O MUNDO ANTIGO COMO “ENÉRGEIA”
DA LITERATURA PÓS-CLÁSSICA
Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)
A cultura pós-clássica está indefectivelmente associada aos Gregos, pela qualidade da literatura, da arte e das instituições que a civilização helênica legou à posteridade, herança que parece estruturada no poder comunicativo dos mitos. Vale dizer que o mundo antigo tem no mito a sua hipóstase, seu par metonímico por excelência, e, por que assim dizer, sua matriz energética.
Prova disso é o fato de que os Gregos desenvolveram, paralelamente à sua produção literária e artística, uma criteriosa crítica, centrada na avaliação do papel e das funções dos mitos, de acordo com o que deles faziam seus articuladores.
Heráclito, os pitagóricos, os sofistas, os teatrólogos (destacando-se dentre eles Aristófanes), Platão e Aristóteles, entre outros, teceram considerações teórico-críticas sobre a estética grega, tendo o último deles chegado à redução máxima da máquina ficcional, através da promoção do mito à categoria epistemológica: ao inclui-lo no trinômio mythos - mímesis - kátharsis, explicita a própria dinâmica do fato poético.
Se Aristóteles se permitiu reconotar o mito, destituindo-o do significado de roteiro sagrado que tem como protagonistas a Entes Sobrenaturais, deuses e heróis tradicionais, para investi-lo do valor de categoria funcional, a serviço do processo mimético e do prazer estético, todos os demais filósofos e artistas manipularam o mito com a mesma liberdade, segundo suas preocupações particulares e convicções próprias. Tratou-se sempre de discutir os mitos segundo as aspirações filosóficas, religiosas, políticas e artísticas que cada um de seus usuários ambicionavam.
Aí se encontra uma das propriedades fundamentais da matéria mítica, que transporta para a imagem pós-clássica do mundo antigo o que ele carrega de complexidade e riqueza conceitual: ela surge, simultaneamente como instrumento de pensamento e objeto de análise. É através dessa condição multívoca que se manifesta a enérgeia do mito, seja no seu ambiente grego de origem, seja na sua prevalência, como um dos assuntos mais polêmicos, no âmbito das Ciências Sociais, ainda nos dias atuais.
De fato, o mito surge como matéria de estudo, no fim do séc. XVIII, associado ao idealismo alemão, como evento grandioso que irrompe no seio da alma popular; força que atua coletivamente e age inconscientemente; algo que transcende as forças do poeta.
No contexto do Pré-Romantismo alemão e das pesquisas filológico-literárias, Jacob Grimm propôs um entendimento de mito baseado na noção de narrativa não atestada, o que implica certa desvalorização, por exclui-lo de historicidade.
Este descredenciamento do mito se agudiza, no contexto do cientificismo novecentista, quando se desenvolve o consenso de que o mito melhor se definira como um elemento da religião, ou uma fase determinada de sua evolução, contendo uma cosmovisão primitiva. A percepção novecentista se mostra especialmente defeituosa, a partir do inespecífico sentido de “primitivo”, que tanto pode significar “original”, “simples”, “não-elaborado”, quanto “rudimentar, insipiente, prematura”. A imprecisão reduziria o conhecimento mítico a uma protofilosofia e a um saber insuficiente, no mínimo incompleto. As tentativas de salvar o mito de apreciação tão desqualificadora encontraram uma boa saída, ao determinarem o pensamento mítico como fase preliminar ao desenvolvimento da ciência e da filosofia - interpretação que, de qualquer forma, ainda o mantinha no subsolo dos templos reverenciados pela cultura tecnocrática do ocidente.
O leque de desdobramentos em torno da questão leva, já no séc. XIX, às múltiplas teorias do mito do séc. XX. Do elenco de estudos sobre o assunto, pelo menos cinco visões se destacam, tanto pelo prestígio de que gozam como pesquisas rigorosas, quanto pela aplicabilidade, no exercício crítico. São elas: (1) a proposta filosófica de Ernst Cassirer; (2) a leitura antropológico-estruturalista de Lévi-Strauss; (3) a visão semiológica de Roland Barthes; (4) a interpretação psicanalítica, e (5) o estudo de Mircea Eliade sobre a história das religiões. Tomadas em conjunto ou separadamente, é a energia de uma linguagem arcaica que se reabre, para, com ela, se exercerem a hermenêutica e a exegese mais contemporâneas.
