DOS RECURSOS ESTILÍSTICOS DA PALAVRA

EM DRUMMOND

Maria Veronica Silva Vilariño Aguilera (UERJ)

 

Mas não sem antes (…) agradecer,

de minha parte, o que todos lhe devemos,

não sei se Monumento,

não sei se Canto, mas sei sim

que lição de vida,

corrosiva, imitigada,

mas - por uma só vez - bela.

Antônio Houaiss

Reunião

 

Pesquisando os recursos de linguagem que caracterizam o texto de Carlos Drummond de Andrade, nos deparamos com o trabalho estilístico do autor nesse cristal multifacetado e policrômico, a palavra, musa inconteste de sua poética.

 

(…)

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(…)

 

Matéria - prima ou encantamento, a palavra carreia o universo de que nos fala o poeta (Penetra surdamente no reino das palavras) e a que nos conduzem ambos: ela, a palavra, poesia em estado latente; ele, o autor, que, através de seu texto, nos ajuda a penetrar nesse reino.

Drummond maneja as palavras com sensibilidade de amante e habilidade de virtuose. É como se as recriasse. Nesse fazer de novo de que fala Rodrigues Lapa, o escritor se utiliza de muitos recursos. Entendê-los é outra forma de recriar: o poeta nos oferece uma face do espelho; o que ele vai refletir depende, em grande parte, de nosso próprio olhar, desse processo participativo e cúmplice da leitura.

Na sua busca pela expressão, o autor interfere na forma e no significado da palavra, o mais das vezes, combinando diferentes recursos de linguagem e num escopo maior que abrange o texto como um todo.

A criação lexical é um dos aspectos relevantes nesse procedimento e, conforme nos mostram os exemplos detectados em poemas e crônicas, verifica-se através de processos codificados pela gramática normativa ou por meio de inovações lingüísticas introduzidas pelo autor.

Drummond se vale tanto dos processos de agregação (onde os principais são a composição - formação de uma palavra nova a partir de outras duas ou mais, geralmente com sentido diferenciado destas e a derivação - formação de palavras a partir de uma forma primitiva à qual acrescentam-se prefixos ou sufixos), quanto de desagregação vocabular, através de recursos diversos como o uso de sinais gráficos. No âmbito das palavras compostas, encontramos casos de aglutinação, quando ocorre fusão ou maior integração dos radicais e de justaposição, composição de radicais livres, em que persiste a individualidade dos componentes, traduzida, na escrita, pela mera justaposição de um radical a outro, normalmente separados por hífen e, na pronúncia, pela permanência do acento tônico em cada radical, sendo o último o mais forte.

Na crônica “O outro nome do verde”, exemplificação por excelência deste tema, colhemos vários casos de aglutinação e derivação sufixal (“criados ou não pelo escritor”, seu emprego resulta, de qualquer forma, da criatividade do autor), principalmente em torno das palavras olhos, verdes e gonçalves. Esta última, trazida de Camões para a crônica ipanemense, por obra e graça de Drummond, através do vilancete transcrito, onde se lê ainda o instigante e desafiador mendes camoniano, a que o autor brasileiro também faz referência em seu texto:

 

Disse ao broto do Castelinho que seus olhos eram gonçalves, e ele riu da brincadeira. Esclareci que não estava brincando, os olhos eram gonçalves mesmo, gonçalvíssimos:

Com vossos olhos gonçalves,

Senhora, cativo tendes

este meu coração mendes.

(…)

 

Vemos a eficácia estilística dos processos de composição a multiplicar o nome Gonçalves e o adjetivo verde, do que resultam, entre outros exemplos de aglutinação, verdigonçalves e verdigonçala e, entre os de derivação sufixal, gonçalvesco, gonçalino, gonçalante, gonçalvíssimos e gonçalvino, Registrem-se outros fenômenos de criação lexical como a conversão (emprego de uma palavra fora de sua classe normal) do nome gonçalves, na posição de advérbio modificador do substantivo olhos, assim como lemos ao final do texto:

 

(…)Neste momento, não estou particularmente inspirado, e fico nos olhos verdigonçalves, de tão gonçalvesco ou gonçalante verdor, que se derramam neste escritório qualquer, nesta rua, nesta manhã, e tudo resulta luminosa, oportunamente gonçalves, ao influxo da garota verdigonçala do Castelinho.

 

Veja-se a transmutação de gênero do adjetivo luminoso, que, ao invés de concordar com o masculino tudo, insinua-se femininamente pela manhã, pela rua, ao certo impregnado do brilho da garota do Castelinho.

