A SÁTIRA CLÁSSICA ANTIGA

E, DENTRE OUTROS, MACHADO DE ASSIS

Amós Coêlho da Silva (UERJ/ABF/CiFEFiL)

Os séculos XIX e XX têm raízes profundas no mundo clássico antigo. Na literatura do Brasil, temos o excelente trabalho crítico de Enylton J. de Sá Rego, intitulado O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a Sátira e a Tradição Luciânica, analisando o “tartamudear” narrativo de Machado de Assis (1839-1908). O estilo satírico dos mestres romanos, tanto século I d.C. como Sêneca e Petrônio, quanto do século II d.C. como o poeta grego Luciano de Samósata, está implícito, mas uma leitura mais atenta o demonstraria explícito, como acontece com um repuxo, que lança inesgotavelmente água de uma fonte mágica inextinguível.

Quintiliano (I d.C.), De Institutione Oratoria, X,1, atribuiu a criação da sátira aos latinos. No entanto, a sua constituição como gênero literário se deve, em influência, a muitas fontes gregas, além das latinas. O elemento primordial da sátira, não há dúvida, está na Satura lanx, a bandeja das primícias, uma honra à deusa Ceres (donde ce­real em português), divindade da sementeira, em latim satio; a cerimônia consistia em ofertar, em gratidão à satisfação ou ao estar saturado (em latim se diz satis e satur, daí satira/satura), uma bandeja com os primeiros frutos colhidos à deusa Ceres. Em 364 a.C., Tito Lívio (séc. I a.C.) nos relata que o Senado tinha importado da Etrúria os ludiones ou histriones, dançarinos, a fim de apaziguar o ânimo divino e arrefecer uma peste que assolava, então, o povo romano. Surpresos e deleitados com os movi­mentos de dança e gracejos indecorosos, adotaram a novidade. A fescennina licentia, a permissividade da cidade etrusca Fescênia, se consagrou através das Confrarias dos Irmãos Arvais (de arua, que significa os campos lavrados) e Sálios, cf. Varrão, De LL,V,85: "Salii ab salitando", “Sálios provém de salitare”, com os seus movimentos rápidos e vivos; donde o nome da Confraria: os Sálios (note-se que saltare, um iterativo intensivo antigo, foi superado por salire; salitare é um hápax legómenon de Varrão). Portanto, ficou disseminado o valor mágico dessa festividade das colheitas numa forma poética, consagrada com versos satúrnios. Suetônio, apud Tassilo O. Spalding, registrou a disseminação da irreverência fescenina nas Carmina Triumphalia dos soldados de César:

Gallias Caesar subegit, Nicomedes Caesarem.

Ecce Caesar nunc triumphat qui subegit Gallias.

Nicomedes non triumphat, qui subegit Caesarem.

Tradução (todas as traduções são de nossa responsabilidade):

César submeteu as Gálias, Nicomedes, a César.

Eis que agora César triunfa, porque submeteu as Gálias.

Mas Nicomedes não triunfa, embora tenha submetido a César.

A atitude grotesca e simplória do povo latino se depreende até da própria antroponímia. Seja na ordenação numérica dos filhos, seja num outro indicativo, por vezes, ridículo. Assim, herdamos Tércio, Otávio de Tertius e Octauius; ou seja, o terceiro ou o oitavo filho; se a pessoa nascesse de manhã, do latim mane, chamar-se-ia Manius; se no mês de março, em português Márcio, do adjetivo Martius, do deus da guerra Mars, Martis; ou, então, um aspecto caricatural como o desenho da fava, lentilha ou grão-de-bico, como, respectivamente, se apresenta a fisionomia de Fabius, Lentulus e Cicero.