Essas cinco visões compreendem diferentes abordagens que apontam para dimensões particulares do mito. O trânsito pelas idéias desenvolvidas em cada uma destas perspectivas oferece valiosos instrumentos de prospecção do discurso mítico. Apesar de orientarem-se por objetivos peculiares, é inegável que existem zonas de conjunção entre as diversas formas de abordagem do mito. Um denominador comum se evidencia, entretanto, atestando a sinergia de tais estudos: o mito é uma construção do imaginário que não pode ser tratada por um campo exclusivo das ciências humanas.
Dito por outras palavras: o mito, que propicia uma pluralidade de leituras, ensina que nenhuma delas se basta para encobrir a complexidade dos fenômenos relativos às suas significações, pois se trata de descortinar figurações do imaginário, em linguagem poética.
A multidisciplinaridade imposta pelo estudo do mito sorri perante as parcelizações universitárias, que mutilam a complexidade dos problemas propostas pelas narrativas míticas.
Outro aspecto importante que decorre dessa energia própria do mundo antigo, concentrado no seu mais denso representante: o estudo do mito requer uma combinatória peculiar de métodos, aplicável à mitologia grega ou germânica, aos mitos hindus ou judaico-cristãos, à confusa profusão de teogonias e cosmogonias, histórias de heróis, metamorfoses e escatologias, todas elas narrativas que, ao relatarem como algo passou a existir, passam a exercer propriedades auto-generativas. E por aí se insinua outra lei do discurso em questão: repetir-se faz parte da efabulação do mito, do mítico e do mitificável, tanto quanto da demitificação, da paródia, da reinvenção dos mitos.
Deve-se levar em conta o fato de que os próprios Gregos não tinham uma concepção definitiva de seus mitos. Não existia uma concepção oficial dos mitos. As linhas mestras do enredo permaneciam constantes, mas os móbiles da ação se encontravam à mercê do poeta ou do sacerdote que os quisessem reformular.
Os mitos não ensejavam um tratamento respeitoso e restritivo do seu conteúdo. Ao contrário, incitavam à liberdade criadora, o que se comprova através da obra dos poetas que, desinibidamente, se apropriavam dos mitos para perscrutar-lhes as possibilidades de reordenação de seus significantes, da língua poética e do gênero.
Isto faz com que se perceba claramente que o mito, na tradição literária do ocidente, vem funcionando, a exemplo que os gregos fizeram, como um corpus de análise, de exercício lógico, um verdadeiro laboratório onde se experimentam situações tidas como cruciais, no momento em que a discursividade mítica é requisitada.
Os mitos literários permanecem nesta linha de diagnose da experiência humana, no trânsito da história. Seguindo os veios temáticos abertos ao longo da história da literatura, o que se patenteia é que ela encontrou na reexperimentação de sua própria tradição (clássica e neoclássica) um modus operandi fecundo. O movimento de retorno às fontes impresso no repertório da literatura mundial é uma forma clara do tributo pago aos gregos pela extensão e qualidade imagística do patrimônio mitológico que nos legaram.
Além disso: os autores voltam tão franca e assiduamente aos mitos clássicos por dois outros motivos. Em primeiro lugar, porque o mito se oferece como material cuja reformulação é absolutamente livre e franqueada, segundo as novas circunstâncias políticas e sociais em que o discurso é produzido. Em segundo lugar, emancipando-se da necessidade de reproduzir o mundo contemporâneo, o artista pode objetivar e universalizar descomprometidamente os aspectos da vida que ele seleciona, através de um mito pré-existente.
A atração carismática que os mitos exercem sobre os artistas vem do fato de que mitos são permanentes. Eles lidam com problemas que não mudam, porque o próprio homem não mudou muito. Eles lidam com amor, morte, poder, sexualidade, liberdade, transcendência.
Em suma, o mito persevera como relato poético das mais emergenciais contingências humanas, lidando com valores, motivos, atitudes, que manifestam o caráter bizarro e complexo da vida humana.
É o que se vê nas reatualizações planetárias dos mitos antigos.
O mundo antigo, investido desta energia auto-significativa contida em seus mitos, se torna, ele próprio, matéria essencialmente criativa, mimética, literária. Geradora de realidades auto-referencializadas, gera narrativas verossímeis, ainda que ambientando a máscara trágica de Antígona na paisagem montanhosa de Minas Gerias, como o fez Jorge Andrade; projetando a máscara cômica, no sertão nordestino, como o fez Suassuna; ou despindo Paris de seu charme secular, como o fez Huysmans.