Todo o tempo, Drummond remete à liberdade criadora de nomear as coisas, brincos de palavra como diz, tais como uns olhos novilembros que instiga Gilberto Teles, a pensar em uma combinação de novilha com lembro, arranjo provocado pela cor preta dos olhos a que se refere o autor, na sua divagação sobre as cores de olhos femininos. Não sem antes, diga-se de passagem, dedicar quase um parágrafo inteiro a Machado de Assis: Não resta dúvida, técnico em olho de mulher, o criador de Capitu.

Mas o que ressalta lingüisticamente nessa crônica, paralelo ao processo de criação de palavras, é o poder da semântica como instrumento de percepção e criação lingüística.

 

(…)Há no mundo tantas cores quanto modos de sentir. Também o número de palavras é infinito; depende de achar a que nos convém “Quando emprego uma palavra”, diz Humpty-Dumpty a Alice, no País das Maravilhas, ela significa exatamente o que eu desejo que signifique, nem mais nem menos.” (…)

 

Nice Garcia, autora de pesquisa sobre a criação lexical na poesia drummoniana, aponta uma predominância dos casos de justaposição com hífen - palavras ou mesmo frases juntas, com grande poder de síntese (na justaposição sem hífen, os elementos se tocam, mas não se imbricam e têm vida isolada). Temos um exemplo dessa forma de composição em “Canção da Moça - Fantasma de Belo Horizonte”. No poema, além do título, o autor cria um interessante sintagma com o nome Maria, transformando o que seria sintaticamente um aposto em oração subordinada adjetiva, toda ela, por sua vez, passível de ser classificada como substantivo próprio por conta da hifenização.

 

(…)

Eu sou a Moça-Fantasma.

O meu nome era Maria,

Maria-Que-Morreu-Antes. (…)

 

Na crônica “O homem vestido”, a criação vocabular é que veste as lamúrias de um enamorado, com inúmeras ocorrências de justaposição com e sem hífen, não necessariamente criadas pelo autor. Citá-las aqui, no entanto, é praticamente obrigatório, tal a maneira como foram empregadas no texto, demonstração pura de criação lexical:

 

Minha senhora, não me venha de borzeguins ao leito! Então quer fazer de mim gato-sapato? Pensa que vou acompanhá-la, com botas de sete léguas, até onde o diabo perdeu as botas? Isso que você me promete é sapato de defunto. Mas duvido, sabe? duvido que me bote no chinelo. Aliás, devo preveni-la de que hoje amanheci de chinelo trocado. (…)

 

Profundo conhecedor da língua culta, este autor que transita pelo coloquial e pela irreverência lexical com intimidade, volta e meia nos confunde com palavras fora do uso corrente - e não por arcaísmo - que, num primeiro momento, julgamos de sua criação; existem, entretanto, e dicionarizadas. Tão instigantes e poéticas, o que nos impede de usá-las?

É o caso desta justaposição sem hífen: “Quando a gorda impostura das terras dadas enche a boca dos terratenentes (…) ”, palavra bastante pertinente aos tempos que correm: terratenente -de terra + lat. tenente, ‘que tem’, substantivo de dois gêneros, significa proprietário de terra e, por extensão, pessoa que manda, que tem prestígio, influência, numa localidade.

“Brincar” com a flexão de gênero e de número é outra forma encontrada por Drummond para desdobrar o significado das palavras, tal o faz com o domingo de uma crônica e de um poema.

 

(…) Nunca será tão domingo como aqui, e domingos e domingas de eternidade se concentram em vigorosa dominicalização. (…)

 

No texto em prosa, o substantivo domingo ganha consistência de advérbio (tão domingo), multiplica-se em gênero e número (domingos e domingas), passa por um duplo processo de sufixação (pelo acréscimo de izar e ção), e perpetua-se em movimento e continuidade. Cinco fenômenos podem ser identificados na frase: pluralização expressiva (criação de palavras pela incidência da flexão de número sobre vocábulos gramaticais - que em sua utilização corrente pelo falante não admitem a formação do plural), criação de forma verbal, derivação sufixal, conversão (emprego da palavra fora de sua classe normal) e intensificação (alargamento do sentido quase sempre através do sufixo izar).

No poema, o substantivo comum, teoricamente invariável, se adjetiva e qualifica a tarde entrevista (observe-se, no primeiro verso, a ausência de pontuação que enfatiza o sintagma):

 

Tarde dominga tarde

pacificada como os atos definitivos.

Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho.

Outras estão apenas nascendo,

verde polido onde a luz estala.

O tronco é o mesmo

e todas as folhas são a mesma antiga

folha

a brotar de seu fim

enquanto roazmente

a vida, sem contraste, me destrói.

 

“Fala, amendoeira”, uma das mais belas crônicas de Drummond, traz diálogo entre a árvore e o cronista pontuado de variações de outono:

 

(...) como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

-E vais outoneando sozinha?(...)