Dada a convivência também com as fabulae atellanae, não é descartável a presença delas quanto à personagem tipo, tão do gosto de Plauto. Nas comédias atelanas, a configuração do ridículo se concentra na máscara, como o Bucco, o estúpido, inflatis buccis, de grandes bochechas. O elemento satírico se caracteriza desde cedo pelo exagero do ridículo, manifesto no arremedo ou citação parodística, trocadilho, miscelânea não só de assuntos como de recursos formais, isto é, a expressão prosimétrica: hibridismo de prosa e verso. Influência da comédia da Grécia também se torna presente na sátira latina; porém, não há nenhuma ligação específica com o Drama Satírico do teatro helênico, já que o elemento satírico prende-se, no caso do teatro grego, ao ser mitológico Sátiro (do grego Sátyros), enquanto na latina satura ou satira a relação está com os vernáculos satis e satur. Evidentemente, o Drama Satírico reúne o grotesco e o sério, mas ele é essencial­mente uma tragédia sem tensão, descontraída... É que sua temática é a mesma da tragédia, mas travestida de malícia, coisa peculiar aos Sátiros, antigos companheiros do deus do teatro, Baco!

Horácio (65 a 8 a.C.), na Ep. II,1,146, acusa esses opprobria rustica, ofensas rústicas, de despertar o ódio e indignação per honestas domus impune (149-50), pelas honestas casas impune­mente. Até que graue uirus / Munditiae pepulere (158-59), as coisas elegantes expulsassem a doentia obscenidade. O poeta venu­sino demarca para depois das Guerras Púnicas (circa 140 a.C.) o fato de Roma passar a apreciar as belas artes helênicas. Mesmo Lucílio (séc. II a.C.), que, para o autor de Sermones, é o marco inicial do gênero literário satírico, imitava em demasia o cáustico ataque dos comediógrafos mais contundentes da Grécia, principalmente Aristófanes. E o que é mais grave sem o labor do verso cuidado, conforme Sát. I,4,1-13. Nesta passagem está o fundamento de nossa crença numa influência da Comédia Antiga, apesar da restrição horaciana à lima de Lucílio.

A constituição da sátira como gênero literário vai ser dupla: a) um gênero moralizante, com o sentimento de reformar o mundo, isto é, não é apenas um "Castigat ridendo mores", de Jean de Santeuil (1630-1697), pois o seu objetivo é restaurar o bom senso, a fim de melhorar o ser social e b) concebe-se uma sátira para apenas provocar o riso, a partir da gozação, da ironia, da raiva provocada, trazendo à tona o que está sob a máscara da hipocrisia... Observa-se o sério a partir do complexo simbolismo da máscara: daí a paródia, a caricatura, a careta e a macaquice, ingredientes do grotesco. Não raro o grotesco deriva em melancólico; é que a expressão do humor destrutivo, quando presente no grotesco, nos opõe à realidade do mundo circunscrito na esfera da perfeição totalitária e, nessa posição solitária, nos tornamos sombrios.

