgastado ciclo da mineração para a fase da exploração cafeeira, fazendo, junto com o Brasil, o percurso do eixo político-esconômico de Minas Gerais para São Paulo.
Há a utilização da máscara com uma concepção épica, ou seja, o teatro épico está presente, imprimindo o distanciamento, fundamental para se estabelecer a crítica. Assim, os saltos temporais, as canções e a atuação dos coros exercem a função crítica, comentando e pontuando a ação dramática.
O ponto máximo de aproveitamento da máscara é, também, o clímax da peça. Numa cena de muita ação e pouco texto, o dramaturgo constrói um quadro expressionista, em que as mulheres do Coro feminino se metamorfoseiam em fiuras fantasmagóricas, bruxas, e pressionam os soldados e Vasconcelos. Nesse momento, até o cenário se transforma, dilatando-se a igreja, templo onde Urbana sepultou o filho. Estes ficam tão assustados com a situação (em que utilizar a força é inútil), que fogem amedrontados. Vasconcelos, vendo-se obrigado a enfrentar a cena dos corpos que se encontram em decomposição por sua culpa, não consegue, e também foge.
A expressividade que se impõe nessa cena é muito forte, havendo movimentação desde o cenário até os atores, de modo que tudo contribui para o clima bruxuleante. Isso prova a habilidade com que o dramaturgo trabalha as várias formas de linguagem, podendo o épico conviver perfeitamente com o expressionismo.
O que verificamos ao final desse trabalho é a possibilidade de o teatro brasileiro de vanguarda se comunicar com o teatro grego clássico e o teatro épico alemão, trazendo para a encenação o potencial visual que o expressionismo oferece, pelo fato de a vida brasileira, no momento em que Jorge Andrade escreveu a peça, passar por crises e tensões pelas quais a Europa já havia passado. Assim, o Brasil recolhe, de países e culturas mais antigos, saídas para lidar com injustiças sociais e desmandos políticos, adaptando-as a sua cultura.