 

E por aí vai o cronista, conjugando o verbo outonear: outoneando, outonizes, outoniza-te, modos e tempos diferentes para um tempo de colheita:

 

(…) Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chama de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.(…)

 

Artifícios de um mago que, quando não cria, reinventa, porque sabe de palavras e de coisas (outonada - outono + ada é palavra dicionarizada, substantivo comum, que significa todo o outono e também colheita que se faz no outono).

Vale a pena observar o recurso léxico-semântico de que o escritor lança mão para criar uma árvore - da - guarda, justaposição protetora.

Algumas vezes, Drummond escapa completamente de classificação em qualquer dos processos estudados; são as formações especiais a que se refere Nice Garcia, dividindo-as em quatro grupos: 1. Formações resultantes da junção de palavras ou de parte de palavras com elementos que não se incluem na relação de sufixos apresentados pelas gramáticas de Língua Portuguesa; 2. Formas obtidas pela mutação gráfica e alteração fonética de nomes e siglas pertencentes a determinados campos semânticos; 3. Formas de grafia fonética e não de acordo com as normas ortográficas vigentes; e 4. Elementos obtidos por alteração, seja uma inversão de fonemas no interior da palavra, ditongos desenvolvidos por epênteses (desenvolvimento de um fonema no meio da palavra) , consoantes dobradas a desfazer encontros vocálicos, suspensão e fonemas por apóstrofo, etc.

A crônica “O que você deve fazer” é um bom exemplo para o primeiro caso, que tanto pode abranger formas obtidas pela simples reunião de vogais e consoantes, à maneira de abreviaturas, de efeito sonoro ou meramente visual, quanto criações como as da linguagem publicitária qual nesse texto, onde o autor lista uma série de ordens, à maneira das “chamadas” da Publicidade. O modo imperativo dos verbos em todas as frases evidencia a ditadura do mercado e do consumo, realçada pela ironia dos adjetivos da recomendação que encabeça o texto-listagem:

 

(Se você for bom leitor de jornais e revistas, fiel ouvinte de rádio, obediente telespectador ou simples passageiro de bonde.)”

 

Remetendo a anúncios em voga, o cronista cria reclames e nomes de produtos, tais como Elisabete Garden-Party, Mistura Rala, Laxativo Nuclear, Koxkoax e Eternil; alguns, de óbvia semelhança com nomes verdadeiros, resultam de uma relação fonética ou mesmo semântica estabelecida com ironia pelo escritor. Gilberto Teles associa, por exemplo, Economize servindo a garrafa - monstro de Lero-Lero , com o refrigerante Coca-Cola e Resolva de uma vez o problema de seu assoalho, aplicando-lhe Sintaxe, com Sinteco.

A crônica reúne uma gama de formações especiais em cada uma de suas frases-anúncio: Use somente peças originais, para o funcionamento ideal do seu W.Y.Z. ( alteração de sigla ); Já tomou o seu Morangoflex hoje? (derivação sufixal com sufixo não existente na Língua Portuguesa); Sorria sempre o sorriso Gli-li-pli. (composição meramente fonética por justaposição de sílabas com hífen).

Essas formações poderiam ser situadas no âmbito da linguagem verbicovisual, de natureza não-verbal, característica da poesia concretista, a que Drummond refere-se na crônica, explicitamente com esta frase: Aprenda em poucos dias pelo moderno sistema verbicovisual.

Vamos encontrá-las também no poema “Os materiais da vida”, formas de ironia lexical e filosófica do autor:

 

Drls? Faço meu amor em vidrotil

nossos coitos serão de modernfold

até que a lança de interflex

vipax nos separe

em clavilux

camabel camabel o vale ecoa

sobre o vazio de ondalit

a noite asfáltica

plkx

 

Diametralmente oposta à agregação, a desagregação vocabular é localizada igualmente nos textos drummonianos, tanto a de unidades lexicais, através de sinais gráficos ( hífens, barras oblíquas ou parênteses ), quanto a de segmentos fônicos.

Do poema “A um hotel em demolição”, é possível retirar vários exemplos de criação lexical:

 

(…)

A bandeja vai tremulargentina:

desejo café geléia matutinos que sei eu.

(…)

 

Prata-argenta-argentina, argentina bandeja ou mulher argentina? Uma bandeja de prata em mãos trêmulas? Desafio em forma e conteúdo que se estende por todo o texto. E chuvilhar, verbo novo e perfeito para o chuveiro velho?

 

(…)

Ele reza ele morre e solitária

uma torneira

pinga

e o chuveiro

chuvilha

e a chama azul do gás silva no banho

sobre o Largo da Carioca em flor ao sol.