Pertence ao item a, por assim dizer, o exemplar poeta Horácio, que, estribado nos ensinamentos do pai, propala como se deveria comportar na vida. Numa passagem de sua obra, ele compara expressivamente a sordidez do avarento já tão rico, mas insaciável, à significação do simbolismo do mito de Tântalo: Sordidus ac diues, populi contemnere uoces / Sic solitus: "Populus me sibilat; at mihi plaudo / Ipse domi, simul ac nummos contemplor in arca". / Tantalus a labris sitiens fugientia captat / Flumina... Quid rides? mutato nomine de te / Fabula narratur. (65-70) // Tradução: Rico, mas de uma avareza sórdida, acostumou-se a desprezar / Os rumores do povo, quando só (diz) assim: "O povo me apupa; mas, quando comigo mesmo, / em casa, eu mesmo me aplaudo enquanto contemplo as moedas na arca" / É Tântalo sedento que tenta beber a água / Que foge dos lábios... De que estás rindo? é a ti que se refere a história, / Apenas com o nome mudado. O caráter exemplar da história está contido na pergunta do grande vate romano: De que ris? Mudado o nome, a narrativa fala de ti. Poeticamente rico é o discurso de Horácio. Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido... sempre distanciado de concretizar a posse, o que é próprio da natureza humana. O vento tange para longe o cacho de uva quase alcançado. A água é insuficiente para saciar a sede, pois escoa entre os dedos ávidos. Assim as loucuras humanas são dissecadas sob o bisturi epicurista de um poeta satírico modelar. Imitations of Horace, de Alexander Pope (1688-1744) é um caso dentre muitos outros interesses da obra horaciana de que o Mundo Ocidental dispõe. Poderíamos alongar a relação de poetas moralistas, cuja escritura é declaradamente didática, com Fedro (liberto de Augusto, séc. I a.C.), que inspirou La Fontaine e, hodiernamente, na Literatura Brasileira, ainda podemos enumerar Monteiro Lobato, Millôr Fernandes... Pérsio (início do séc. I d.C.) integra o quadro uerae gloriae, de verdadeira glória, mesmo uno libro, com um único livro, como o afirma Quintiliano(X,1,94). O cunho moralista de sua sátira despertou estudos como o de C. Surnier, Le rôle des satires de Perse dans la développment du néo-stoïcisme; Marcial (I d.C.) seguiu pegadas de Catulo. Elegeu, aliás, o epigrama como único caminho poético. Etimologicamente epigrama (de epí-, sobre e gramma, escrita, inscrição) são quaisquer inscrições em túmulos, monumentos e diversos objetos, em verso ou prosa; compõe também material de estudo de uma disciplina denominada epigrafia. Tornou-se, além disso, um poema curto de temas variados, ou seja, uma satura lanx. Juvenal (I d.C.), coetâneo de Marcial, segue o caminho aberto por Horácio sempre com hexâmetros datílicos. São dezesseis poemas sob o título de Sátiras, afinal Quid Romae faciam? Mentiri nescio, Que hei de fazer em Roma? Não sei mentir...(I,3,41)

Uma outra linha satírica, como já se esboçou, tem sua origem em Marco Terêncio Varrão (116 a 27 a.C.) com Saturae Menippeae: o adjetivo menipéia provém de Menipo, filósofo da escola dos cínicos, a qual desprezava as convenções sociais e as riquezas, obedecendo exclusivamente às leis da natureza. Parece que a etimologia de cínico se prende ‘kýon’, cão, um possível epíteto de Diógenes, integrante da escola cínica de comportamento extravagante. Menipo de Gadara viveu no século III a.C. e escreveu muito, mas nada nos chegou. Entretanto Varrão o assimilou e nos dá uma idéia dos escritos daquele filósofo através de sua obra Saturae Menippeae. Diante do estado fragmentário da obra do escritor Varrão não se têm elementos suficientes para se emitir uma análise segura. Mas nota-se o jocoso em comportamentos que contêm o carpe diem ou o collige uirgo rosas: Apressai-vos, ó meninas, a gozar a vida, até que a flor da juventude o permita: brincar, comer, amar e tomar lugar no carro de Vênus. (In Salvatore d'Onofrio, 41) Ainda é Salvatore que nos oferece a seguinte abordagem: encontramos nas sátiras de Varrão representações de cidades simbólicas, viagens imaginárias a países maravilhosos, cenas grotescas, aventuras impossíveis, que estão entre o sonho e a realidade. Tudo isso encontraremos no Apocolocynthosis de Sêneca, no Satiricon de Petrônio, nas Metamorfoses de Apuleio... Só que Salvatore concebe a sátira unicamente pelo conceito exposto no item a. O que se segue a Varrão, como deriva, não é sátira: mas não na Sátira que é atualidade, realidade, agressividade contra homens e costumes do momento histórico, ou intimidade, confissão, contemplação e representação dramática dos defeitos humanos, com a finalidade de moralizar, mas sem o pedantismo filosófico. (p. 42) Após Varrão temos, pois, Sêneca. São elementos da obra de Sêneca: a mixórdia, herança da Sa­tura lanx, não só quanto à forma prosimétrica, como quanto ao tratamento: associação do sério (imperador, morte, deificação...) como o jocoso (idiota, aboborificação...); o fantástico, ou seja, o que ocorre post mortem de Cláudio; o emprego sistemático da paródia, abundante em Sêneca, a ironia e o grotesco, um novo estilo achincalhando a figura do imperador Cláudio. Enriquecendo as características já assinaladas, Petrônio (I d.C.) introjeta a estrutura da novela, como a dos Contos Milésios, de Aristides de Mileto (II a.C.). Eram próprios dessa narrativa o tema amor e aventura, pode-se apreciar o gênero no conto da Matrona de Éfeso (Dicionário Oxford, p.139) no Satiricon de Petrônio.