(…)

 

Destacamos, entretanto, dois casos instigantes de desagregação vocabular e exploração dos recursos fônicos por repetição estilística: a primeira caracterizando um processo de montagem-desmontagem, ou construção-demolição, em que a separação silábica da forma composta por aglutinação mineiroflumenpaulistas cria uma dupla leitura na estrofe, a de pessoas e de uma possível listas de hóspedes:

 

(...)

O espelho eram mil máscaras

mineiroflumenpau-

listas, boas, más, caras.

(…)

 

Na segunda, com a desagregação do pretérito imperfeito mar-cava, a separação das sílabas desdobra-se em cava cava cava, numa espécie de eco que perpassa pela aliteração da vogal /a/:

 

 

(…)

Ele marcava mar-

cava cava cava

e eis-nos sós marcados

de todos os falhados

amores recolhidos

relógio que não ouço

e nem me dá ouvidos (…)

 

 

O entrelaçamento de recursos estilísticos num autor como Drummond torna quase impossível a diferenciação precisa entre os fenômenos de forma e de significado das palavras. Freqüentemente, apresentam-se coesos na convergência para a expressividade do texto, como acontece no poema “Caso pluvioso”, que exibe toda a argúcia de Drummond com a palavra; uma verdadeira “gramática poética”, conforme o conceitua Gilberto Teles, diante da mobilização das várias classes de palavras, morfemas, graus, tempos e modos verbais e, sobretudo, do jogo de morfemas, principalmente de sufixos.

A criação vocabular gira em torno de chuva, a chuva - maria, tema amoroso do poema, e deriva tanto do radical erudito pluv (da origem etimológica de chuva, do latim ), quanto do vernáculo chuv. Repare-se no uso da minúscula no nome próprio, tornando-o assim um substantivo comum e , nem por isso, de menor impacto; muito pelo contrário, parece que maria dissolve-se efetivamente na chuva que encharca o poeta .

 

A chuva me irritava. Até que um dia

descobri que maria é que chovia.

 

A chuva era maria. E cada pingo

de maria ensopava o meu domingo.

 

E meus ossos molhando, me deixava

como terra que a chuva lavra e lava.

 

Eu era todo barro, sem verdura…

maria, chuvosíssima criatura!

(…)

 

O superlativo chuvosíssima é o primeiro de uma série de derivados do substantivo chuva com que o autor, valendo-se de sufixos, inaugura novas formas e classes: verbos - chuveirando, chuvavam; adjetivos - chuvadeira, chuvadonha, chuvinhenta, chuvil; e outros substantivos - chuvido, chuvência. Do radical pluv, além do adjetivo do título, ele tirou um pluvimedonha que mistura a ironia e o humor - combinação que é uma das agudas características do texto drummoniano - ao tom carinhoso de algumas formas aumentativas e diminutivas próprias da fala de namorados, a exemplo de feiosa e bobona.

Além do mais, subverte as regras da sintaxe, ao acabar com a impessoalidade do verbo chover, dando-lhe o sujeito maria, ardilosamente invertido na terceira das estrofes a seguir:

 

(…)

Chuvadeira maria, chuvadonha,

chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

 

Eu lhe gritava: Pára! E ela, chovendo,

poças d’água gelada ia tecendo.

 

Choveu tanto maria em minha casa

que a correnteza forte criou asa

 

e um rio se formou, ou mar, não sei,

sei apenas que nele me afundei.

 

A argúcia vocabular do poeta, como aponta Teles, vale-se ainda de uma forma arcaica e sincrética da qual se refez o verbo subverter - soverter (usando-o no particípio passado) e que a fala popular emprega com o sentido de sumir, intensificando, assim, o sentido de sumido ( engolido, sob as águas de maria) ao ritmo dos versos.

 

(…)

e era o mundo molhado e sovertido

sob aquele sinistro e atro chuvido.

(…)

 

“Canto do Rio em sol” é outro desses textos que abrem caminho para inusitadas formações, numa fronteira imprecisa entre a morfologia, a semântica e a fonologia, a começar pela superposição de sentidos na composição/desagregação de a-mar. A múltipla leitura só enriquece o poema: Guanabara, braço de mar? Declaração de amor, em braço de amar? Espanto e maravilhamento - ah! mar? E esse mar transformado em verbo antigo de descobrimento que confundiu a baía com o oceano?

 

Guanabara, seio, braço

de a-mar:

em teu nome a sigla rara

dos tempos do verbo mar.

(…)

 

Nunca vi terra tão gente

nem gente tão florival.

Teu frêmito é teu encanto

(sem decreto) capital.

(...)

 

A derivação através do sufixo al - abundância, aglomeração, coleção - enche de gente-flores as ruas da ensolarada cidade que o poeta canta. É tanto Rio que talvez por isso o poeta precise inventar múltiplas maneiras de dizer, sensações hifenizadas:

 

(...)

Rio milhão de coisas

Luminosardentissuavimariposas:

como te explicar à luz da Constituição?

(…)

 

De que fala a quadricomposição, insetos? Certamente não, a conferir nos versos anteriores.

 

Rio em ol em amba em umba sobretudo em inho

de amorzinho

benzinho

dá-se um jeitinho

 

Volta e meia, Drummond escreve todo um texto - em prosa ou versos - em torno de uma palavra, como em “Do beijo verbal Da primeira vez que uma amiga lhe deu um beijão pelo telefone, João Brandão assustou-se. Lições de gramática, a começar pelo sufixo de aumentativo, no caso em pauta, significando beijo meio anódino, informe, sem cor, um tanto desgastado:

 

(…) É beijão pra cá, beijão pra lá, e tome beijão 24 horas por dia, ou por minuto. A ponto de andar já meio gasto, e se poder defini-lo: Beijão é beijo sem lábios, sem saliva, sem mordida, sem intenção, sem carinho, sem desejo e sem beijo. Sem nada.

O susto de João Brandão envolvia semântica libidinosa de homem da roça, fácil de imaginar coisas. Beijão, imaginou ele, num relâmpago, há de ser o beijo imenso, alastrado da cabeça aos pés, perfurante, chegando ao tutano da alma e… (…)

 

Foi quando veio o diminutivo, mexendo na significação afetiva do nome e do João: Um beijãozinho, professor.

 

Até lhe soou agradável. Não era o vazio beijão nem o íntimo beijinho, mas revelava o propósito ingênuo de inovar, introduzindo no chavão uma pitada de simpatia. João não vacilou em responder:

- Outro para você, minha filha.

 

Daí para a digressão vocabular, um pulo: beijinhão, beijinhozão, beijaçuinho - a lembrar, este, beijuaçu, o bolo de tapioca.

João Brandão bem que tentou usar o “aumentativo-diminutivoda menina mas descobriu que linguagem também tem sua época; beijãozinho pegava bem colegial que fora entrevistá-lo; inserido na linguagem adulta de João Brandão, era como se ele saísse por aí dando uma de hippy… Nem notariam a audácia verbal dele.

 

Mais alguns dias de hesitação, e , depois, de meditar, apareceu-lhe a simples verdade de que o beijo verbal não existe, é mera convenção de linguagem. Não se escreve um beijo, mesmo porque ele nunca é unilateral, para ser perfeito. O beijo dá-se dos dois lados. É exatamente ação conjugada, simultânea e acima ou além do verbo. Fica bem à garota brincar com sua transcrição vocabular, mas quem sabe das coisas sabe muito bem que a boca silencia na hora de beijar. Beijo é silêncio - anotou João Brandão no seu canhenho.

 

Podemos situar esse tipo de procedimento no que a Estilística estuda em relação à tonalidade afetiva da palavra, inerente ao próprio significado ou resultante de um emprego particular. Lembramos que a linguagem figurada inclui-se neste caso e é considerada o mais importante fator de afetividade.

Gostaríamos de nos deter um pouco nas palavras de poder evocativo, denominação no campo da Estilística para estrangeirismos, neologismos, arcaísmos, regionalismos, termos dialetais e expressões de gíria que, além de transmitirem um significado, remetem a uma época, a um lugar, a um meio social ou cultural. São os “ valores evocativos” de que fala Ullmann:

 

Muitas palavras devem a sua expressividade e o seu efeito emotivo às associações que fazem despertar. Termos peculiares de um determinado meio ou nível de estilo evocarão o seu ambiente usual mesmo que ocorram em contextos totalmente diferentes.. Arcaísmos, palavras estrangeiras, termos técnicos e dialetais, vulgarismos e calão transportarão o leitor ao clima estilístico a que normalmente pertencem. (...) Estes valores, que são conhecidos desde Bally como efeitos evocadores’, abarcam todo o campo do sistema da linguagem; compreendem a pronúncia e a gramática, bem como o vocabulário.

 

Com o apuro gramatical que o caracteriza - destacando-se, inclusive, entre os modernistas, por não usar a fala coloquial, indiscriminadamente, Drummond recorre a estrangeirismos, arcaísmos ou gírias sempre a serviço da expressividade.

Os estrangeirismos, particularmente, servem a propósitos de humor ou ironia do escritor, como em “Vi nascer um Deus”. Neste poema, todo um verso em francês remete às finas iguarias importadas, integradas às festas natalinas das mesas mais fartas, “signos” - como ele as chama, em relação homonímica com “sinos” -, integrados à publicidade que antecede o comércio do Natal.

 

Em novembro chegaram os signos.

O céu nebuloso não filtrava

estrelas anunciantes

nem os bronzes de São José junto ao Palácio Tiradentes

tangiam a boa-nova.