São elos desta corrente, com discurso poético bem original na reescritura, renascentistas como Erasmo (1467-1536), Sir Thomas More (1480 -1535) e Miguel de Cervantes (1547-1616).

Um outro elo é O alienista, de Machado de Assis. Foi publicado em 1881, justamente dez anos depois do dicionário do Dr. Frei Domingos Vieira anotar sobre o termo alienista: ‘falta em todos os Dicionários’.. Parece-nos que o sufixo -ista, uma paródia irônica de sufixação que denota profissão, como os similares dentista, motorista. Ou seja, o alienista é aquele que trata da alienação, quer dizer, loucura. Há em outros pontos de sua obra a preocupação com a loucura como tema. Lembremo-nos de Quincas Borbas 1891) e Memórias Póstumas de Brás Cubas. No conto em foco, a busca da normalidade ou sanidade humana constitui a única perspectiva do personagem central, um médico com sólida formação científica. Tanto é assim, que, devido à sua reputação de investigador científico, foi insistentemente convidado por el-rei que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia (p.9, ed.Ática). Elegeu Itaguaí, topônimo ímpar no Brasil, apontado como etimologia duvidosa, embora se reconheça geralmente a presença dos elementos i’ta, “pedra”, e ü, “rio”, “água” O obstinado pesquisador é personagem criada por Machado de Assis, enquanto este analisa a confiança enfática de sua personagem Dr. Bacamarte nos avanços dos pressupostos científicos do final do século XIX, semelhante a dos cientistas dessa época: ocasião do nascimento do evolucionismo de Charles Darwin, positivismo de Augusto Comte, da psicanálise de Sigmund Freud e seu discípulo Carl Jung... Darwin foi processado pela Igreja, porque identificou a evolução do homem a partir do macaco e Freud escandalizou a sociedade de então, porque indicou como fonte de nossas angústias o desejo sexual reprimido. O homem angustiado se abre para o médico psicanalista e abandona o confessionário sacerdotal.

Até o casamento de Dr. Simão Bacamarte é um tubo de ensaio. Pelo fato de D. Evarista reunir condições científicas notáveis, como boa pulsação, boa vista, sono regular, boa digestão, condições fisiológicas e anatômicas - sintomas médicos de valor absoluto que garantiriam uma procriação sadia; portanto, são fatos científicos provenientes de acertadíssima escolha: a da noiva e esposa de Bacamarte. Apesar da admiração de um dos tios dele, registrado no discurso machadiano ironicamente. Parodiando a fé cientifica da sua época, aquele que se diz o cronista desses fatos pesquisados, retomou de crônicas de Itaguaí, a notícia da decepção de diagnósticos e prognósticos ginecológicos quanto à impossibilidade de D. Evarista ter filhos: D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos.(p.9) No entanto, o persistente Dr. Bacamarte ainda esperou cinco anos. Confirmada a extinção da dinastia dos Bacamartes, ainda aviou uma prescrição de regime alimentício médico para a esposa. Como a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo, Dr. Simão Bacamarte mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina.(p.9) O próprio antropônimo da personagem central é caricatural. Simão é associado etimológicamente ao simiesco: ‘simão por “macaco” resulta de se querer imitar o latim ‘simius’. O médico imitou os procedimentos positivistas em voga. Bacamarte é uma antiga arma com cano que se alarga como boca de sino, ou seja, uma arma fora de moda.