(…)

O governo destinou só 210 mil dólares

à importação de artigos natalinos

avelãs figos castanhas ameixas amêndoas

sóis luas outonos cristalizados

orvalho de uísque em ramo de pinheiro

champagne extra-sec pour les connoisseurs

mas vinham

(…).

 

Considerado como vício de linguagem pela Gramática, o estrangeirismo é definido como o emprego de palavras, expressões e construções alheias ao idioma que a ele chegam por empréstimos tomados de outras línguas; registram-se em dois grupos: os que se assimilam de tal maneira à língua que os recebe que só são identificados como empréstimos pelas pessoas que conhecem bem a sua etimologia e os que “facilmente mostram não ser prata da casa”, por exemplo: boné, do francês bonnet, esporte, do inglês sport . Podem aparecer com a sua roupagem estrangeira, como réveillon, feedback, mouse ou travestidos de vernáculos, no caso da nossa língua, aportuguesados, como estresse, do inglês stress.

Veja-se que belo exemplo de arcaísmo nos traz o poema “Cortesia”:

 

Mil novecentos e pouco.

Se passava alguém na rua

sem lhe tirar o chapéu

Seu Inacinho lá do alto

de suas cãs e fenestra

murmurava desolado

 

-Este mundo está perdido!

Agora que ninguém porta

nem lembrança de chapéu

e nada mais tem sentido,

que sorte Seu Inacinho

já ter ido para o céu.

 

Retornando a um tempo certamente bem antigo que o “mil novecentos e pouco” sinaliza, o poeta cria, com poucas e justas palavras, um personagem e uma cena: do baú do idioma saem as cãs (cabelos brancos ) - de muito pouco uso hoje - de Seu Inacinho (como se torna próximo e simpático este senhor na agregação do sufixo de diminutivo!); e não é difícil imaginá-lo à janela de um sobrado, com o uso do latinismo fenestra (Fenestra, ae - janela, seteira/buraco, fresta e fig. entrada, ocasião) e a expressão do alto, tomada em seu duplo sentido - o verdadeiro e o figurado. Lá está Seu Inacinho, de veneranda idade, encastelado em casa, em seus conceitos e visão de mundo. Gilberto Teles acentua o sentido de fresta, originado de feestra e freestra (do português arcaico), relacionando sobrado com fortaleza, para justificar a regressão às origens etimológicas da palavra.

Na crônica “Antigamente”, Drummond vale-se à vontade desses vocábulos, formas ou construções frasais que saíram do uso na língua corrente e refletem fases anteriores nas quais eram vigentes. Além de palavras (algumas até com a grafia antiga, a exemplo de phtysica), expressões e provérbios de época, brinda-nos com uma infinidade de nomes que mal conhecemos ou apenas esquecêramos. Mademoiselles e pirralhos preenchem o universo de outrora de cada uma das duas partes em que se divide o texto:

 

Havia os que tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava - sinal de defluxo - eram impelidos a exortar: “Dominus tecum.” Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias. (…)

 

 

Expressões latinas ou palavras às vezes modificadas em direção ao vernáculo como Dominus tecum nesse texto é outro recurso bastante usado. Algumas dão o título ao texto, como na crônica “Veneratio vitae”, que significa veneração à vida, homenagem do autor ao médico, filósofo, músico e teólogo alemão Alberto Schweitzer (1875-1965), que dedicou sua vida aos doentes na África.

Regionalismos e gírias contribuem para situar o texto no espaço e no tempo e, tal como todos os demais fenômenos aqui abordados, estão sempre se combinando estilisticamente a outros recursos.

É assim que lemos em “Sesta” um quentar bem regional:

 

A família mineira

está quentando sol

sentada no chão

calada e feliz.

 

A interferência do escritor sobre o arcabouço semântico do texto, aponta-nos para essa intrincada teia de significados de palavras, expressões ou frases inteiras modificados, criados ou recriados pela habilidade do escritor, onde se destaca o papel da metáfora, a interagir com os demais recursos de linguagem.

Fonte de estudos ao longo dos séculos, a metáfora talvez tenha chegado a sua melhor conceituação com O carteiro e o poeta, tanto no livro quanto no filme dele gerado. Pergunta Dom Pablo, o poeta (Pablo Neruda), a Mario, o carteiro, após lhe recitar um poema, na tentativa de esclarecer o mistério das metáforas que o intrigavam:

 

(…)

--Como se explica? Quando o senhor dizia o poema, as palavras iam daqui para ali.

--Como o mar, ora!

--Pois é, moviam-se exatamente como o mar.

--Isso é ritmo.

--Eu me senti estranho, porque com tanto movimento fiquei enjoado.

--Você ficou enjoado…

--Claro! Eu ia como um barco tremendo em suas palavras.

(…)!

--Sabe o que você fez, Mario?

--O quê?

--Uma metáfora.

(…).

 

O fato é que, embora somente no século XIX a Semântica - a ciência do significado - tenha surgido como uma divisão da Lingüística, e com tal nome, os problemas relativos ao significado (um dos termos mais controversos da teoria da linguagem), ao emprego e ao sentido das palavras sempre preocuparam os grandes pensadores, desde a Antigüidade Clássica.

Aristóteles dizia da metáfora ser o “meio que mais contribui para dar ao pensamento clareza, agrado e o ar estrangeiro” elementos que preconizava como essenciais às Artes Retórica e Poética. À sua definição básica- “metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra, a transposição do gênero para a espécie ou de uma espécie para outra por via da analogia” - pouco foi acrescentado, em verdade, embora a Gramática, a Lingüística e as novas ciências desta emanadas - a Semântica e a Estilística - fossem gradativamente incorporando novos conceitos e agrupamentos ao processo de mudança de significado e sua importância para o texto.

Metáfora, metonímia, homonímia, sinonímia, ambigüidade e polissemia, fenômenos importantes para o estudo semântico do texto, muitas vezes são confundidos quanto a sua conceituação, o que tem pouco peso diante da real compreensão dos fatos. É sempre curioso, no entanto, relembrar a perspicaz observação de Aristóteles sobre serem os sinônimos especialmente úteis aos poetas (segundo Ullmann, “indispensáveis”), enquanto as palavras de sentido ambíguo serviam especialmente para os sofistas desorientarem seus ouvintes.

Drummond traz-nos um divertido exemplo de ambigüidade de sentidos na crônica “Vó caiu na piscina”:

 

Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto:

-Pai, vó caiu na piscina.

-Tudo bem, filho.

O garoto insiste:

-escutou o que eu falei, pai?

-Escutei, e daí? tudo bem.

-Cé não vai lá?

-Não estou com vontade de cair na piscina.

-Mas ela tá lá...

-Eu sei, você já me contou. Agora deixe seu pai fumar

um cigarrinho descansado.(...)

 

O diálogo entre pai e filho segue por aí: este, pedindo socorro para a avó que caiu - literalmente - na piscina, numa noite escura, e pode-se afogar; aquele, indiferente diante da sua interpretação do sintagma cair na piscina, ou seja, dar um bom mergulho e sair nadando. A confusão vocabular impera por algum tempo até que tudo se esclareça e a avó seja finalmente resgatada da água:

 

-Está bem, Eduardo - disse Dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a vela que conseguira manter acesa. - Mas de outra vez você vai prestar mais atenção no sentido dos verbos, ouviu? Nelsinho falou direitinho, você é que teve um acesso de burrice, meu filho!

 

Ângela Vaz Leão analisa o processo metafórico drummoniano:

 

A imagem, em Drummond, não é artifício retórico. Não é substituição de um significante por outro, como ocorre nas metáforas motivadas pelo desejo de “enfeitar o estilo”. A metáfora drummondiana atinge forma exterior e forma interior, dando-se a substituição ao nível da palavra e ao nível do objeto.

 

 

Ao homenagear o fotógrafo Alécio de Andrade, por sua exposição de fotografias de crianças, Drummond nos oferece a exemplificação perfeita para o processo:

 

(…)

Tentei dizer de minha emoção em algumas palavras oferecidas a Alécio e aqui reproduzo:

 

“Olha, descobre este segredo: uma coisa são duas - ela mesma e sua imagem.

Repara mais ainda. Uma coisa são inúmeras coisas.

Sua imagem contém infinidade de imagens em estado de sonho, germinando no espaço e na luz.

E as criaturas são também assim, múltiplas de si mesmas.

A variedade de imagens revela o mundo que nasce a cada instante em que o contemplas: formas, ritmos, ângulos, expressões, impressões, fragmentos, síntese.

A imagem é um ser vivo, como os demais seres. E quer penetrar em teu espírito, habitá-lo como hóspede afetuoso.

Se a recolheres com toda pureza da vista e completa simpatia da mente, ela te enriquecerá.

Estas imagens vão mais longe do que os meios intersiderais de comunicação.. Insinuam-se na profunda região da vida.

Conversam daquele assunto que carregas contigo como baú nostálgico.

O baú abre-se, e tua infância te saúda, com inocência de fonte.

Não pode haver melhor uso da fotografia do que este de alimentar-nos da porção perdida de nossa alma.

Uma arte vinculada com a mais fugitiva e perene das realidades poéticas, eis o dom sublime de Alécio de Andrade.”