Como sempre o poder público tratando com descaso a saúde. A loucura é uma doença relegada ao esquecimento. Assim, a vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. (p. 10) Mas dada a perseverança de Simão Bacamarte, instituiu-se o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à câmara - o que constituiria subsídio para a casa dos doidos. Em outras obras machadianas, vimos como o doente mental é ridicularizado pela multidão. Neste conto, delineia a antítese da grotesca loucura face à terrível morte, conjugação dos opostos, uma característica da sátira menipéia. A certeza de que a tentativa do empenhado médico esmorecesse no respeitoso magistrado é equivocada; o Dr. Bacamarte conseguirá tratar de todos os doidos dentro da mesma casa. Mas o perseverante médico inaugurou a sua obra prima com uma frase achada no Corão (que dizia) que Maomé lhes (dos loucos) tira o juízo para que não pequem.(p.11) A ironia de Machado de Assis torna-se explícita pelo fato de o médico atribuir o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida do pontífice eminente.(p. 11) Há ironia também a respeito das ações filantrópicas do próprio Simão Bacamarte que se considera o sal da terra porque busca descobrir a cura da loucura, neste ponto, parodia o seguinte: um dito de São PauloSe eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada” (p.10) Estudou e classificou as várias manias hospedadas na Casa Verde. (p. 13)

No entanto, o conceito de demência de Simão Bacamarte não estava estabelecido. Estendeu-o além dos muros da Casa Verde. Ilustrando com exemplos da história, expôs para o seu interlocutor Crispim como a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros...(p. 17) Na verdade, os exemplos, como o de Sócrates, Pascal, Maomé, Caracala e outros, corresponderiam a casos da própria cidade de Itaguaí, mas ocultou esse pensamento. Se a voz da mídia hoje em dia é a imprensa falada e escrita, naquele tempo era a matraca. o principal agente informativo. O boticário Crispim, hipocritamente, sugeriu a divulgação dos planos do médico através da matraca, um instrumento barulhento, tocado por uma pessoa contratada para despertar a atenção do próximo sobre certas informações. Seria o meio mais digno de divulgação do novo conceito de loucura do Dr. Bacamarte. Aliás, foi por tocar a matraca, que um dos vereadores - aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, - adquiriu a fama de perfeito educador de cobras e macacos... e afirmando que o vereador nunca fizera isso, a narração segue ironicamente com depoimentos de pessoas que viram cascáveis dançando no peito do vereador(p.18) Depoimento falso, mas consolidado pela confiança do sistema de divulgação. O caso do vereador, que à primeira vista nos parece uma digressão, é nada menos que uma observação mordaz a respeito do senso comum. E o terror se instalou em Itaguaí, porque, se o prazer de um herdeiro, no caso o Costa, era distribuir o conteúdo da herança entre os amigos, ia para a Casa Verde condenado como louco; ou se uma pessoa intercedesse por este herdeiro, como a prima do Costa, alegando que o mesmo fora vítima de uma maldição de um homem sedento a quem um parente do Costa havia negado água, juízo que tem por base a opinião popular, ia também para a Casa Verde. E até mesmo D. Evarista, uma espécie de primeira dama, pois era a esposa do insigne médico e que havia se tornado a esperança do senso comum de Itaguaí, foi para a Casa Verde, porque ficou na dúvida durante vinte e quatro horas para escolher entre um colar de safira e um de granada... Quem estava seguro? Este último episódio que atestou a abnegação científica do seu honesto desempenho médico. Este seu procedimento excluiu quaisquer intuitos alheios à ciência.(p.40) Contudo, o barbeiro liderou uma revolta contra o alienista: se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?(p.28) Como o líder fosse cognominado Canjica, o movimento se denominou a revolta dos Canjicas.