 

Na crônica “Quando”, as associações inusitadas que se sucedem, num crescendo de significado, aliadas aos recursos fonéticos e sintáticos, compõem uma estrutura semântica de grande densidade, onde podemos identificar diversas figuras de linguagem, a par da metáfora aqui tomada em seu sentido mais genérico:

uma antítese (contraposição simétrica de palavras ou expressões de significado contrário), em quando a autoridade carece de autoridade e o legítimo se declara ilegítimo;

uma metonímia ou sinédoque (ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão partindo de uma relação objetiva entre a significação própria e a figurada), em quando a lei é uma palavra batida e pisada, que se refugia nas catacumbas do direito;

uma sinestesia ou metáfora sinestésica (correspondência com os sentidos humanos), em quando a intimidação faz ouvir suas árias enervantes,(…); e

uma metáfora personificadora (modo de expressar os aspectos da natureza pela semelhança percebida em face das coisas humanas), em quando a incompetência acusa o espelho que a revela dizendo que a culpa é do espelho.

Particularmente rica é a sexta frase desta crônica - espécie de síntese do protesto: quando faltam a confiança e o arroz, a prudência e o feijão, o leite e a tranqüilidade das vacas; metafórica no seu todo, esta frase resume bem a idéia básica da crônica em cada uma das relações abstrato - concreto dos complementos verbais de faltam, onde o ápice vem com a aludida “tranqüilidade das vacas”. Registre-se na oração um caso típico de quebra de paralelismo semântico a que se refere Othon Garcia, “espécie de ruptura do sistema lógico resultante da associação de elementos, ou melhor, de idéias desconexas(…)”

Geralmente a ruptura do paralelismo semântico encontra-se inserida em construções metafóricas como a dos exemplos a seguir:

 

(…) Perdemos o sono e o sentimento da nossa orgulhosa integração na cidade, pois toda a cidade curva a espinha sob essa visita errante, que brinca de assombração, de desabamento e de morte(…)

*

(…)Ai dos homens e dos gatos e das mulheres que, crescendo se esquecem de brincar! Para brigar eles contnuam aparelhados, e dispostos. E automóvel, como se já não bastasse o susto que ele prega em nós, desmoralizados e desparelhados pedestres, ainda assume a iniciativa de promover xingações, e até mais, entre motoristas. (…)

*

(…) Meu partido está tomado, não sou da Arena nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. (…)

 

Algumas vezes, a metáfora é todo o poema, a exemplo de “O elefante”, significado que se oculta sob a sucessão de imagens:

 

(…)

Mas há também as presas,

dessa matéria pura

que não sei figurar.

(…)

E há por fim os olhos,

onde se deposita

a parte do elefante

mais fluida e permanente,

alheia a toda fraude.

(…)

Vai o meu elefante

pela rua povoada,

mas não o querem ver

nem mesmo para rir

da cauda que ameaça

deixá-lo ir sozinho.

(…)

Ele não encontrou

o de que carecia,

o de que carecemos,

eu e meu elefante,

em que amo disfarçar-me. (…)

 

Unicidade de imagem que também encontramos em algumas crônicas, como o demonstram os parágrafos selecionados de “Fala, amendoeira” e de “Velhinhos de Canudos”:

 

(…) -Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio de outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

-E vais outoneando sozinha?

-Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

-Somos todos assim.

-Os homens, não. Em, ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.(…)

*

Meu amigo Funchal Garcia é que sabe viver: não é rico, e faz o que lhe apetece. Escreve histórias, pinta montanhas e vales, ensina a garotada a rabiscar, veste-se de púrpura para interpretar o Gonzaga da Ceia dos Cardeais, viaja no tempo e no espaço. Sim, no tempo também. Quando lhe dá na veneta, vai até o monte de o silvícola espiou a primeira nau portuguesa, e recria, civilizado, as emoções do Descobrimento; ou senão, perde-se entre os restos trágicos de Canudos, restos de coisas e almas, e, conferindo Os Sertões com a realidade, vive de novo o drama de Antônio Conselheiro e seus fanáticos.

 

Em “Sondagem”, coincidentemente, nos deparamos com uma conversa e uma metáfora que lembram “O carteiro e o poeta”, em especial quanto à surpresa provocada no cronista com a revelação do segredo do carteiro.

No texto drummoniano, que antecede de alguns anos a obra de Skármeta - o que comprova a eterna correspondência dos poetas por sobre todas as diferenças de tempo e espaço -, comenta o carteiro Teodorico, espantado com o fato de o escritor nem sempre ler todo o material recebido:

 

(…)

-Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.

-Bem, faz-se o possível, mas …

-Eu sei, seu sei. O senhor não tem tempo.

-É.

-Mas quem escreveu, coitado! esse perdeu o seu latim, como se diz.

-Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, está acabado. (…)

 

Passo-a-passo, a descoberta:

 

( …)

-Teodorico! Você…escreveu um livro?

Virou o rosto.

-De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.

-Escute aqui, Teodorico …

-Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era possível!