Alheio ao movimento de rebelião, compenetrado em princípios científicos, o comportamento do médico tornou-se paradoxal, porque soltou todos os dementes, alegando em relatório oficial à Câmara dos Vereadores que fundamentos estatísticos apontavam os pacientes com a faculdade mental desequilibrada como normal e exemplar e, como hipóteses patalógicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto... (p.40) Em resposta, a Câmara propôs uma emenda ao § 4º.: aceitou que o alienista agasalhasse na Casa Verde quem gozasse de perfeito equilíbrio mental, com duração de um mandato de ano, sendo que, por razões de ordem pública, a Câmara poderia fechar a Casa Verde a qualquer momento e, em nenhuma hipótese, os vereadores seriam recolhidos, o que foi aprovado por quase unanimidade, pois os protestos do vereador Galvão ecoaram na assembléia. Simão Bacamarte aceitou todos os dispositivos da câmara, mas internou o vereador Galvão, diagnosticando equilíbrio mental e moderação. A câmara acolheu unanimemente o procedimento novo do alienista. As pesquisas do Dr. Simão chegaram ao máximo grau da terapêutica e o narrador indicou o entusiasmo do médico com a expressão latina Plus ultra!, muito além!. Num caso como o de modéstia, ele aplicaria uma medicação que introjetaria no paciente um sentimento oposto. O processo era gradativo: criaria o novo costume de uma casaca, mais tarde de uma bengala, depois de uma cabeleira...até, se preciso, distinções honoríficas. O caso de um poeta doente obrigou Dr. Bacamarte a correr matraca, apregoando o poeta como rival de Píndaro, uma clara paródia do poema (Ode IV, 2, 1-2) de Horácio que afirma não existir êmulo para Píndaro: Pindarum quisquis studet aemulari, / Iulle, ceratis ope Daedalea / nititur pennis, vitreo daturus / nomina ponto. // Aquele que pretende emular Píndaro / E se apóia em penas unidas com cera de Dédalo / Ó Iulo, há de dar seu nome ao brilho do espelho do mar!

A conclusão é: Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança , a tolerância, a veracidade , o vigor moral, a lealdade(p48) - enfim tudo para ser definido como um mentecapto. Constatação a partir de um cérebro bem organizado (p.42), sublinhada pela modéstia do alienista, reunião dos opostos, ou como diz o próprio médico “Reúno a teoria e a prática.” (p.48). O seu lado vaidoso se alegrou, mas o seu bom senso ficou melancólico. Como melancólico, curvou a cabeça e entrou na Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Veio a falecer dentro da Casa Verde. Os cidadão de Itaguaí efetuaram o seu enterro com muita pompa e rara solenidade.(p.48)

Num confronto entre o mundo bio-social e os nossos sonhos, fantasias, esperanças e alegrias, quantas vezes nos deparamos com a melancolia diante do imponderável. A tragédia elege a morte como solução dessas aporias, mas uma risada tirada da sátira menipéia desfigura o pavor da morte. Quanto mais o trágico criar poemas sobre a Segunda Guerra Mundial, seja em forma de filmes seja através de outros discursos, mais a imagem de Hitler se exacerba como sublime, espalhando admiradores pelas gerações futuras. No entanto, basta ver a paródia de Charles Chaplin, representando o ditador alemão num gabinete a brincar com uma grande esfera do globo terrestre, que a carranca nos parecerá ridícula. Eis uma risada iconoclasta, desvanecedora do terror: ela é a contra-indicação da tragédia, desmitificadora da morte, isto é, da auto-piedade humana.

 

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